Os vivos devem defender os que já não vivem da difamação, tal como esperamos que, em casos idênticos, os que vierem depois de nós estejam atentos ao que nós fizemos.
Schelling, Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana
Em 1980, no segundo volume de uma obra dotada de um título enigmático – Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien –, o filósofo francês Vladimir Jankélévitch dedicou cerca de duas centenas de páginas à análise do sentido de um único termo: o substantivo “méconnaissance”. Palavra sem correspondente directo em português, a méconnaissance designa, não o desconhecimento, mas o mau-conhecimento, isto é: um saber feito de equívocos e de mal-entendidos, que “passa ao lado” da coisa que presume conhecer, retendo apenas dela o inessencial.
Ora, na história do cinema, poucos autores haverá aos quais este conceito melhor se aplique do que a Manoel de Oliveira (e sinto-me particularmente à vontade para dizê-lo, uma vez que estou longe de ser um “oliveiriano convicto”). Conhecido, quase sempre, em função do acessório – tornou-se recorrente, nos últimos anos, a sua redução ao estatuto do mais velho cineasta do mundo (como se os seus últimos filmes carecessem dessa caução etária para serem legitimados, e como se, aos vinte e três anos, ele não fosse já um cineasta notável) –, Oliveira foi objecto de uma série de incompreensões que, sob a forma de máximas prêt-à-porter, se foram rapidamente interpondo, como um ecrã, entre o espectador e o seu cinema.
no passado dia 2 de Abril, as televisões portuguesas fizeram com a morte de Oliveira o que, infelizmente, quase nunca fizeram com a sua obra, a saber, dispensar-lhe algumas horas da sua atenção.
De entre essas máximas (para não irmos mais longe: aquela que nos diz que Oliveira só filmava em plano fixo), há uma que me parece especialmente tacanha, e até cruel: a de que, por pura e simples inépcia, Oliveira não saberia dirigir os seus actores. Trata-se de uma acusação que tem, pelo menos, a vantagem de pôr a nu uma das razões que está na base do mau-conhecimento da obra de Oliveira, nomeadamente: a opção (talvez inconsciente) do acusador por um sistema de referência bem definido – o do cinema naturalista. De facto, é apenas e só por comparação com o naturalismo da interpretação prescrito pela vulgata do actors studio, que se pode dizer que Oliveira não sabia dirigir os seus actores; é apenas e só por intermédio de uma exclusão a priori de toda e qualquer proposta que desafie a “naturalidade” do actor perante a câmara (a de Bresson, a de Straub-Huillet…), que se pode achar que Oliveira teria sido vítima da sua própria inaptidão nesse domínio.
Isto não significa – como é bom de ver – que, a partir daqui, toda a gente se encontre obrigada a gostar do cinema de Oliveira, do modo como muitos dos seus filmes se comprometem com a denúncia da artificialidade inerente a todo o acto de representação (veja-se, por exemplo, O Sapato de Cetim, de 1985), ou do modo como outros tantos fazem questão de se manterem fiéis à matéria literária dos textos que adaptam. Mas, sendo certo que “perceber” não é “abraçar”, parece-me evidente que, sem perceber, se abraça sempre bem pior.
Já agora (e só para terminar): no passado dia 2 de Abril, as televisões portuguesas fizeram com a morte de Oliveira o que, infelizmente, quase nunca fizeram com a sua obra, a saber, dispensar-lhe algumas horas da sua atenção. Num espectáculo mediático que primou, sobretudo, pela sua obscenidade (subitamente, e numa espécie de conversão colectiva instantânea, Portugal transformou-se numa nação de oliveirianos), houve uma frase – repetida ad nauseam – que me ficou nos ouvidos: “o país está agora mais pobre”. Certo. Mas, deu-se ele ao trabalho de saber, antes do dia 2 de Abril, da riqueza que tinha? Que cada um responda como bem lhe aprouver.