Ler o fresquíssimo Projecto Estratégico para a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) é como reler tudo aquilo que nesta crónica tenho escrito há já mais de dois anos. Basta invertermos o que neste texto se promete como linhas orientadoras da nova administração para ficarmos com a noção exacta de como na RTP se tem desfigurado, retorcido, assassinado qualquer ideia de serviço público. A RTP não é uma estação pública de serviço público, mas uma empresa do Estado que trabalha em benefício do enriquecimento dos seus trabalhadores, quase todos eles sem perfil para fazerem parte de um verdadeiro projecto de serviço público. Há um ponto neste Projecto Estratégico que me é particularmente caro face à urgente necessidade de se devolver a estação pública às suas obrigações, isto é, face à necessidade de se encetar a sua purgação moral. No ponto 2, alínea a., lê-se: “A RTP deve apostar na diversidade e no entendimento dos espectadores como cidadãos e não como consumidores”. É exactamente isso que a empresa RTP (e os trabalhadores que nela se perpetuam) não tem feito: apostar na diversidade e tratar os espectadores como cidadãos.
Por muito que esta seja até ver apenas uma mudança de linguagem, a verdade é que a clareza e, sobretudo, a insistência deste Projecto em certas ideias deixa antever transformações importantes no horizonte. “Neste novo enquadramento”, lê-se nesse mesmo ponto, “a RTP deverá alcançar um posicionamento significativamente diferente daquele que desde sempre teve, e tal deve ser assumido, sem equívocos”. O novo posicionamento passa pela aposta séria em duas palavras que, por muito que os Contratos de Concessão insistissem nelas, nunca eram correspondidas na prática das sucessivas direcções: “qualidade e diversidade”. Tudo isto é um grandíssimo ovo de Colombo: a RTP prepara-se para levar avante um verdadeiro projecto que serve os cidadãos, que coloca essa missão acima dos descaracterizadores interesses comerciais que têm sequestrado a estação? Pois então, só me oferece dizer: aleluia! Um milagre face à completa inversão de prioridades, intelectualmente desonesta, moralmente corrompida, que tem presidido à direcção do canal. No seu espaço de comentário da SIC, Luís Marques Mendes fazia um exercício simples de colocar a grelha da RTP ao lado das da SIC e TVI. A sua conclusão – não precisava de ser Marques Mendes a concluir por nós, já que salta à vista, mas vamos continuar a denunciar o que é escandalosamente óbvio – é que, e parafraseio, até os nomes dos programas são parecidos.
Muito refrescante é ler no ponto 6 o seguinte: “Refira-se no entanto, que no operador público RTP não deve ser a vertente comercial a definir a natureza dos conteúdos a emitir, bem pelo contrário, a área comercial deve funcionar em articulação com as orientações das Direções de Conteúdos, que actuam com os seus próprios critérios”. Já antes, em vários momentos, o Projecto tornara clara a urgência em distanciar aquilo que a RTP é e faz – e quem serve, ou melhor, como serve quem serve – do que os privados são e fazem – idem. A minha passagem favorita surge entre parêntesis, de novo, no ponto 2, alínea a., onde se lê que a estação pública não pode ser entendida como “um serviço de programas (…) que procura disputar audiências com os serviços de programas privados SIC e TVI, apenas complementado com outros serviços de programas de menor importância”. Eis uma exemplar chapada na cara de quem tem arruinado – e se tem servido – da televisão estatal a coberto de agendas e orientações que não só lhe são estranhas como, na realidade, pela sua natureza, lhe são intrinsecamente contrárias.
Face a esta carta de intenções que faz abrir as janelas e deixar entrar o ar respirável da civilização, os trabalhadores da RTP já tornaram pública a sua posição: diz Paulo Mendes, dirigente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual, decerto representando todos os Fernandos Mendes, Carlos Malatos, Jorges Gabriéis, Mários Augustos e amigos deste mundo, que “os trabalhadores não se revêem no Projecto Estratégico”. Acrescenta, com a mesma falta de pudor que tanto tem afundado o canal no lamaçal das suas irresponsabilidades, que esta “opção por uma programação de serviço público vai fazer descer as receitas comerciais”. O problema dos trabalhadores da RTP é que não só não fazem a mais pálida ideia do que é serviço público como trabalham, barricados nas instalações do canal, com o intuito de sabotarem a sua própria razão de ser. Ou, pelo menos, encontram retoricamente a subsistência do seu trabalho nesse esforço de sabotagem.
Contra um plano que propõe o que parece ser uma racionalização dos meios em benefício da qualidade dos conteúdos, ergue-se a voz sindical em nome das receitas comerciais. Assim é o diálogo estabelecido com a tutela, o que muito diz do grau de seriedade com que tem sido respeitada a letra dos diferentes Contratos de Concessão com o Estado. Lamenta este sindicalista que este Projecto “mande as receitas comerciais para as urtigas”. Pois, é exactamente isso que faz: manda para as urtigas quem se indigna pelo facto de a RTP poder vir a deixar de se comportar como um player ilegítimo no mercado dos privados. Estas barbaridades que se ouvem, vindas das bocas de quem fala “vindo lá de dentro”, fazem-me lembrar aquela famosa observação de Groucho Marx em Duck Soup (Os Grandes Aldrabões, 1933): “Ele pode parecer-se com um idiota e falar como um idiota mas não deixe esse louco enganá-lo: ele é mesmo idiota”. Pela sua defesa acérrima do capital privado, parece-me que aquele sindicalista é ou parece ser mais marxista do que propriamente marxista.
Quanto à RTP2, o que se propõe neste Projecto é ainda pouco claro, ainda que se desenhe, na alínea b. do ponto 2, o perfil que se segue: “Alternativa e de perfil cultura, com programação temática e particularmente aberta à inovação, que faça também a cobertura do desporto amador, e que contemple de forma criativa o cumprimentos das obrigações com minorias, etnias e religiões”. Estamos aqui longe de perceber, muito concretamente, como será a RTP2 sob os comandos da nova direcção. O papel dado ao cinema na RTP como um todo parece, contudo, merecer especial preocupação por parte da administração, como se pode ler no ponto d. “Tendências e objectivos a desenvolver”. Ora, a primeira tendência e objectivo é logo, e cito, “Aumento da oferta de ficção no âmbito dos filmes e das séries”. Pouco mais se adianta, mas, como é alertado no começo, este documento dá apenas a ver um “plano geral” do que será a abordagem da administração ao conceito de serviço público – que, por se definir como tal, provoca desde já uma fractura com (más) práticas anteriores. No futuro próximo, depois de empossada a direcção, um outro documento, “programa de transformação da RTP”, irá pôr em evidência os “grandes planos” do Projecto.
No que nos diz mais directamente respeito, o cinema, proponho trazer à liça algumas intervenções recentes daquele que será o responsável pelo pelouro dos conteúdos, Nuno Artur Silva, para se perceber o que poderá constituir a nova orientação do canal nessa área específica da programação. Aqui o meu optimismo não é tão grande como o é na qualidade de um leitor que muito quer acreditar neste Projecto Estratégico. Os dados que me deixam algo apreensivo têm que ver com a “visão do cinema” que o fundador das Produções Fictícias tem veiculado em público. Veja-se o exemplo do programa onde Nuno Artur Silva aparecia como moderador e que, para mais, transmitia num canal fundado e, até há dias, dirigido por si: o desorientado e desorientante canal Q. O programa era um talk show cultural com o nome Culturistas. Na primeira edição, Nuno Artur Silva, na companhia de Pedro Mexia e Pedro Vieira, convidava João Botelho para falar sobre cinema português. Muito se falou da forma como o agora indigitado vogal da administração da RTP fez eco, num tom de ironia (sempre convenientemente) auto-desresponsabilizador, dos clichés mais disparatados que visam o “cinema de autor” e de como isso tirou do sério tão sanguíneo convidado: “Este canal e os canais à volta estão sempre a denegrir o cinema português. É uma chatice. É uma coisa que já não aguento”. Assim começou Botelho numa inspirada rajada de palavras (que se tornou viral) a favor do cinema português, mas, mais que isso, contra a corrente dominante de pensamento e os seus argumentos falaciosos: “Sabes qual é o cineasta português mais comercial de todos? Chama-se senhor Manoel de Oliveira. É mais comercial que qualquer tipo que faça aqui 400 000 espectadores. O comércio não é aquele número de espectadores, meu querido. É “quanto é que custa?” e “quanto é que rende?” – isso é o que os americanos fazem, também quero isto cá. (…) Se calhar o Oliveira é o primeiro, depois é o Costa e eu estou em quinto ou em sexto. E os outros todos que se dizem comerciais perdem connosco, todos! Porquê? Porque não saem de Badajoz. Tenho muita pena”.
O realizador de Tráfico (1998) dedica grande parte da conversa à destruição das ideias feitas e da falta de visão de quem, por norma, sustenta esse discurso pequenino sobre o cinema português. Um discurso que, por aqui e por ali, se percebe que não havia sido apenas objecto de piada “inocente” por parte de Nuno Artur Silva – veja-se quando, em tom depreciativo, este escolhe como um dos seus filmes portugueses favoritos, e parafraseio, “um filme de Oliveira, um daqueles mais pequenos”. Poder-se-ia dizer que Nuno Artur Silva é, antes de tudo, um homem da escrita, do humor, e que, por a sua praia não ser a Sétima Arte, se tenha deixado assaltar pelos lugares comuns mais primários associados ao cinema português. Contudo, penso que a inspirada “puxadela de orelhas” de Botelho não sortiu efeito. Aliás, ao contrário do que muitos saberão, a ligação de Nuno Artur Silva às coisas do cinema está longe de ser circunstancial e, portanto, as suas opiniões não são para ser encaradas como “impressões do momento” destituídas de convicção.
Numa entrevista recente dada ao suplemento Actual do semanário Expresso (3 de Janeiro 2015), talvez o trampolim que precisava para chegar ao tão desejado lugar de programador da RTP, Nuno Artur Silva conta que, se soubesse o que sabe hoje, teria optado pelo curso de cinema no Conservatório ao invés daquele que acabou por tirar, de Literaturas. Sobre a sua ligação ao cinema, é mais revelador ainda quando, nem de propósito, é questionado sobre se teria, e cito, “valido de alguma coisa ter sido director de programas de um canal generalista”. Nuno Artur Silva começa por recordar como foi gratificante a sua experiência enquanto assessor da direcção de programas da RTP em 1996: “Gostei imenso”. Depois, conta como a paisagem mediática ou audiovisual mudou muito desde esses tempos. Não deixa, aí, de discorrer sobre o cinema português, que, diz ele, “tem sido dominado pelo cinema de autor, que vira costas à televisão e não consegue manter uma produção regular. Não há aqui uma paisagem estimulante”. Quando o cinema português – o de autor, pois – é celebrado como nunca antes – aqui no À pala de Walsh temos registado essa vitalidade nas nossas listas do ano, desde logo, na última, que conta com dois filmes nacionais no pódio -, não posso deixar de me interrogar sobre como é que Nuno Artur Silva não se sente estimulado por tal “paisagem”. Mais que isso: receio que estejamos a falar de paisagens diferentes ou, melhor dizendo, de estímulos diferentes.
Este discurso preocupa. Preocupa porque, como sabemos, ele afina pelo diapasão do dominante lobby da publicidade e da televisão. O lobby que, hoje, controla o SECA (escrevi sobre tal aberração aqui). É um discurso que tem como porta-estandarte o “rebelde das cem causas”: António-Pedro Vasconcelos. Ele é o homem que, enquanto a televisão pública destruía a possibilidade de um serviço público de televisão, ia assobiando tranquilamente para o lado, demasiado ocupado que estava a comentar futebol naquela estação. Ele é o homem que emerge para a acção cívica mais tonitruante em defesa dessa empresa, mal surgem as primeiras notícias sobre o plano da sua privatização por parte do governo – “the horror, the horror”. António-Pedro Vasconcelos, que apelidara de inúteis os esforços de uma petição que reclamava por uma RTP2 que tivesse mais e melhor cinema, cria um movimento cívico em defesa da subsistência daquela realidade empresarial, mas tomando o serviço público como facto consumado. Esse movimento tinha como segundo rosto… quem mesmo? Acertou: Nuno Artur Silva. O objectivo foi conseguido: a RTP não foi privatizada, mas, ao mesmo tempo, nem por isso a luta por um serviço público de televisão prestado pela RTP mereceu entrar na agenda de tais intervenientes.
Chegamos ao dia de hoje e não posso esconder o meu receio em relação à visão politicamente correcta de Nuno Artur Silva sobre a RTP e o cinema. Uma visão intoxicada, desde já, pela proximidade política com o vertiginoso cidadão que se julga Homero, Ford, Hawks, mas que abomina – ou acha pouco estimulante… – tudo o que mexe para os lados do já referido “cinema de autor”. Portanto, se quisesse ser bilioso, poderia responder à pergunta “E o que achas do Nuno Artur Silva na RTP?” com um “Diz-me com quem andas, dir-te-ei…” Mas não, não seria preciso ir tão longe. Podia ser antes um “Diz-me o que disseste, dir-te-ei…” Nah, basta talvez, e muito simplesmente, relembrar a lição de Groucho Marx: cuidado com as aparências, que elas, por vezes, mentem pouco. Demasiadamente pouco.