Luís Mendonça (LM) e João Lameira (JL) continuam a cobertura ao DocLisboa.
No Home Movie (2015) de Chantal Akerman
A directora do festival, Cíntia Gil, fez uma apresentação justa a este “último hurrah” de Chantal Akerman. Este não é um filme testamental e deve ser visto como um filme de Akerman e não como o último filme de Akerman. Ao mesmo tempo, a cineasta belga não queria que, sob qualquer pretexto, a ela se prestasse um culto idólatra. Akerman nunca fez cinema para ser popular ou mesmo consensual. De facto, este seu filme consubstancia toda esta “radicalidade”. Ele recusa qualquer empatia. Ele não é e não quer ser “belo”. Ele é bruto, feio e, ao mesmo tempo, doce e extraordinariamente humano. Mas o resultado é, foi, um murro no estômago. Se não é o mais ou menos típico “último filme”, podemos dizer que é um filme “do último”, pelo modo como “atenta contra si”. Trata-se de uma obra no limiar do seu próprio gesto; incapacitada e, nesse sentido, quase incapacitante. Tem momentos de alguma doçura, mas uma doçura sempre rapidamente cortada por uma bruteza que nada nos dá, que nada quer dar. Não é, portanto, um filme generoso. Mas o cinema de Akerman não é sempre generoso. Há um momento que me parece significativo: Akerman filma a mãe, já nesta fase visivelmente debilitada, com uma pequena handycam enquanto lhe pede insistentemente para “contar uma história”. No Home Movie – e creio que o “Não” no título é eloquente quanto a toda a experiência irredutivelmente “incapaz” e “árida” que o filme encerra – é como o vazio da resposta da mãe, na sua angustiante incapacidade para articular uma frase e, com isso, responder ao anseio da sua tão querida e amada filha. Tente-se perceber: não gostei de No Home Movie, porque não se gosta de No Home Movie. De qualquer modo, é um dos acontecimentos mais incontornáveis do ano cinematográfico. (LM)
O filme volta a passar no dia 1 de Novembro, domingo, às 18h00, no Cinema Ideal.
In Transit (2015) de Albert Maysles, Lynn True, Nelson Walker, Ben Wu e David Usui
O derradeiro filme de Albert Maysles não é exactamente ou totalmente um filme seu. Presente nas filmagens dentro do Empire Builder – comboio que atravessa os Estados Unidos, quase na sua totalidade -, Maysles já não pôde montar In Transit, falhando, devido à sua morte em Março deste ano, essa parte essencial do processo. Daí, também, a profusão de realizadores creditados, dos quais se destaca a montadora Lynn True. Não podendo aferir o peso desta ausência, cinjo-me ao resultado final. In Transit é um belo pedaço de americana: o movimento do comboio a melhor metáfora para a mobilidade constante do povo americano, sempre à procura de qualquer coisa melhor, uma esperança que dura nem que seja os três dias que demora a ir de Chicago a Seattle. O importante, diria Rui Vitória, é o caminho. Neste filme, isso é absolutamente verdadeiro. A casa de partida e o ponto de chegada estão “lá fora”, o desgosto e a desilusão ficam para trás, e para a frente existe a possibilidade de enriquecer nos poços de petróleo, uma oportunidade de mudar de vida. Na viagem, tudo parece alcançável. No entanto, a “personagem” do veterano (do Vietname, presume-se), que faz amizade com a miúda grávida e não pára de tirar fotografias a todo e qualquer momento, às paisagens, às pessoas, como se fosse a última vez, sabe que tudo termina. Esta foi a sua última viagem. E com ele acaba o último filme de Albert Maysles. (JL)
O filme volta a passar hoje, dia 30 de Novembro, às 18h45, no Pequeno Auditório da Culturgest.
Le Saphir de Saint-Louis (2015) de José Luis Guerín
O mais interessante aqui é o que normalmente faz de qualquer filme de José Luis Guerín um desafio ao expectável. Guerín foi convidado a fazer uma espécie de “filme promocional” da Catedral de Saint-Louis em La Rochelle. O modelo pouco ou nada interessou ao cineasta espanhol que deu a volta à encomenda concentrando a atenção do filme num pequeno quadro “escondido” dentro da catedral. Nele, através dele, Guerín inventa a história que lhe interessa, fazendo “navegar a câmara” sobre esta representação da “tragédia de Le Saphir”, o navio mercante do século XVIII, que transportava várias centenas de escravos e tripulantes brancos e que enfrentou uma tragédia humana em pleno alto-mar. O esforço de reconstituição da viagem, através de imagens de quadros sobrepostas com imagens “reais”, lembra o imaginativo trabalho de encadeamento narrativo que Alain Resnais realiza nos seus documentários de arte, sobre pintores como Van Gogh, Gaugin e Picasso. Sempre inteligente, “mais esperto do que nós”, como lhe costumo chamar, Guerín é igual a si mesmo quando mostra que o principal “efeito especial” de Le Saphir de Saint-Louis está na forma como dá a volta, com muita elegância, à sua condição de “filme de encomenda”. (LM)
O filme volta a passar no dia 31 de Outubro, sábado, às 14h15, no Pequeno Auditório da Culturgest.
Robert Wyatt, Part 1 (1992) de Nicolas Klotz
Brad Mehldau (1999) de Nicolas Klotz
É verdade que Nicolas Klotz escolheu (ou foi escolhido por) duas personagens extraordinárias, mas sabe filmá-las nas suas idiossincrasias, mostrando a sua natureza, a sua excentricidade, apesar da (ou por causa da) encenação que qualquer câmara provoca. Em Robert Wyatt Part 1, o músico inglês, preso a uma cadeira de rodas, fechado em casa com a mulher Alfie (ausente nas imagens, mas uma presença indesmentível), toca por cima de canções suas, canções de outros, e fala com Klotz à luz da vela, enquanto fuma cigarros. Ele sabe que está dentro, mais, é o objecto de um documentário e parece tirar um particular gozo disso. O próprio Klotz, apesar de não aparecer, não se furta a esse diálogo, e o seu olhar (por exemplo, quando mostra, timidamente, a cadeira de rodas) tem a qualidade do fã embevecido, de espectador emocionado. Brad Mehldau, por outro lado, é uma figura mais dura, mais distante, não permitindo uma aproximação tão grande, ou melhor, um olhar tão amoroso por parte do realizador (embora Klotz conheça melhor Mehldau do que Wyatt). No entanto, deixa-se filmar a calcorrear as ruas de Berlim, um passeio feito declaradamente para a câmara, deixa-se ver num ponto de viragem da sua vida. Mehldau tinha abandonado ou tentava abandonar comportamentos auto-destrutivos (leia-se consumo de drogas) na altura da realização do documentário e fala disso com o à-vontade tão característico dos norte-americanos. Contudo, Brad Mehldau é sobretudo sobre a música de Brad Mehldau. Grande parte do filme é dedicado a prestações ao vivo do pianista, a solo ou com o trio que liderava. Nestas, desaparecem a coolness e a indiferença de Mehldau, dando lugar a uma concentração tal que se revela em esgares que o transformam, quase o desfeiam. Embora toque de costas para o público, a câmara de Klotz desmascara-o, desfigura-o. Nestes tempos, custa a crer que estas duas pequenas maravilhas tenham sido encomendadas e exibidas numa televisão. (JL)
Os filmes voltam a passar hoje, dia de 30 de novembro, às 22h15 na Sala 3 do Cinema São Jorge.
Five Year Diary: Reel 22: A Short Affair (and) Going Crazy (1982), Five Year Diary: Reel 23: A Breakdown (and) After the Mental Hospital (1982) e Five Year Diary: Reel 26: First Semester Grad School (1983) de Anne Charlotte Robertson
Foi uma descoberta inestimável que devemos, por inteiro, àquela que é a grande alma cinéfila de todo o festival: Augusto M. Seabra. Na conferência de imprensa de lançamento do DocLisboa, Seabra deu a entender que este seria o seu último ano no festival. Faço um apelo para que reconsidere essa saída de cena. É por causa de sessões como esta que Seabra é uma peça indispensável para fazer do DocLisboa um espaço de efectiva intervenção política, moldando maneiras alternativas de ver e agir no mundo. Os caminhos do “eu”, por exemplo, foram aqueles que a praticamente desconhecida cineasta norte-americana Anne Charlotte Robertson percorreu ao longo de 16 anos, reunindo cerca de 30 hora de material num filme (enganosamente) intitulado Five Year Diary. Tivemos nesta sessão uma amostra, com pouco mais de uma hora, deste projecto monumental. Robertson aparece como culminação de uma tradição cinematográfico que nos remete para as origens do New American Cinema, nomeadamente para nomes como Stan Brakhage e, sobretudo, Jonas Mekas. Quase podemos dizer que este é “o Walden (1969) de Anne Charlotte Robertson”, uma colecção de instantes da sua vida mostrados sem filtro. O contacto com o “aqui e agora” da vida é, contudo, mais interpelante que em Mekas, sobretudo graças à dinâmica som-imagem criada pela realizadora. Robertson cola uma montagem frenética das suas imagens caseiras com gravações de voz realizadas na época, no presente das imagens, e um comentário over descritivo, que “olha” as imagens à distância, a partir do presente da montagem. É notável a forma como as duas vozes interagem entre si: a primeira revela a “tempestade do íntimo” que atravessou Robertson nos momentos documentados, ao passo que a segunda, mais fria e analítica, descreve – e descodifica – o que as imagens dão a ver. Por esta amostra, fica claro que estamos na presença de uma grandiosa descoberta. Venham mais reels, por favor! (LM)
Os filmes voltam a passar no dia 1 de Novembro, domingo, às 18h00, no Pequeno Auditório da Culturgest.