Tantas vezes dou por mim obrigado a ficar acordado por mais uns minutos, por vezes extensos minutos, simplesmente porque a caixa mágica transmite directamente algo imperdível, algo encantatório que a visualização a posteriori não consegue traduzir com a mesma pujança. Da última vez foi um zapping nocturno que me conduziu de um programa de debates político entre o cómico e o assertivo para a RTP Memória. Lá exibia-se a Conversa Maior, programa de Carlos Pinto Coelho, gravado pouco antes da sua morte, cujo convidado era Nadir Afonso (que fará 94 anos dentro de semanas). Já não apanhei a coisa no início mas nem me atrevi a retroceder – não fosse esse intervalo entre o que passa e o que se vê capaz de deturpar o que estaria para vir.
Nadir Afonso, já bastante debilitado (ele mesmo o diz) e com visível dificuldade em falar (a placa foge-lhe da boca e as palavras machucam-se nessa guerra entre a língua e o resto) não perde, nem por um segundo, o poder de atracção mágica da sua teoria estética (mas anti-esteta) e o gosto singular por contar histórias e por criar suspense através das mais triviais anedotas. Uma delas é a que se prende com o quadro acima, Sevilha, um dos que compõem a série das cidades – e o seu primeiro quadro de grandes dimensões (quase três metro de largo). Conta-nos (sim, porque Pinto Coelho tinha esse poder extraordinário de transformar uma conversa a dois num espectáculo fascinante para qualquer um do lado de cá) que um dia chegou a casa de um amigo e lá encontrou uma reprodução de um quadro seu, este mesmo. Olhou-o e afirmou: este quadro está errado! Carlos Pinto Coelho pede-lhe que indique o erro e Nadir, com uma esferográfica, sobre um catálogo seu, desenha uma pinta preta no centro da reprodução, no interior da bola verde que lá está. Porquê? Pois bem, o próprio Nadir desconhece as razões (lógicas e racionais que levaram a tal alteração, se é que elas existem sequer…) e explica que se trata de uma pulsão artística, uma obrigação moral – a defesa do seu nome – de acrescentar uma pinta preta, porque só assim a harmonia matemática (duas palavras fundamentais para compreender a obra do pintor) se estabelecia – “a força irresistível da lei da composição”.
Esta fúria de revisitação da própria obra é comum a outros artistas, entre eles, Chris Maker que até à sua morte montou e remontou os seus próprios filmes, quiçá procurando essa perfeição matemática entre as formas. Considerandos estéticos à parte (o artista manifesta-se através da pintura ou através dela o artista encontra, pelo trabalho, formas e harmonias preexistentes?) o que me importa é esse gesto de colocar uma forma negra onde ela não estava. Nadir diz a certa altura que “as forma, a certa altura, chamam mais uma forma” e de repente já não faz sentido olhar para a tela sem essa marca negra. Pergunto-me se não é o caso de que também nos filmes, mesmo nos mais perfeitos, surgem formas destas que se impõem pela acção das que lá estão? De repente impõe-se um raccord em Taxi Driver (1976), de repente não há como não acrescentar um plano a Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) ou um travelling a Vertigo (A Mulher que Morreu duas Vezes, 1952) ou acrescentar um efeito sonoro a 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968).
Estes são os perigos (ou as maravilhas) desta forma de pensar a arte como coisa objectiva que procura uma perfeição (matemática) e que, como tal, permite que qualquer um (sensível a essas linhas harmónicas) encontre nela erros – mas só o autor poderá agir sobre eles, e nem sempre… – e se atreva a questionar a composição delas [a entrevista continua e fala-se sobre um outro quadro, Espirais, cuja forma final não saía com facilidade da mão de Nadir mas que quando saiu foi idêntica – cores e tudo – àquela que o colega e amigo, Vasarely, obteve separadamente – ‘prova’ de que a harmonia é coisa exterior que se impõe sobre o artista, e que portanto há errados e certos].
Perco-me nestes emaranhados teóricos apenas porque se me impõem (é uma pulsão moral) questionar a política de reposições cinematográficas que as salas portuguesas vêm recebendo. Todos os filmes anteriormente referidos estiveram em exibição (ou estarão brevemente) na salas comerciais portuguesas, juntamente com Psycho (Psico, 1960), Les valseuses (As Bailarinas, 1974), From Here to Eternity (Até à Eternidade, 1953), Banshun (Primavera Tardia, 1949), Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) e, dentro de pouco tempo, Casablanca (1942) [e, de forma diferente, Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993)]. No entanto, estou em crer que se tem perdido a oportunidade de olhar para estes objectos, não como obras-primas perfeitas e incontestáveis (Vertigo foi reposto, em parte, por ter sido nomeado o melhor filme pela sondagem da Sight & Sound), e sim como objectos aos quais se pode ainda acrescentar uma forma negra algures. Isto é, há que aproveitar estas cópias (quase sempre restauradas e exibidas em versões digitais) para olhar os filmes como filmes e não como monumentos (que também são, invariavelmente).
Posto isto, sinto-me agora obrigado a tentar perceber porque motivo têm estas reposições tido tanto sucesso de público. Notar que as reposições vêm sendo coisas muito escassas no mercado português desde a mudança de gerência do cinema Nimas – que antes de encerrar havia exibido, numa espécie de estertor final, Mala Noche (1986), Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977) e Imitation of Life (Imitação da Vida, 1959) – sendo que, desde então, e com excepção das reposições pelo efeito 3D – Titanic (1997) ou algumas animações como Beauty and the Beast (A Bela e o Monstro, 1991) ou os dois primeiros tomos dos Monstros e Companhia -, só me recordo de uma reposição em sala, e durante uma semana: Blade Runner (Perigo Iminente, 1982), reposto aquando da comemoração dos seus 30 anos. Por um lado, parece-me que há um desejo pelo confronto com a dimensão do ecrã, isto porque embora os filmes em causa sejam conhecidos de todos os espectadores, são-no apenas na pequena dimensão do televisor (ou do computador – e espero que não haja ninguém a ver Ozus no smartphone ou no tablet…). A exibição em sala permite esse redimensionamento à escala natural do cinema – permite-nos ver o olho morto de Janet Leigh maior que nós – chocando-nos com novos pormenores (pintas negras que lá não estão?) que só através desse confronto de proporções são reconhecíveis. Por outro lado, e aqui o mérito é de quem tem sabido vender os filmes, criou-se um evento em torno de cada uma destas reposições – também, e principalmente, porque estes são os ditos filmes essenciais, as obras-primas, os monumentos da história do cinema. Estou em crer que o primeiro motivo não só é mais válido (para o cinéfilo) como mais sustentável (para o contabilista, já que o panteão dourado do cinema é finito e não especialmente diversificado), no entanto é através de eventos como estes que se criam os públicos cinéfilos (já que a televisão se escusou de tal papel) que suportarão futuras e mais ousadas reposições. Venham eles, os filmes grandes cheios de formas por aparecer.