Mesmo antes de começar, não conseguimos escapar. Mesmo antes de começar o jantar que ocupa o filme, já os empregados se escapuliram, antes que chegassem os convidados, que hão-de chegar duas vezes. Mesmo antes de começar, há uma frase do próprio Buñuel que paira sobre o filme: “a melhor explicação para este filme é que, do ponto de vista da razão pura, não há qualquer explicação”. À medida que os convidados se revelam incapazes de abandonar o jantar e sair do filme, apesar de nada os impedir de o fazer, Buñuel mostra-nos a desagregação das convenções e moralismos sociais. É um pesadelo de desmoronamento lento, a partir de uma simples premissa absurda que carrega o filme na complexidade da sua resolução. Uma fábula sob a forma de um enigma sem solução prende o espectador ao destino destas personagens, exiladas num limbo auto-imposto.
Como aqui nos mostra Buñuel, não há nada mais incriminatório da alta sociedade do que um retrato próximo, que permite observar os excessos e opulência dos seus hábitos, e a artificialidade dos seus maneirismos, que ao mesmo tempo perpetuam a sua posição e condenam o resto da sociedade. El ángel exterminador (O Anjo Exterminador,1962) é uma implacável alegoria sobre a sociedade espanhola, sobre a sua classe dominante e defeitos intrínsecos, aqui durante uma repressiva ditadura, mas que pode ser sobre qualquer grupo numa posição dominante, em qualquer lado. O principal atributo do filme é que continua ainda ferozmente actual e pertinente, mais de cinquenta anos depois da sua estreia, como se os perigos de fecharmo-nos a novas ideias e o ciclo de repetições vividos dentro do filme se aplicassem ainda à nossa realidade. É como um círculo fechado do qual não conseguimos escapar, mesmo antes de começar, mesmo a caminho de acabar.
El ángel exterminador começa com um plano do nome da rua (Rua da Providência) onde se situa a casa onde vai decorrer a história, que será quase cenário único da acção. Nessa casa, uma mansão palaciana, prepara-se um jantar para os convidados que estão a chegar, mas os empregados começam a fugir, sem razão aparente. Através do elemento preferido de Buñuel neste filme, a repetição, vemos os convidados chegarem duas vezes, como uma anomalia que anuncia algo de estranho, um déjà vu partilhado. Depois do jantar, os convidados preparam-se para regressar a casa, mas, exaustos, acabam por se deixarem ficar, para constrangimento dos anfitriões. No dia seguinte, quando se aproximam da saída da sala onde pernoitaram, as dúvidas crescem e todos ficam incapazes de decidir o que fazer: ninguém consegue sair. Ao mesmo tempo que ninguém tem a coragem de contrariar os outros, acham melhor deixarem-se ficar, numa indefinição que se vai arrastar.
Ao eliminar a noção de tempo, uma vez que os dias se tornam todos iguais, o espaço transforma-se no elemento primordial. Buñuel recorre ao espaço exíguo onde os personagens são obrigados a permanecer, ou onde escolhem permanecer, através da não-escolha, para examinar o seu comportamento, como que tornando a tela num enorme palco de teatro. Ao mesmo tempo, ao fechá-los num espaço único, obriga as personagens a terem que encarar a sua realidade imediata e, assim, saírem da sua zona de conforto, da sua realidade artificial de um mundo fechado a casas de prosperidade e abundância. Obriga-os, desta forma, a encarar a existência de uma outra realidade, de privação e recursos escassos, onde tudo não lhes é servido à mesa, e força-os a abandonarem as aparências de que tudo vai bem. Mais do que um ensaio surrealista, El ángel exterminador revela-se um estudo sobre a natureza humana, como se estivéssemos a observar não uma realidade alternativa ou onírica, mas o comportamento real de um grupo peculiar, perante uma anormalidade temporária. Inerente é também uma crítica à passividade perante a necessidade de agir, à apatia contagiosa e a mentalidade de grupo, onde ninguém quer agir contra a corrente. Lá fora, na entrada da casa, começam a juntar-se pessoas à medida que os dias se sucedem, comentando a estranheza da situação. Mas num toque genial de Buñuel, há uma inversão sobre a culpa dos ocupantes da casa em resolverem a sua condição: se ninguém consegue sair da casa, também ninguém consegue entrar. Na inacção, todos são culpados.
Para um filme que vive primeiro de uma situação absurda e, depois, de um imaginário repleto de toques surrealistas para exprimir a distância em relação à realidade conhecida, o diálogo é essencial para revelar quer as nuances da narrativa, quer o carácter de um mosaico de diferentes personagens. Mas mais do que um filme recheado de exemplos e imagens surrealistas, é uma desconstrução de uma determinada realidade, do comportamento em grupo, das regras de convívio desta classe e do seu mundo próprio. À medida que vão piorando as condições dentro da casa, certas frases e acções ajudam a compor o retrato. Entre apelos a manter a racionalidade e o decoro, a certa altura alguém diz “Acredito que o povo, as pessoas de classe baixa, são menos sensíveis à dor. Nunca viste um touro ferido? Nem um traço de emoção”. Mais tarde, quando algumas personagens destroem uma parede para chegar à água que começava a escassear, os outros atropelam-se e empurram-se para chegar primeiro. Apesar de manter-se igual, o espaço reduz-se nas composições de Buñuel, sempre com várias figuras em cada enquadramento. Os conflitos entre personagens sucedem-se, tal como os comportamentos egoístas, a histeria e o caos instalam-se – há sempre alguém a dizer que não podem ficar histéricos, como se nesta repetição não houvesse alarmismo – em suma: a superioridade moral evocada antes revela-se como uma anedota. Será esse o papel do surrealismo na vertente absurda aqui explorada por Buñuel, para expor a hipocrisia das personagens, e contrastar a diferença entre o que as personagens defendem no início, e o que fazem mais tarde; e entre o que é dito, e o que vemos. Se em Huis Clos, a peça de 1944 de Jean-Paul Sartre, três pessoas descobrem-se condenadas eternamente a um quarto de onde não há saída, para chegarem à conclusão de que o inferno são as outras pessoas, aqui Buñuel parece insistir na mesma ideia.
O comentário crítico alastra-se também à religião, pelo seu papel na defesa da conformidade, unidade e seguidismo. As personagens parecem sentir-se culpadas por algum pecado que cometeram e pelo qual agora têm que sofrer, sem explicação. Já no filme anterior de Buñuel, Viridiana (1961), esta moral religiosa era colocada em causa, para usar um eufemismo. Nesse filme, que começa com uma rapariga prestes a entrar num convento mas que acaba por ser desviada para outros caminhos, há um casarão que é invadido por um grupo de mendigos. Essa invasão degenera num banquete de excessos violentos – como em muitos filmes de Buñuel, os instintos e a natureza humana acabam por se sobrepor a qualquer racionalização. Num registo paralelo a estes dois filmes, L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961) de Alan Resnais é um filme próximo, pela utilização do elemento da repetição e de um imaginário surrealista,que sinaliza um cinema pouco preocupado com a lógica ou linearidade. Nesse filme, que decorre num ambiente fechado de uma casa de férias, entre repetições e ciclos, também não há explicação para o que vemos, mas o objectivo é diferente, dedicado a questionar o papel da memória – mais subjectivo e pessoal, mas igualmente sem resolução anunciada, sem expectativa de fuga.
Talvez com a afirmação de Buñuel de que “a melhor explicação para este filme é que, do ponto de vista da razão pura, não há qualquer explicação”, a derradeira partida é para com o espectador, que decorrido todo este tempo, continua a tentar decifrar o mistério, e procurar encontrar significado onde ele pode não existir. Mesmo assim, não deixa de ser ainda notável o paralelo que se estabelece entre a realidade fechada do filme e o mundo à sua volta. Como também notável é o sentimento de aprisionamento ao ver o filme, da inevitabilidade de repetição, como nunca outro filme o fez – e que mantém assim também o espectador no tal limbo auto-imposto.
El ángel exterminador de Luis Buñuel será exibido dia 15 de Outubro na Casa das Artes de Famalicão, pelo Cineclube de Joane