Yi dai zong shi (O Grande Mestre, 2013) marca o regresso de Wong Kar-Wai, seis anos depois da sua viagem à América em My Blueberry Nights (O Sabor do Amor, 2007). É um regresso a Hong Kong, às artes marciais e à Grande China, talvez nunca tão presente na sua obra como aqui. Quase um ano depois da sua estreia na Ásia e pouco tempo depois da sua exibição no Lisbon & Estoril Film Festival, chega finalmente às salas Yi dai zong shi.
O “grande mestre” do título do filme é Ip Man (1893-1972), um dos mais respeitados mestres de artes marciais chinesas. Ip foi, entre outras coisas, professor de Bruce Lee. Uma figura tão extraordinária como o mestre Ip já mereceu várias evocações no grande ecrã, sendo as mais recentes um par de filmes protagonizados por Donnie Yen. Há, no entanto, algo bem diferente em Yi dai zong shi, que é menos um filme sobre Ip Man e mais um filme de Wong Kar-Wai sobre a experiência de deslocação e perda na China do século XX.
O virtuosismo de Wong Kar-Wai (aqui sem Christopher Doyle como director de fotografia) está patente desde a cena de abertura, uma luta à chuva minuciosamente coreografada e montada. É puro Wong Kar-Wai de Dong xie xi du (As Cinzas do Tempo, 1994), uma sequência de planos onde se pode apreciar a forma de fragmentar o tempo e o espaço a que Wong nos habituou noutros filmes. “Gongfu [kung fu] pode resumir-se a duas palavras”, garante Ip (Tony Leung Chiu-Wai): “horizontal, vertical”. Quase sem dar por isso, damos por nós a tentar delinear na cena essas mesmas direcções, embora a precisão de Wong seja mais feita de ondas, flutuações e reflexos que de linhas rectas.
Falado em mandarim e cantonês, Yi dai zong shi é talvez o filme de Wong onde a história do século XX chinês mais relevância tem. Não deixa de ser curioso notar os ténues ecos de outro grande mestre do cinema asiático, Hou Hsiao-hsien, em certas cenas como as repetidas fotografias, o ambiente do bordel tradicional ou a ópera. A Hou também importa a história, a identidade nacional e a separação, todos eles patentes em Yi dai zong shi de forma peculiar.
O filme segue vagamente a vida de Ip Man até à sua fixação em Hong Kong. No filme, Ip, natural de Foshan, na província de Guangdong, ganha fama vencendo um mestre do Nordeste (Manchúria) cuja filha, Gong Er (Zhang Ziyi), por seu turno, o vai desafiar. Os seus estilos de artes marciais representam essa divisão do Norte e do Sul da China, mas nunca está em causa que o objectivo final, não concretizado, é a união simbólica do país (na altura acossado pela invasão japonesa, que ocupara primeiro o Nordeste, mas que não poupará a terra de Ip no Sul). O mais próximo de um vilão no filme, Ma San, desrespeita o mestre e a pátria, sendo um colaboracionista com os japoneses no “estado-fantoche” de Manchukuo (sabemo-lo também pelas fotos do último imperador, Puyi, que são mostradas a certa altura, um dos vários fragmentos de passado que contextualizam Yi dai zong shi).
Embora boa parte do filme tenha lugar nos tumultuosos anos da guerra sino-japonesa, Yi dai zong shi não é propriamente um filme histórico, mas os traumas da história estão lá, nas figuras de Ip Man, Gong Er e do misterioso “Navalha” (Chang Chen) – curiosamente interpretados por três actores naturais de Hong Kong, China continental e Taiwan –, todos exilados da sua homeland, seja ela no Nordeste ou no Sul, todos nas ruas de Hong Kong no início dos anos 50, com as fronteiras da China continental fechadas, famílias separadas, vidas interrompidas. Todos ali, para morrer ou renascer. Gong Er presa ao passado que poderia ter sido, recordando a sua juventude de neve em sonhos de ópio. Ip Man numa resignação da perda aliada à concretização de um futuro, o mesmo futuro que Gong Er não pode percorrer pelos votos que fez para vingar a morte do pai e manter o legado da família (um legado não material, mas de conhecimento) intacto.
Tal como noutros filmes de Wong Kar-Wai, temos personagens que se movem entre complexos códigos morais (neste caso do mundo marcial), mas onde há gestos não só de sacrifício como de transgressão. Nenhuma é maior que a de Gong Er, que desafia as regras impostas à sua própria condição de mulher – num eco curioso de uma outra personagem de Zhang Ziyi, a de Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000).
“Nada dura para sempre”, diz Gong Er a Ip Man. Podia ser a tagline de todos os filmes de Wong Kar-Wai, já que afinal o seu cinema é o dos instantes de eternidade que cristalizam possibilidades que não se realizam, que estão sempre condenadas. Gong Er e Ip Man têm esse instante, rodopiando num quase-beijo no meio de um combate, mas perdem-no com a guerra, que destrói a possibilidade de um amor como quase destruiu o seu país. Ficam os detritos da lembrança, o botão do casaco para a viagem nunca feita e a confissão tardia na casa-de-chá de Hong Kong, uma das cenas mais belas e tristes do filme, com os grandes planos de Zhang Ziyi que parecem sair precisamente de um “sonho de amor” (o nome da ópera a que assistem).
O final é de esperança, reconhecendo o triunfo de Ip Man na sua nova vida em Hong Kong, que lhe abriria as portas ao reconhecimento mundial (um curioso duplo de Wong, que também nasceu na China continental e se notabilizou em Hong Kong?). Por muito que o filme de Wong Kar-Wai seja uma homenagem ao mestre de artes marciais, não podemos deixar de ver Yi dai zong shi como um canto triste à dor e ao sofrimento do século XX chinês e às vidas afectadas pelas vicissitudes da história, ou, porque estamos a falar de Wong Kar-Wai, do destino.