Pôr o realizador de alguns dos maiores sucessos de público no cinema português a adaptar um dos romances portugueses mais vendidos nas últimas décadas é um autêntico Ovo de Colombo, daquelas coisas óbvias depois de terem sido feitas. É também um sucesso garantido – será muito surpreendente se Sei Lá (2014) de Joaquim Leitão, baseado no livro homónimo de Margarida Rebelo Pinto, não for um estrondoso êxito de bilheteira. Pode ridicularizar-se a escolha, pode lastimar-se Leitão por andar a fazer “estas coisas”, mas é uma excelente jogada de Tino Navarro como produtor. Se um projecto deste tipo consegue almejar a ser um filme decente é outra questão (a que tentarei responder).
Dizer-se que o cinema comercial (uso este conceito por facilidade, leia-se: cinema feito para agradar a muita gente) em Portugal é mau é visto como um ataque dos críticos e pseudo-intelectuais (essa corja) contra quem tenta levar o nosso cinema por outros caminhos. No entanto, olhando para os objectos em si, principalmente nestas últimas décadas, o que mais se encontra são palidíssimas imitações do que se faz “lá fora” ou experiências mais autistas do que as do cinema de autor [(também uso este conceito por facilidade, leia-se: cinema feito para agradar ao próprio realizador) (temo que as minhas explicações parentéticas firam mais susceptibilidades do que os ditos conceitos, mesmo que fáceis; mais valia ter ficado quieto)]. Longe vão os tempos em que José Fonseca e Costa e António de Macedo filmavam regularmente ou António-Pedro Vasconcelos estava no seu auge criativo (os seus últimos dois filmes serão certamente os piores). Estes três realizadores (e talvez possa aqui incluir Fernando Lopes) foram aqueles que trabalharam mais bem o cinema clássico (ou convencional, no sentido de que segue convenções narrativas, talvez queira escrever cinema narrativo, mas… bem, é melhor deixar-me de explicações parentéticas) ou dentro dos códigos de certos géneros (caso de Macedo na ficção científica, mas também de Vasconcelos e Lopes no policial).
Dos nomes actuais (ou já não tão actuais assim), safam-se muito poucos. Daí que seja uma evidência escrever que Joaquim Leitão é o melhor dos cineastas comerciais (e um dos melhores realizadores portugueses). Desde a obra de estreia, Duma Vez Por Todas (1986), percebia-se que o realizador tinha uma clara vantagem sobre aqueles que não conseguiam dominar os conceitos mais básicos da realização: sabia filmar.
Pegue-se em Sei Lá (já que é sobre ele que se está a escrever). Poderia ser mais uma ridícula tentativa falhada de imitar Hollywood; uma espécie de Sex and the City sem qualquer especificidade (apesar de ser lisboeta); quatro amigas – a santinha, a putéfia, a que não é uma coisa nem outra e a protagonista com o exclusivo da voz off – a debitar banalidades sobre as relações humanas e as histórias dos seus (des)amores; uma comédia romântica regulamentar, que partia de uma guerra de sexos pobrezinha e se ficava pelos lugares mais comuns. De resto, o material de origem (não li o romance de Rebelo Pinto, mas o argumento também foi assinado por si) é isso mesmo. E ainda acrescenta um inverosímil enredo de espiões do SIS e terroristas da ETA, cujo desenlace é das coisas mais descabidas de que há memória, e diálogos pavorosos que acentuam as deficiências descritas. O argumento desaproveita ainda o facto de ser uma viagem ao passado, ao único momento de prosperidade da recente História de Portugal – Sei Lá é um filme de época, da altura da EXPO 98, em que o romance foi escrito e se pensava que o futuro seria radioso, mas pouco disso está no filme (uns telemóveis e computadores desactualizados). Louve-se o retrato certeiro de uma franja da sociedade – os jornalistas e os socialites, o arrivismo e a pequenez (visíveis nas personagens de Rui Unas e Rita Pereira) – e a concisão do argumento, que vai sempre straight to the point.É neste último ponto que se começa a notar (ou a querer ver) a mão de Leitão.
A economia narrativa de Joaquim Leitão, que em poucos planos consegue filmar o mais importante de cada cena, é um dos seus traços característicos e das suas principais qualidades. Não é um realizador vistoso, principalmente desde que decidiu que a vida era mais interessante do que os filmes (como nos disse, ao Ricardo Vieira Lisboa e a mim, na entrevista que lhe fizemos), no entanto é tremendamente eficaz. Essa eficácia, ou melhor, essa competência eleva um argumento medíocre a uma história bem contada (de que se terá de descontar as parvoíces, que não são culpa dele). Ultimamente mais confortável na comédia de costumes do que no policial [Quarta Divisão (2013), cujo enredo era demasiadamente rocambolesco e tolhido pelas reviravoltas, foi um passo em falso], Leitão tem-se revelado também um bom director de actores. Leonor Seixas aguenta-se bem como protagonista, combatendo as vozes off expositivas com brio, sendo só derrotada na cena do regresso do ex-namorado basco (mas aí o rival, um diálogo absolutamente medonho, mostrou-se forte de mais para ela, como seria para a maioria). O galã António Pedro Cerdeira também não vai mal (dentro das limitações do papel) e os secundários – Rui Unas, Ana Rita Clara, Pedro Granger – dão cor à história sem caírem na histrionice, excepção feita a Rita Pereira, numa caricatura atroz.
Ou seja, Sei Lá é uma tentativa de imitar as comédias românticas à la Sex and the City, só que não é falhada. Aliás, mede-se bem com outras comédias rotineiras importadas de Hollywood (que têm a qualidade de um produto muitas vezes fabricado), o que quase nunca se pode escrever sobre filmes portugueses. Tal deve-se, quero crer, ao realizador Joaquim Leitão, que, noutros tempos e noutras paragens, seria um valioso homem dos estúdios, talvez não um autor, mas também não um tarefeiro. Porventura, um competente artesão da estatura de um Michael Curtiz.