(…) o fantasma não consiste apenas em um material a ser analisado (…); ele também é um resultado da análise, um termo, um conteúdo latente a ser identificado por trás do sintoma. De símbolo mnemônico do trauma, o sintoma se torna então mise en scène de fantasmas (assim, um fantasma de prostituição, de “rodar a bolsinha pela calçada”, poderia ser reencontrado detrás do sintoma da agorafobia).
Jean-Bertrand Pontalis, Origens do fantasma, fantasmas da origem
O instante da decisão é uma loucura.
Kierkegaard
Eu te asseguro. Não me digas não; toma cuidado: tudo declina, tudo desaparece. É preciso que alguma coisa fique de nós…
Léona Delcourt (Nadja) a André Breton
Em astronomia, constelações designam aqueles conjuntos ou aglomerados de estrelas que inspiraram aos astrônomos da Antiguidade a idéia de figuras de deuses, animais… as palavras-chave contidas por esta noção: imaginário e figuração. Estes textos vão tentar extrair dos filmes – na precisa medida das associações que me forem sugeridas por outros filmes, outros corpos fenomênicos ou culturais que se espraiam por minha consciência – percepções determinadas por estes dois princípios. O grande fio condutor e interlocutor destas “viagens” figurativas e inferências serão o meu Desejo e o meu imaginário: no filme tratado, vislumbrar (como em um palimpsesto) aqueles em quem ele se filia figurativamente, mas também extrair do filme presente as minhas imagens fantasmas, elaboradas pelo Desejo e tamisadas pela Memória, cinematográfica e biográfica.
Quando Vincent penetra no novo mundo que se destinou a devassar – a princípio a título benemérito -, sabemos o que o espera: um ponto de vista emaranhado, enviesado, alinhavado ou mira. Uma teia à espreita: silhueta feminil e expectante, demarcando sua entrada como um evento cerimonial, Outro – talvez os primeiros passos de Orfeu no Hades, onde Eurídice aconchega o nupcial e fúnebre leito; dado a esquivança da personagem que o contempla (à direita do campo, entrincheirada), sua demiurgia – uma plongée, verticalidade divina assomando (assombrando) o ar citadino e solar, questionamo-nos: quem é Vincent? Que demônios abriga, a que Doppelgänger serve?
Recém-advindo da Guerra da Coréia, duas mulheres martirizam sua memória: a namorada que o esperou em vão, a mãe que morreu; ambas presentes – na recriminação velada do reencontro diante da vitrine, na memorabilia dos arquivos da Guerra na TV. Uma terceira vai avizinhar esta esperança e este luto, aliciá-las para um conto lúgubre e erótico, lugar de reconciliação masoquista: Lilith (Lilith e o Destino, 1964) recontará esta odisseia, imemorial e seviciante ad libitum, onde uma mulher encanta um homem e destrói um outro, instala na clareira do Cosmo um Caos e inaugura no Caos uma nova Ordem, noturna e devaneante, ardorosamente maligna; a sequência deste declive pouco importa, a impassibilidade cariciosa com que a teia-invólucro embalsama o cadáver amado, muito menos; o homem, menos ainda: Vincent e Stephen são peças intercambiáveis de um merry-go-round pulsional, fadado ao xeque-mate entre Eros e Thanatos (Thanatos mascarado de Eros). Lilith, filmado pelo branco e cinza translúcido da fotografia do mago dos espelhos, Eugen Schüftan, parece aspirar a outras modulações entre o preto e o branco, decididamente xilográficas: o seu caos é de ordem mais arquetípica, anterior à distinção entre o preto, o cinza e o branco, a Criança e o Adulto, o Homem e a Mulher, a Caça e o Caçador. Mas seduzir um intruso, integrar uma presa ao metabolismo do predador exige um álibi: o travesti. Se Lilith parece esposar a diafaneidade luminosa da escola francesa impressionista, é para mascarar a infernal démarche expressionista de que é devedora: a experiência e o desejo com que o filme se acumplicia são o de Lilith, arcano cuja presença vela e desvia a trajetória da luz, a retidão do Logos e do Dever (“Vá embora; não posso ser salva pela Honra”); se Vincent é aquele com que certos planos subjetivos nos identificam, é porque aqui se encena um ritual semelhante àqueles descritos por Jean-Pierre Vernant nos mistérios de Elêusis, quando um espelho postado à entrada da gruta revelava não a face do fiel (desfocado sempre o primeiro plano), mas a vertiginosa profundidade de campo onde o deus, na distância de seu vaticínio ignoto, se revelava (apesar e devido à opacidade do primeiro plano); em Lilith, não por acaso, a profundidade remete o campo às suas origens óticas flutuantes, flou: quem realmente determina o que se deve ver não é aquele que se mostra ao primeiro e central locus (Vincent), mas aquela que aparece às margens, no anteparo de uma tela de arame, habitando o nó górdio do plano; no princípio do filme, os doentes do asilo ocupam as bordas, os vãos das escadas (“Get out of here!”), as contiguidades das alamedas: No trespassing. Lilith vai descrever a aventura, ritualizada em atos impressos na superfície mnemônica do fotograma, de uma transgressão; das margens e dos fundos para o centro do plano, da deriva psicótica para a clareira de uma aprendizagem: o Vincent que implora por ajuda no último fotograma é aquele que aprendeu que o demoníaco (o amour fou, a Guerra, a castração) é condição indispensável à forja de uma consciência, a um itinerário de conciliação; necessária, mas não suficiente: é preciso aceder ao Outro – este óbulo, esta maldição, e em um mesmo movimento – para completar o circuito da parábola, e reencontrar-se ao espelho.
A arte maior desta obra outonal (a última de Robert Rossen, especialista em retratos sociológicos dégradés de uma humanidade american way of life, devorada pelos fantasmas que o capital sedimentou no way of life) consiste na diversidade vertiginosa do uso de suas máscaras: se Thanatos dá os lances e as cartadas, é percutido por uma melodia suavíssima (by Kenyon Hopkins), edulcorado por fluxos (o rio) e entretons (o branco) que pertencem à infância, à aurora e ao primeiro amor – não, como aqui, ao Sturm und Drang da paixão crepuscular e luciferina… Se Lilith seduz a Vincent e a Stephen (como a nós, como a todos aqueles que lhe atravessam o caminho, enleados pela toada da flauta de Pan), é porque se traveste com os encantos de uma oferta maternal; é a diafaneidade de sua presença – identificada com o coleante rio, o serpenteante da melodia infinita e a predominância virginal do branco – que serve de meio-condutor para a armadilha; se a esquizofrenia é essencial para se compreender o fascínio exercido pela personagem, é porque esta consiste em um sufrágio do dom: uma abertura a todo desejo possível, uma incondicional oferta de escuta ao Outro que me habita (minhas frestas, meus escaninhos). A criança com quem flerta no meio da festa, a lésbica paranóica, Stephen (em quem vê um Duplo do irmão, a quem igualmente seduziu e induziu ao suicídio): Lilith não retrocede diante de nenhuma forma de dádiva erótica, de troca ou conluio; ela é pura doação de ser; “Eu mostro meu amor por todos vocês, e você me despreza”. Se Harpia ou ninfa demoníaca, receptáculo de Eros ou Thanatos, Diana caçadora ou a sedutora do mito judaico, é antes de tudo uma força da Natureza (a euforia com que morde a folha “envenenada”, com que cospe na correnteza, resgatando uma primordial cumplicidade); com os préstimos da pulsão, a doença modelou um espécime magnífico, feito de traços primevos: daí a sua identificação com imagos da Natureza, daí a incandescência parasitária com que dota tudo aquilo que toca.
Os arquétipos evocados por estas cores e estes ritmos parecem pertencer ao domínio do celestial, a mise en scène afetiva deste corpo sugere a doçura evangélica, o canto e a carícia aliciantes levam os personagens a experimentar o Eros mundano como um Ágape redentor, lugar de acolhimento e de reconhecimento; mas a casa de meu Pai possui tantas moradas!, já nos advertia uma outra oferta de Divino. Lilith é um tenebroso conto pagão de vampirismo “que se faz passar” por uma parábola de transfiguração pelo Amor, uma litania trágica como um impromptu lírico; esta história, velha como o Angst e a Morte, sempre embalou nosso sono, nossa crença. Sobretudo por cantarolar um imemorial refrão: se a noiva abandonada e a mãe morta advém à presença por intermédio de Lilith, é porque ela realiza uma operação paradigmática de todo fantasma – ser o meio e o lugar de uma síntese, onde o passado e o presente se tornam um, onde a mãe e a amante acabam associando-se por intercessão de um mesmo fenômeno, de natureza mnemônica: uma superfície espelhada. Quando Vincent, no início do filme, reencontra a ex-noiva, ela nos aparece no contracampo de sua imagem refletida no espelho, introduzida por um fondu; esta superfície, no seio da qual uma imagem do passado se mostra porosa ao presente (refletida, repetida; como se o tempo não tivesse passado, como se o Mesmo e o Outro fossem um só) é a chave para a encantatória seqüência do piquenique, onde a água do rio, vasculhada ardentemente pelos olhos de Lilith, retoma por analogia o mesmo papel, atribuído à vitrine, de um vetor de presentificação do passado; não por acaso, Stephen conversa com Vincent sobre suas origens, aquilo de que não se foge: “Te parece que eu sou judeu? Não, eu sou de origem polonesa. Meu avô era padre”.
Superfície violentamente ondulante (a miríade de planos acelerados, os zooms vertiginosos sobre a torrente, a música precipitada por stacatti tentam nos contagiar com a excitação experimentada por Lilith, à espreita da caça), onde o fatum se encarna e a imagem de Orfeu vem perder-se: decifra-me ou devoro-te. Mas uma advertência fere a despreocupação deste dia claro de verão, uma cicatriz: novamente um fondu, agora relacionando a gargalhada cristalina de Lilith Arthur à tempestade que se avizinha… Esta superfície coruscante é um ritornello, cuja recorrência orquestra as infiltrações oníricas do filme: a pedra faiscante que ela observa contra a janela; ou quando da sedução de Mrs. Yvonne (a intelectual lésbica), a água arpejada pelos raios de sol; em outra seqüência, sua sombra refletida em ósculo sobre a água, e um contracampo no-la restitui na distância enevoada de um lago, como a sedutora Wakasa de Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) a quem o artesão Gengûrô prometeu a vida… Se Lilith é o instrumento desta permeabilidade e contiguidade do espectral ao circuito das aparências, também é a presa: para ela, o Mesmo igualmente se refrata num Duplo, infletindo a linha sucessiva do tempo cronológico num círculo intoxicado, onde a repetição (o índex fenomenológico da pulsão de morte, para Freud) dá a nota: o irmão morto retorna na figura tímida e casmurra de Stephen, condenando-o de antemão às mesmas sevícias cariciantes, ao mesmo Destino…Tudo há de retomar o seu inelutável, daninho curso: o Fim ao Princípio, o Outro ao Mesmo, a Primeira Mulher…
Um parênteses: O fondu é na retórica clássica a mediação que possibilita ao espectador uma apreensão harmônica, sem fraturas ou dissensões (sem Diferença) do curso do filme: devedora da lógica causal e seqüencial (fez isto; logo, por conseqüência…). Mas em Lilith, a sua cadência regular e gradação são enganosas (aqui, como nas adjacências e entrelinhas que infiltram o texto do filme, não nos cabe falar ainda em travesti?); ele é um meio de revelação do fantasma, daquilo que insiste em voltar (em não passar): como no Sternberg dos filmes fetichistas com Marlene, trata-se de assinalar uma irreparável fixação na imagem (e o fantasma não possui justamente na imagem,- naquilo que nos aparece –, o seu invólucro?); em Dishonored (Fatalidade, 1931) e The Scarlet Empress (A Imperatriz Vermelha, 1934), o fondu prolongava indefinível, langorosamente, o intervalo entre os planos: ele negava a sucessão, confundia os espaços, iconizava o fascínio; um gato sobre a almofada resistia poderosamente ao contracampo, condenando-nos ao rigor mortis de um olhar enfeitiçado – olhar de basilisco encarnado no nitrato, não por acaso identificado pela tradição ao mau agouro, mortal coup de foudre…Em momentos cruciais do filme – na imagem arquetípica da noiva que magicamente “se faz presente” no espelho, durante o passeio (quando o leitmotif da água turbulenta e buliçosa é estabelecido), ou quando do encontro com a lésbica (onde assistimos a um decisivo desmoronamento do personagem de Vincent, que age com violência) -, o fondu é esta figura onde a fantasmagoria do Desejo se plasma na carne e na duração de Lilith: uma espécie de metástase ontológica se dá aqui, quando o próprio meio de decantação (exorcismo?) das aparências se deixa corroer, intestinalmente, pelo Mal… Não por acaso, o ponto de vista de Lilith (à espreita, atrás da tela de arame) reaparece com frequência ao longo do filme sem um pretexto diegético. Isto é, sem que a personagem esteja ocupando aquele posto, encarnando aquela vidência; o tempo e o espaço do filme são agora o seu espaço e o seu tempo. À métrica precisa de estudo de caso de desafio à corrupção [The Hustler (A Vida é Um Jogo, 1961)], Lilith acrescenta uma inflexão expressionista- mas um expressionismo aquarelado do branco e do cinza, semeado de contraluz; um filme é também uma grande construção somática, onde a féerie e a psicose (a psicose como féerie) compartilham o mesmo leito crepuscular: as núpcias da Danação.