Miguel Gomes, personagem, refere logo nos primeiros momentos de As Mil e Umas Noites: O Volume 1, O Inquieto (2015) a dificuldade em conjugar a crítica social (ao estado deste país em crise) e o registo maravilhoso (fantástico, de fábula). Este anseio parece corresponder ao dilema de Miguel Gomes, o realizador, e não ser só um rodriguinho estilístico. E, pela primeira vez na sua cinematografia (no que diz respeito a longas-metragens), Gomes decidiu não partir o seu filme em dois, o método usado até aqui para lidar com estas mudanças bruscas de estilo e tom características ao seu cinema.
É complicado avaliar a estrutura de uma trilogia pelo seu primeiro tomo, atenho-me, então, a este, já que é sobre ele que escrevo. As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto é estruturalmente o mais instável dos filmes de Miguel Gomes – uma maneira simpática de escrever que é uma confusão. Pegando num dos temas caros a Gomes, o seu clube do coração, arrisco uma analogia: a táctica para estas As Mil e Uma Noites como que foi dada pelo treinador Rui Vitória, tudo ao molho e fé em Xerazade. Se o filme funciona como uma boneca russa, em que cada parte esconde outra, Gomes (e Telmo Churro e Mariana Ricardo, restantes argumentistas) parece determinado em enfiar as bonecas maiores dentro das mais pequenas e em acrescentar outras que não encaixam em lugar algum.
Compare-se este filme a Aquele Querido Mês de Agosto (2008), de que é uma espécie de versão megalómana e mastodôntica. No mais antigo, Gomes também jogava com a sua personagem indecisa, às voltas com a melhor maneira de prosseguir a obra. A razão era a falta de dinheiro para concluir a ideia inicial. Neste caso, é um impasse criativo, ditado pela quase total liberdade de movimentos. Em Aquele Querido Mês de Agosto, Gomes e a equipa de rodagem andavam à procura do filme, nas anedotas dos habitantes do interior de Portugal em choque com um certo cinismo urbano, na ficção engendrada nos arrebates da música pimba e nas vidas das pessoas tornadas personagens. Em As Mil e Uma Noites, lançam-se em fuga do seu próprio filme, o que acaba por servir apenas de dispositivo narrativo, um modo de enquadrar os diversos episódios que o compõem. Dispositivo, esse, que se revela absolutamente desnecessário, uma vez substituído pela ideia de Xerazade e das suas As Mil e Uma Noites. Mantém-se, é verdade, a demanda pela “portugalidade”, revelada nas histórias do galo e na dos adolescentes (o melhor episódio), protagonizadas por não-actores, filmadas on-location, expressão máxima do híbrido docuficcional. E não é por aí que As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto se perde: Gomes e companhia sobrevivem de novo à perigosa corda bamba para onde saltam, não deixando cair as personagens na caricatura, apesar do olhar citadino mais ou menos sobranceiro.
A táctica para estas As Mil e Uma Noites como que foi dada pelo treinador Rui Vitória, tudo ao molho e fé em Xerazade.
Pode ser fastidioso estar a bater na tecla da estrutura. Seria fácil, estou certo, enumerar diversas obras-primas “estruturalmente imperfeitas”. No entanto, o maior problema de As Mil e Uma Noites reside nesse aspecto, para mais sendo um filme criado sob o signo da capacidade salvífica da narração. O falso arranque – os primeiros vinte minutos em Viana do Castelo que acompanham o fecho dos estaleiros (em registo documentário com cabeças falantes invisíveis), a ameaça de vespas assassinas coincidente (e irrelevante) e a paralisia da equipa de rodagem concorrente (numa encenação um tanto forçada) – como que pertence a outro filme, ou é mesmo um filme à parte. Existe uma evidente correspondência temática (a crise) com o resto da obra, mas essa sensação de que está “à parte” vai deixando o espectador à espera, cada vez mais exasperado. Funciona menos como teaser do que como retardador progressivamente irritante. Xerazade não cometeria esse erro, sob o risco de perder a cabeça. Miguel Gomes não perde a cabeça, mas começa a perder o espectador.
Quando surge o primeiro episódio, Os Homens de Pau Feito, o espectador já vai contrariado. Mais contrariado fica com o desenrolar do mesmo, fábula sobre o encontro dos homens do Governo Português e dos homens da Troika, pois se a premissa é engraçada, a anedota estica-se para lá do desejável, demonstrando mais uma vez a dificuldade em gerir os ritmos narrativos. O gosto pela brincadeira, constante na obra de Miguel Gomes, também tem menos graça do que em outras ocasiões. Este ponto é discutível (como são os outros): essa faceta em A Cara Que Mereces (2004), a sua primeira (e mal amada) longa-metragem, deixou muita gente, nomeadamente críticos, de pé atrás. Contudo, à distância de mais de dez anos, o lado infantil, de conto de fadas, desse filme aparenta ser mais maduro do que esta tentativa de fazer comédia fantástica, chico-esperta, feita para agradar à populaça.
Não irei tão longe como escrever que Miguel Gomes busca qualquer tipo de realismo mágico no resto de As Mil e Umas Noites: Volume 1, O Inquieto, mas roça os piores defeitos desse género, por exemplo, no episódio do galo. Por outro lado, no último, O Banho dos Magníficos, a óptima interpretação de Adriano Luz não esconde a sua função como suporte da denúncia social por parte dos desempregados (em registo documentário com cabeças falantes bem visíveis, ou antes, de reportagem televisiva meio sensacionalista). Ao não dividir claramente as duas vertentes do seu filme – o documentário e a ficção, o realismo e o fantástico -, Miguel Gomes, em vez de ocultar o mecanismo que o sustenta, coloca-o em mais evidência. Um paradoxo que apouca os objectivos bem intencionados do realizador e, pior, o resultado final.