Numa entrevista com Peter Bogdanovich, e falando-se de Under Capricorn (Sob o Signo de Capricórnio, 1949), à pergunta “This picture was not a success, but why do you think many French critics consider it one of your finest films?”, Alfred Hitchcock respondeu “Because they looked at it for what it was and not what people expected.” Não se pedia maior clareza numa réplica tão espontânea. É preciso abandonar quaisquer expectativas para que Under Capricorn venha ao nosso encontro revestido, afinal, da maior das essências hitchcockianas. E se quisermos, ainda assim, referir um filme menos “típico” de Hitchcock, talvez a verdadeira carta fora do baralho seja Mr. & Mrs. Smith (O Sr. e a Sra. Smith, 1941), uma comédia romântica que tem de Hollywood, aquilo que lhe falta do seu realizador: quase tudo.
Sendo o segundo filme gerado pela Transatlantic Pictures (a produtora independente que Hitchcock formou depois da ruptura com David O. Selznick, o produtor que o levara para Hollywood), e a segunda experiência de Technicolor, Under Capricorn ficou para a história como um filme condenado à subestimação, pela quase ausência do clássico suspense, que até esse momento caracterizara definitivamente a obra de Hitchcock, sobretudo na fase americana. No entanto, este foi o filme que o seu autor quis realmente fazer – podemos aqui, tal como em Rope (A Corda, 1940), o anterior, falar de um autor livre da sombra ditatorial do produtor – na mesma medida em que The River (O Rio Sagrado, 1951) foi um filme livre de Jean Renoir, desagrilhoado de Hollywood e, por isso, olhado como um parêntesis na sua filmografia. Nas muito certas palavras de João Bénard da Costa – relativamente a The River –, que aqui tomo a liberdade de me apropriar, por comparação a Under Capricorn, este está para a obra de Hitchcock “um pouco como as Afinidades Electivas para a de Goethe, a Mensagem para a de Pessoa, a Vénus (de Dresde) para a de Giorgione, A Clemência de Tito para a de Mozart. São coisas muito grandes, muito belas, mas que parecem pouco características, onde só com alguma dificuldade encontramos o que mais nos fascina nesses autores”. Pois que, da essência hitchcockiana, tudo se pode encontrar, demoradamente, em Under Capricorn: a perícia técnica e narrativa, a ambiguidade das relações entre as personagens, e um tom melodramático que já antes fizera de Rebecca (1940) e Notorious (Difamação, 1946) obras intensas, superiores à categoria unívoca do suspense.
Baseado no romance homónimo de Helen Simpson, Under Capricorn passa-se na Austrália de 1831, quando esta era uma colónia britânica destinada a prisioneiros, e retrata a chegada de Charles Adare (Michael Wilding), primo do Governador, ao contexto de uma casa repleta de fantasmas “interiores” (assemelhando-se, numa vista geral do exterior, ao castelo do Drácula, na Transilvânia, ou seja, em nenhures), onde Sam Flusky (Joseph Cotten), ex-recluso agora bem sucedido, lhe oferece jantar e, sem prever, oferece também uma performance embriagada e embriagante da esposa alcoólica: Lady Henrietta Flusky – Ingrid Bergman numa brilhante interpretação. O mesmo se pode dizer de Margaret Leighton, a sinistra camareira Milly, que reproduz impecavelmente a matriz perversa de Judith Anderson, em Rebecca.
Com efeito, Hitchcock foi um leitor atento de uma certa linha da tradição gótica, onde a moral e os códigos sociais se sobrepõem a qualquer ideia de felicidade, daí que não seja disso que se ocupam os seus filmes – da felicidade – mas sim da culpa, como nos demonstra, com perseverança, o juiz Renato Barroso no seu recente e extenso livro A Culpa no Cinema de A. Hitchcock; seja ela aplicada a alguém, ou sentida por outro. Nestes termos, Under Capricorn, em particular, transporta-me para a atmosfera literária de Nathaniel Hawthorne (e de Daphne du Maurier, Charlotte Brontë…), como se o alcoolismo de Henrietta fosse a letra escarlate que Hester Prynne traz no peito, e onde o segredo concentra, no momento da sua revelação, a maior força destrutiva. Do mesmo modo, ninguém esquece a caveira verde embrulhada num lençol, que Henrietta descobre em cima do seu leito; uma das imagens mais desconcertantes do filme, e que se dá ao olhar do espectador como um breve vislumbre de estranheza e horror.
Não por acaso trouxe a este texto The River, de Jean Renoir, em tudo diferente de Under Capricorn, excepto nos aspectos formais e nas intenções de ambos os realizadores: uma câmara que se move suavemente atrás da cauda da história (com long takes que, no caso de Hitchcock, favorecem os dispositivos de voyeurismo), sem se preocupar demasiado com os pormenores narrativos, mas sim procurando maximizar os meios para a contar – repare-se no castiçal que enquadra Henrietta neste still… e o Technicolor, a maravilha do Technicolor!