Que objecto é Dom Roberto (1962), o encoberto filme de um realizador que não voltou a realizar e que oscila entre ser chamado de Neo-Realismo ou de Cinema Novo?
…Ora o essencial no emocional é o expressar-se. É então quando vem a Arte para servir o seu único fim: o Homem. E se a Arte deixasse de perder de vista o seu único fim, era impossível a Poesia. …
Almada Negreiros in Elogio da Ingenuidade, Maio de 1936
1. ERNESTO DE SOUSA E O NEO-REALISMO
Ernesto de Sousa, incontornável figura de dissidência cultural e política, inicia o seu percurso de crítico, teórico e artista em meados dos anos 40. Enquadra-se numa frente de oposição cultural à ditadura e terá um papel definidor na construção do neo-realismo visual português. Contra o modernismo vinculado ao SNI (Secretariado Nacional de Informação) de António Ferro, a oposição ao regime tem expressão no formato escrito através de periódicos como O Diabo ou o Sol Nascente, onde o espírito neo-realista surge, num pós-Segunda Guerra, como um combate sem fronteiras por uma transformação do mundo. Ernesto contactará com simpatizantes portugueses do Neo-Realismo ainda na Faculdade de Letras onde, em 1942, começará a escrever no quinzenário cultural Horizonte, editado pela associação de estudantes. Nestes textos, já se vislumbra a sua proximidade ao projecto neo-realista, que prosseguirá em 1946 com um convite de Fernando Lopes-Graça para colaborar na revista Seara Nova como crítico de arte. Não virá, no entanto, a pertencer a nenhum dos núcleos neo-realistas, ainda que defenda permanentemente vários dos seus nomes mais representativos, como Júlio Pomar, Lima de Freitas ou Manuel Ribeiro de Pavia.
2. DOM ROBERTO, FILME DA ESPERANÇA
Com o fim da guerra e a vitória dos Aliados, Salazar, pressionado pelas potências vencedoras, pronuncia em Agosto de 1945 o discurso da ‘’abertura democrática’’ do regime, prometendo eleições livres.
Mariana Pinto dos Santos, «Neo-realismo em Ernesto de Sousa»
As oposições à ditadura alinham-se no MUD (Movimento de Unidade Democrática) reunindo esperanças de combater legalmente o regime. Em 1946, criar-se-á o MUDJuvenil como uma secção autónoma à qual Ernesto de Sousa se ligará através do amigo Júlio Pomar. A partir deste ano, Ernesto de Sousa fundará o Círculo de Cinema, uma das primeiras tentativas de criação de um cineclube em Portugal, empenhando-se em tentar obter uma autorização legal para o seu funcionamento. Esta autorização nunca chegou e os seus sócios, Ernesto de Sousa incluído, acabariam presos na sequência de uma das reuniões do Círculo, a 31 de Janeiro de 1948. Na sequência do seu relatório à PIDE, Ernesto de Sousa tem de responder pela sua ligação ao MUD e ao MUDJ. Arriscaríamos dizer que o movimento da narrativa em Dom Roberto, por um vislumbre insuflado pelo ganho e pela esperança no futuro, para logo depois se reencontrar com a perda, corresponde à própria vida do MUD, animada pela esperança em eleições democráticas com a candidatura do General Norton de Matos em 1949, um marco assinalável na longa luta travada pela Oposição contra a ditadura fascista e logo depois extinto. Durante dez anos (desde 1954), Ernesto de Sousa dinamizará o Cineclube Imagem e a revista com o mesmo nome, que deixa de ser publicada em 1961.
3. DOM ROBERTO, FILME DESALINHADO
Aí acampam, em plena cidade, em plena civilização. O fim não será nem feliz, nem infeliz, sobrevivem. Mas o filme de Sousa não é uma história da amor e miséria, é um filme de ternura humana e de coragem, uma face da bondade.
René Gilson, «O Jogo Quotidiano», Cahiers du Cinéma n.º 181, Agosto de 1966, p. 67
Às vezes a distância é auxiliar da percepção e hoje Dom Roberto é uma pequena preciosidade a ser redescoberta.
Dom Roberto é um prenúncio revolucionário, um filme protagonizado pela força popular como um contrapoder. Num enquadramento comunitário, uma pequena vizinhança equivale a um núcleo organizado de resistência, unida através de laços de entreajuda. Protege-se da denúncia, da vigilância repressiva da Polícia (e dos PIDES), desenvolve mecanismos internos de julgamento e de justiça, apoia a ocupação de uma casa vazia pelos que não têm casa.
Quais as superfícies em que os artistas pintarão para a maioria do povo? Aqui se verá mais uma vez o encontro desses dois factores determinando-se reciprocamente: por um lado, uma vida colectiva mais intensa e em formas mais evoluídas está oferecendo ao pintor vastas construções colectivas, com vastas superfícies; por outro,essa cultura que vimos ser a da maioria dos homens, a do povo, determinará uma pintura que não se poderá contentar com os quadros de cavalete, mais interessantes para as actividades recônditas de quem se isolou dos homens.
Ernesto de Sousa, «A arte e o público», Seara Nova n.º 998, 28.09.1946
A adesão a ideais marxistas e neo-realistas nos anos 30/40 dinamiza em Portugal os fluxos reflexivos acerca do discurso artístico e do papel a desempenhar pela arte enquanto agente de transformação das condições sociais do País. O muralismo enquanto arte popular é referenciado pelos neo-realistas pela correspondência à revolução cultural mexicana, e as obras de Orozco, Rivera, Siqueiros e Portinari tidas como modelos a seguir. De facto, o muralismo já existia em Portugal associado à tradição dos painéis de azulejo, mas expande-se abruptamente como veículo de activismo político depois de 1974, com a pintura mural e o graffiti. O elogio da arte popular por Ernesto de Sousa resulta de uma preocupação convergente com a participação da arte na vida colectiva: reflecte a importância de procurar novas formas de comunicar e reproduzir as novas ideias, estreitando a ligação da obra ao espaço social e nivelando artista e público. Neste importante artigo de 1946 é já clara a preocupação em eliminar quaisquer fronteiras entre cultura popular e cultura erudita, bem como a necessidade de divulgar a arte e os artistas – torná-los acessíveis fora do espaço do museu é democratizar o acesso à arte e, por princípio, eliminar qualquer status associado ao artista. Procuram-se, em suma, os elementos essenciais da construção de um novo realismo, mais amplo, “uma arte que sirva a todos e quaisquer homens” (Ernesto de Sousa in «Rumos da pintura», Seara Nova n.º 993, 24.08.1946). Como enuncia Mariana Pinto dos Santos em «Vanguardas e outras loas», Ernesto de Sousa ‘‘caracterizará a actividade artística popular como um eterno começo absoluto”:
O artista popular (…), mesmo confrontando-se estreitamente com a tradição, como geralmente acontece, age com a espontaneidade do demiurgo: é um criador de objectos com actividade própria e poder imediato de transformação do mundo.
Ernesto de Sousa, «Conhecimento da arte moderna e da arte popular», Arquitectura n.º 83, Setembro de 1964
O elogio à arte (e ao engenho) populares é evidente em Dom Roberto. Seguimos as desventuras de um marionetista pobre, João Barbelas (interpretado por Raúl Solnado a evocar The Tramp (O Vagabundo) de Chaplin), que tem um espectáculo de fantoches itinerante chamado Dom Roberto. Contra um tipo de cinema popular anexo ao regime, este protagonista reage à alegre “pobreza franciscana’’ de Vasco Santana, que sempre se colocou entre o povo para o desfigurar, não interpretando senão “o parvo’’ de Gil Vicente.
Como o poeta, Barbelas é um fingidor e este fingimento está tão próximo da vida que é a própria vida. Barbelas traz sempre consigo o fantoche de Dom Roberto, é confundido com ele na rua e fala através dele até em casa. “É a tua arte, é o que tu és”, diz Maria. E se a ficção é a própria vida, prova-se então como a arte está absolutamente inscrita na sociedade, é indissociável e intrínseca a esta – cabendo-lhe, evidentemente, um papel activo na sua modificação. Dom Roberto é o elogio da conquista da ingenuidade. Esta é a ingenuidade da criança, a plena pureza que, entre Pierrot e Arlequim, toma a inocência como ponto de partida para uma apreensão verdadeira do mundo. É um projecto de emancipação com um movimento mítico: a libertação da dureza material que se abate sobre o corpo realiza-se através do retorno à candura do espírito. Regressar à “eterna criança” (a Puer aeternus de Jung) dentro de si é evocar o potencial do futuro, vivendo a qualidade provisória do presente, em independência e liberdade.
Há pessoas que na velhice ficam jovens e crianças. Talvez esse corte dê origem a uma nova espécie de liberdade. Por exemplo, ser mais indiferente às vozes do mundo.
Maria Filomena Molder, Pública de 10.11.2013
O mais elevado e completo (teleios) homem é gerado pelo pai ‘desconhecido’ e nascido da Sabedoria e é ele que, na figura do puer aeternus (…) representa a nossa totalidade, que transcende a consciência. (…) é o rapaz nascido da maturidade do homem adulto e não a criança inconsciente que gostaríamos que permanecesse.
Carl Gustav Jung, «Resposta a Job»
A visita de Barbelas e Maria à ‘‘casa imaginária’’ é uma das sequências mais belas do cinema português. São ruínas de memórias que evocam o futuro, vividas a dois numa alucinação partilhada. Ao atravessar o que resta de uma casa devoluta, vêem nas divisões vazias uma cozinha, uma sala, um quarto, e admiram-se entre si com as mobílias que já não lá estão. À medida que vão habitando aquelas ruínas feitas casa, os lugares que correspondem aos móveis vão sendo pintados como se do seu grande cenário se tratasse – afinal, o único possível.
O gag do homem pobre que sonha em ter o automóvel que não pode comprar e passa a vida a construir é uma alegoria à própria estrutura da emancipação, assim passível de se estender à construção do projecto social revolucionário. O ‘‘zero é positivo’’ (a expressão é de Ernesto de Sousa) ou seja, a falta não é equivalente ao nada, mas antes a uma plenitude de possibilidades a serem preenchidas pelo futuro. A «ingenuidade voluntária» do olhar, uma concepção de José de Almada Negreiros (que Ernesto de Sousa nomeará como “o seu indispensável contemporâneo’’ e que referenciará inúmeras vezes) será teorizada por Ernesto de Sousa, que verá na modificação activa do olhar do espectador um passo para a participação na obra de arte e, por conseguinte, na sociedade e na sua transformação.
Aliando a fenomenologia husserliana ao «efeito de distanciação» de Brecht, entre outras referências teóricas, Ernesto de Sousa desenvolveu uma teoria da ingenuidade, que, mais do que explicar o objecto a que se dedica, quer adoptar como modo de ver o mundo, para si e também para a arte, o artista, o crítico, o espectador contemporâneos. (…) Esse sistema – ou anti-sistema, pois na verdade recusa qualquer sistematização – desenvolvido a partir do conceito de ingenuidade, possibilitou a integração de todo o tipo de informação numa rede de inúmeras associações e ligações em redefinição permanente…
Mariana Pinto dos Santos, «Neo-realismo em Ernesto de Sousa»
4. DOM ROBERTO E O ‘‘NEO-REALISMO ANACRÓNICO’’ PORTUGUÊS
Dom Roberto teria sido o filme neo-realista tão esperado na década precedente que surgia agora tardio e ultrapassado.
Mariana Pinto dos Santos, «Vanguardas e outras loas»
Dom Roberto estreava a 30 de Maio de 1962 no cinema Império. Desde 1959, Ernesto de Sousa projectava a realização de um filme sem o apoio estatal e, com base na sua actividade no Cineclube Imagem, forma a Cooperativa do Espectador procurando criar uma alternativa ao financiamento habitual do cinema. Seria ‘‘talvez a única tábua de salvação para o ultra péssimo cinema nacional’’, escrevia-se no Jornal O Templário a propósito de uma entrevista a Ernesto de Sousa, enquanto Dom Roberto estava ainda em elaboração. Esta cooperativa extingue-se depois de Dom Roberto estrear e, apesar dos muitos esforços, Ernesto de Sousa não voltará a filmar por falta de acesso a fundos.
Ao aparato de uma estreia que prefigurava Dom Roberto como o tão necessário filme de vanguarda contra a censura, seguiu-se uma maré de reacções desfavoráveis entre público e crítica e o filme foi considerado um fracasso em Portugal. Dom Roberto era um objecto sem par, difícil de descrever, onde as influências directas eram demasiado difusas para se aproximar claramente, fosse do neo-realismo ou da nouvelle vague. É particularmente criticado pela geração seguinte de cineastas, os nomes do Cinema Novo (a ‘‘tertúlia Vává’’), com quem Ernesto de Sousa nunca se alinhou. Apesar disso, é hoje considerado um crucial ponto de viragem do cinema português, inserindo-se no esqueleto da construção do Cinema Novo.
(…) Não nego a sua importância [dos filmes Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortadas de Artur Ramos], mas sem que tivesse directa influência em nós. Terão sido a concretização do velho sonho dos Cineclubes, que era o de passarem de meros animadores culturais a agentes dinâmicos da transformação do cinema em Portugal. Isso não aconteceu: o filme de Ernesto de Sousa transformou-se num objecto mítico, no qual se depositavam todas as esperanças, mas que desapontou as pessoas; o filme do Artur Ramos desapontou ainda mais[…]. São talvez a pré-história do que nós viemos a fazer e é essa a sua importância. Ressalvo apenas as referências chaplinianas de Ernesto de Sousa que terão feito envelhecer um pouco melhor o Dom Roberto (…) A ingenuidade como conceito operativo desencadeador de uma mobilidade libertadora…
Fernando Lopes em 1985
Apesar dos antagonismos, Dom Roberto fora seleccionado para o Festival de Cannes, tendo ganho a Menção Especial do Júri do Melhor Filme para a Juventude. À época, Ernesto de Sousa foi preso pela PIDE em Maio de 1963, quando saía do País para estar presente na exibição de Dom Roberto em Cannes.
Uma arte é chamada “moderna” quando é do seu tempo, quando corresponde às necessidades, mais vivas, mais progressivas do seu tempo. É claro, considerando vivo e progressivo tudo aquilo que, dum modo ou doutro, contribui para uma maior amplidão na vida e na inteligência do homem. Não se trata, portanto, de uma designação fixa ou que convenha só a determinados aspectos intrínsecos das formas ou da essência da arte.
Ernesto de Sousa, «Em defesa do moderno», Seara Nova n.º 1000-1007, 26.10.1946
Num percurso teórico-prático fecundo e imprevisto – que é indispensável (re)conhecer – Ernesto de Sousa associou artes distintas, cruzou técnicas e disciplinas diversas e embandeirou o fervor pela anti-especialização, firmando um papel único na arte portuguesa do século XX. Sempre rompendo as fronteiras de um país fechado sobre si, ocupou um lugar dianteiro na importação e difusão de ideias e linguagens, reformulando permanentemente o seu próprio projecto.
Se aqui escrevemos acerca do seu cinema, pudemos testemunhar a sua proposta de “”anti-cinema””. O início do ciclo Almada 120 anos celebrou-se ontem na Cinemateca Portuguesa com um acontecimento único na arte portuguesa : a reinterpretação de ALMADA UM NOME DE GUERRA (1969-1972), a “”obra aberta”” que Ernesto de Sousa realizou com e em honra do seu eleito mentor, apresentada pela primeira vez em Portugal em 1979. Uma raríssima sessão mixed-media, composta por várias projecções simultâneas de filmes e slides, com música de Jorge Peixinho e a voz de Almada.
( Agradeço ao Paulo Cunha, ao Paulo T. Silva e ao Luís Mendonça por colaborações indispensáveis para a escrita deste artigo.)