Numa das cenas do “original” RoboCop (RoboCop – O Polícia do Futuro, 1987) – uma daquelas que qualquer fã saberá de cor e salteado – a personagem Clarence Boddicker chuta sem floreados a seguinte deixa na direcção de duas senhoras muito simpáticas: Bitches, leave! Esta grotesca e muito pouco digna expressão não estava no argumento original, tendo antes provindo directamente da cabeça do realizador do filme. Não contente com esta indecência, o senhor Verhoeven – segundo os intervenientes na dita cena – tratava as próprias actrizes por bitches, isto porque ao que parece ainda não dominava na plenitude todos os contornos da língua inglesa e não sabia que tal palavra era muito feia. Miguel Ferrer, um dos actores, afirmou que no take final Verhoeven despediu-se assim das duas amorosas meninas: Ok, bitches, bye bye, nice bitches, thank you, bitches. Indecente e pouco profissional.
Felizmente que esses superficiais e mesquinhos anos oitenta já se foram há muito, e agora há valores e respeito institucional a prevalecer na relação entre actores e realizadores. Não duvidamos, por isso, do completo profissionalismo de José Padilha, que, pela amostra do resultado final do novo RoboCop (2014), deve ter sido muito competente ao nível do domínio da língua inglesa, pois as granadas misantrópicas e misóginas foram devidamente rematadas para canto, num gesto de inegável valor e que muito saudamos.
Outra ausência de que nos congratulamos, nesta nova versão, é a do violento grafismo de tripas, corpos derretidos, corpos desfeitos e das demais vilanias sanguinárias do filme de 1987. Este é um filme que muitas crianças irão ver, possivelmente com os seus papás, e é muito pouco desejável que as ditas se sintam impressionadas com avalanches de gratuita carnificina, sobretudo para quem joga Team Fortress 2 apenas três horas por dia. Não é por acaso que algumas das crianças que viram o filme de 1987 em 1987 são hoje sub-secretários de Estado ou admiradores dos canais Fox. Os danos colaterais são sempre amplificados nestas tenras idades.
E para um filme destinado à faixa etária 6-12, é naturalíssimo que as cenas de “acção” estejam bem ao gosto dos pequenos, que são os homens de amanhã: “cinema-caos”, “câmara-parkinson”, “que se passa ali? não estou a perceber nada” e demais técnicas que já não estão ao alcance de pessoas com mais de vinte e cinco anos, umas autênticas marrecas audiovisuais. Este “novo cinema” é destinado não a um novo tipo de espectador, mas a um Novo Homem, que já se libertou de certos e ridículos limites da percepção sensorial. Os outros, velhadas da mise-en-scène, que fiquem com o filme de 1987 e derivados. E arranjem umas muletas também.
Estão de parabéns Padilha, argumentistas e produtores que transformaram um subversivo, radical e violentíssimo filme num novo modelo muito mais de acordo com os cíni…perdão…os hipó….perdão…os salutares tempos em que vivemos, em que por exemplo a cidade de Detroit apenas tem 18% de taxa de desemprego, quando em 1987 era de 125%, e daí não haver razão para nesta nova versão existir qualquer vislumbre sobre a crise social de uma cidade. Isto é cinema, como diria mestre Gabriel Alves, “fresco” e “arejado”, bem ao contrário da poeira “abafada” e “asfixiante” do meliante Verhoeven. Os blockbusters estão cada vez melhores.