Meryl Streep, tal qual o Vinho do Porto, melhora com a idade. A frase é insossa (e nem sei se é verdadeira; não percebo nada de vinhos, menos ainda dos do Porto), mas vem-me à ideia sempre que vejo a actriz norte-americana. Quando era mais nova, parecia demasiado preocupada em conservar o estatuto de “grande actriz”, alcançado em papéis “importantes” e de relevo, com Holocausto e escolhas impossíveis à mistura. De há uns anos para cá, foi perdendo essa aura, trocando-a por um ar de gozo permanente, de genuíno divertimento, seja qual for a sua personagem. Se continua a ser maior do que os filmes, tende a sê-lo à maneira de Daniel Day-Lewis, outro actor decidido a montar o seu próprio espectáculo dentro das obras dos outros.
Como veículo para Meryl Streep que também é, Ricki and the Flash (Ricki e os Flash, 2015) aproveita bem esse desprendimento da actriz, transformando-a numa estrela de rock da qual nem se pode dizer que está acabada, pois nunca chegou a começar. Ricki e a sua banda tocam versões de êxitos de outros tempos (e um ou outro actual: Lady Gaga, por exemplo) num bar de uma pequena localidade californiana para meia-dúzia de fiéis e uns quantos adolescentes enfastiados. Embora tenha abandonado o marido e os filhos para perseguir o sonho do rock ’n’ roll, Ricki ficou-se pela edição de um álbum e concertos ocasionais. Aos sessenta e tantos anos, as coisas não lhe correm propriamente de feição: trabalha num supermercado onde é obrigada a sorrir para os clientes e vive num daqueles blocos de apartamentos com uma piscina no meio, sinal cinematográfico de “falhanço na vida”. Por outro lado, contrariando a imagem do artista progressista, perora contra Obama de cima do palco, enquanto defende os feitos das tropas norte-americanas pelo mundo fora. É racista e homofóbica, preconceituosa e desbocada, epítome do white trash.
Diablo Cody tem vindo a criar das personagens femininas mais interessantes do cinema norte-americano recente, perscrutando, acidentalmente ou não, a figura da mulher nas diferentes fases da vida.
Streep delicia-se com o aparato da personagem: botas e casaco de cabedal, calças pretas justas, brincos a percorrer a orelha, anéis profusos e maquilhagem carregada; unhas pintadas de negro a tocar canções manhosas de hard rock na guitarra eléctrica. No entanto, não a deixa cair na caricatura, um fenómeno absolutamente espantoso tendo em conta as possibilidades, e pelo qual a argumentista Diablo Cody também terá de ser louvada. Cody tem vindo a criar das personagens femininas mais interessantes do cinema norte-americano recente, perscrutando, acidentalmente ou não, a figura da mulher nas diferentes fases da vida. Da adolescente meio estouvada/meio ajuizada de Juno (2007) para a “rapariga” de trinta e tal anos em negação de Young Adult (Jovem Adulta, 2011) [cujo final é devastador], passando agora para a terceira-idade imatura de Ricki and the Flash.
De qualquer forma, o filme é menos sobre música (ou sobre Ricki e sua banda) do que o título dá a entender. A história anda sobretudo à volta do reencontro de Ricki com a família que abandonou no Indiana: o ex-marido calmo e compreensivo (o estupendo Kevin Kline); a filha a sofrer de uma depressão depois de o marido a deixar (Mamie Gummer, a cara chapada da mãe – é filha de Meryl Streep na “vida real”); e os outros dois filhos, um mais ressentido com ela do que outro. E termina numa grande sequência de casamento (de um dos filhos, o menos ressentido), na qual Ricki vai tentar encontrar a sua redenção. Dramas familiares a culminar em casamentos são recorrentes. Pense-se em Margot at the Wedding (Margot e o Casamento, 2007) de Noah Baumbach ou Rachel Getting Married (O Casamento de Rachel, 2008) de Jonathan Demme. Ricki and the Flash evita a acidez desses dois exemplos e acaba por uma versão mais simpática do “sub-género” (o desenlace é demasiado fácil), ainda que repita o realizador de Rachel.
Jonathan Demme, que andou meio perdido em remakes de necessidade duvidosa nos anos 2000 e teve um regresso à forma exactamente com esse filme, é o terceiro vértice do triângulo autoral de Ricki and the Flash. Aliás, Demme é a escolha perfeita para realizá-lo. Por um lado, traz a experiência de Rachel Getting Married, embora a câmara nesse caso fosse mais nervosa e à flor-da-pele e menos funcional e económica do que neste. Por outro, sabe filmar como poucos pessoas a tocar instrumentos em cima de um palco. E, ainda melhor, a interacção entre as pessoas a tocar instrumentos em cima de um palco: os olhares de cumplicidade, os olhares repreensivos, o jogo da guitarra solo com a guitarra ritmo, o isolamento do teclista (posto literalmente de lado), a descontração do baixista (sabedor da sua eterna subvalorização), o esconderijo do baterista (atrás de pratos e tambores). De resto, a sua ligação à música é conhecidíssima, não só por Stop Making Sense (1984), o filme-concerto dos Talking Heads, mas principalmente pela importância dos momentos musicais e das bandas sonoras no resto da sua obra [Something Wild (Selvagem e Perigosa, 1986) à cabeça].
Não sendo um grande filme, Ricki and the Flash congrega qualidades suficientes – Streep, Cody, Kline, Demme – para despertar uma enorme simpatia.