The lips of a strange woman drip honey, and her mouth is smoother than oil… But her end is bitter as wormwood, sharp as a two-edged sword!
Lincoln Pittridge (Ian Keith) citando a Bíblia, em The Strange Woman
Da mitologia grega, o mito de Narciso é, provavelmente, aquele que mais vem ressoando na contemporaneidade, outra forma de falar da sociedade ocidental como tantos filósofos dela têm falado: egoíst(ic)a, egocêntrica, auto-centrada, individualista – enfim, narcísica. Ora, em The Strange Woman (Uma Mulher Estranha, 1946), adaptado do romance homónimo de Bem Ames Williams, um dos filmes de Edgar G. Ulmer que sobreviveram (outros foram destruídos ou estão desaparecidos), Jenny Hager (arrebatadora, poderosa Hedy Lamarr) é a “Narcisa” por excelência, figuração que se não basta com a alegoria, antes atingindo a literalidade: tal como Narciso, também Jenny, no início do filme, então ainda criança, se olha, se contempla – exclamando “I’m going to be beautiful!” – no reflexo da água (como o indivíduo contemporâneo que mira a objectiva e, acto contínuo, se contempla na “selfie”); e, também como Narciso, condenado a apaixonar-se por si mesmo e, assim, a afogar-se, também Jenny se “afogará” na sua maldade paranóica e autofágica. “Evil destroys itself!”, ouvir-se-á perto do final do filme.
Mais conhecido por The Black Cat (Magia Negra, 1934) e, sobretudo, Detour (Desvio, 1945), pelo meio de outros filmes “série B”, Ulmer assinaria, com The Strange Woman, uma poderosa ópera thrillesca, a qual, se bem que distante dos filmes anteriormente referidos (até pelas raras condições financeiras de que beneficiou, expressas, designadamente, na escolha do elenco), só por rigidez conceptual se poderia deixar de adjectivar como noir (a cena em que Jenny, absoluta femme fatale, apaga as velas com os dedos podia ser mesmo uma entrada para o género na enciclopédia). Filme de estúdio, sim, mas em que à particularidade de ter como produtora a própria Hedy Lamarr (que queria interpretar um autêntico character, e não uma boneca decorativa, como era habitual até então) se junta o facto de “estúdio” não significar, aqui, cenários luzidios e limpinhos, posto que é numa Bangor (Maine) do século XIX, vilarejo escuro (há, na iluminação, e também em alguns enquadramentos, um certo dedo expressionista de Ulmer, ele que foi assistente de Murnau), imundo e rude, que as “águas” de umas quantas famílias se agitarão. E se voltamos a insistir nesta dimensão, digamos, “hídrica”, não é por acaso, pois que a água, além de elemento natural bastante presente (como o vento, a chuva, os trovões), está, enquanto elemento dotado de conotações simbólicas e psicanalíticas, na “cabeça” de toda a gente (na das personagens e na nossa, espectadores).
Quem é, então, esta strange woman, capaz de mover (e aterrorizar) montanhas? Numa das primeiras cenas do filme (imediatamente anterior à cena “narcísica” com que iniciámos), Ulmer identifica-a de modo paradigmático. “Faster, faster, faster!”, exige, qual Cleópatra (não por acaso citada a certa altura), uma Jenny ainda criança aos dois rapazes que disputam, nadando, uma corrida no rio. Jenny é a strange woman que, fruto da sua terrível – e temível – beleza (seria preciso um visionamento específico do filme para contabilizar todos os close-ups sobre o seu rosto…) e do seu natural autoritarismo, irá manipular, com um mero pestanejar de olhos, os homens conforme os seus interesses (como, já então, os dois nadadores imberbes), ao mesmo tempo que controlará os “tempos” de Bangor e dos seus habitantes, acelerando e abrandando (ora “faster”, ora “slower”) os acontecimentos, metendo as “mudanças” nas vidas (e nas desgraças) dos outros a seu bel-prazer e sem nunca olhar a meios para atingir os seus fins. Voltando um pouco atrás, terminada a corrida no rio, Jenny (filha de Tim Hager, alcoólico caído em desgraça depois de ser trocado pela mulher) quase afoga, propositadamente, Ephraim (o filho do comerciante rico de Bangor, Isaiah Poster), que não sabe nadar, incapacidade que, muito psicanaliticamente – recalcadamente mesmo –, será a causa de uma posterior tragédia familiar (também ela, uma vez mais, potenciada pelo evil instinct de Jenny). Os binómios Pai forte (Isaiah)/filho fraco (Ephraim) e Pai fraco (Tim)/filha forte (Jenny), aqui em oposição, apenas se manterão até à morte de Tim Hager, momento em que o Poster sénior convence, ardilosamente, o “concílio” de Bangor de que deve ser ele a casar com Jenny e a protegê-la.
A partir daqui, a vida de Bangor e da família Poster nunca será a mesma, o que coincidirá, não por acaso, com a degradação em que mergulhará a cidade, a braços com as riots que, historicamente, opuseram os nativos aos imigrantes irlandeses (acusados de trazerem a vadiagem e a prostituição). Mas, dizíamos, a vida dos Poster entrará num “mar revolto” cujo maremoto original dá pelo nome de Jenny – pela sua mente maquiavélica, sim, mas também pelo seu corpo, tumultuoso objecto de desejo por todos os homens por quem ela vai passando “a mão no pêlo” [e são vários: o marinheiro, Isaiah, Ephraim e, mais tarde, John (George Sanders)]. Todos eles, de uma maneira ou de outra, serão engolidos por essa onda (as alegorias naturalísticas passíveis de se fazer com Jenny são incontáveis: furacão, vulcão, tufão, trovão, … outra forma de a chamar de “força da natureza”) cuja particularidade é de nunca os fazer chegar à costa (a um “lugar seguro”), antes os jogando – é isso que Jenny faz, “jogar” as pessoas e com as pessoas – permanentemente no fundo do mar, apenas os deixando vir à tona para respirarem o estritamente necessário (tal qual o seu pé faz uma “amona” na cabeça do pequeno Ephraim no início do filme…).
Mas. Mas é preciso levar em linha de conta algo que empresta muita da complexidade dramática que preenche The Strange Woman e que o aparta de um filme convencional ou linear: é que, se é em mais um acto perfeitamente maquiavélico que Jenny “rouba” John a Meg, o certo é que, uma vez juntos, somos levados a crer, pela primeira vez, que Jenny está finalmente “em paz” consigo mesma, que ama verdadeiramente, desinteressadamente, John, e este a ela (mesmo quando Jenny lhe confessa as suas malvadezas), naquela que é uma ilustração do amor como “outra coisa”, auto-suficiente e independente de tudo o resto, última via possível de redenção e pacificação moral do indivíduo. Não sendo isto, naturalmente, suficiente para desfazer o juízo de censura que as acções de Jenny nos merecem durante todo o filme, sentimos, contudo, que, afinal, Jenny, até aqui uma sedutora sociopata, também pode ser… “humana” (?). O que, a um nível microscópico, faz levantar a velha questão macroscópica: as acções maldosas cometidas pelos homens não são “humanas”, como alguns dizem? Ou o primeiro erro para não se conseguir impedir a barbárie é, precisamente, a formulação de juízos desse jaez, tentando isolar-se certas acções – alegadamente “não humanas” – que, afinal de contas, são levadas a cabo por homens feitos da mesmíssima matéria que todos os outros? Esticando o passo, e para fazermos ver o que está aqui em jogo, pegue-se num exemplo extremo e clássico: o que os nazis fizeram não é humano? Ou a humanidade (que é diferente, convém lembrar, de humanismo) possui, inerentemente, uma tendência natural e potencial para a maldade?
A este propósito, e “descendo”, novamente, ao nível de análise “micro”, o título do filme – i.e., o “título” de Jenny –, “The Strange Woman”, não deixa de ser curioso (tendo origem numa passagem da Bíblia que um padre evangelista, de passagem por Bangor, profere à vila, deixando Jenny, pela primeira vez, abalada por seu auto-reconhecer naquelas palavras acusatórias). Isto porque “strange” é adjectivo que soa demasiado suave para a personalidade de Jenny: será que, ao apelidar-se Jenny de uma mulher “estranha”, se está a relativizar (no limite, a desculpar) as suas acções? Porque não alcunhar Jenny como “the terrible woman”? Sendo os juízos morais o que menos interessam nos caminhos da arte, sempre diríamos, retomando a ideia de complexidade dramática que acima apontamos ao filme, que o epíteto de “strange” procura favorecer, precisamente, essa recusa do simplismo, concretizada pelo decisão “moral” da câmara em filmar Jenny na sua complexa globalidade (e não como um ser exclusivamente “mau”): como alguém de origens paupérrimas e com uma infância problemática (e Ulmer nem sequer mostra, apenas insinua, tudo, como, por exemplo, a quase certa relação incestuosa com o pai) e que, mesmo quando rica, nunca esquece os mais pobres, ou que se mantém do lado da amiga de infância, também ela pobre, contra a vontade do marido (a quem chama de hipócrita).
O paralelismo entre a análise micro e macro do filme e no filme é interessante também à luz da própria universalidade de que o filme se reclama, tanto na noção de tempo (o filme cobre a vida de Jenny, desde criança a adulta, e a degeneração da cidade de Bangor), como na noção de matéria, o que se evidencia logo nos primeiros dois planos do filme: primeiro, o céu, depois, um calendário circunscrevendo o tempo-espaço daquela concreta realidade (“Bangor, 1824”). Como que dizendo que o que ali vamos ver se poderia passar em qualquer lugar e em qualquer momento, nessa “descida do eterno (céu) para o temporal (calendário)” indo, como escreveu Manuel António Pina a propósito da “descida” similar com que Aniki-Bóbó principia, “Céu e terra, transcendência e realidade quotidiana (…)” [Aniki-Bóbó, Assírio & Alvim, 2012, p. 30]. Curiosamente, o céu inicial é, também, o céu com que o filme termina, naquela que é uma sugestão de uma possível “salvação” para Jenny (?). “Good girls go to heaven”. E as bad girls? Go (every)where?
Actualmente em domínio público, The Strange Woman será exibido, dia 30 de Abril de 2015 (quinta-feira), às 19h30, pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.