É muito comum entre os cinéfilos a propensão para reler os finais dos filmes – especialmente os produzidos no interior de Hollywood – à luz actual, atribuindo-lhes novos significados e interpretações. Mas não falamos de finais quaisquer; de facto, esse exercício revisionista é sobretudo visível no que aos famosos happy ending dos grandes filmes-mito da era dourada de Hollywood diz respeito, como por exemplo, entre inúmeros que poderiam ser aqui citados, o de All That Heaven Allows (Tudo o Que o Céu Permite, 1955) de Douglas Sirk [mas não só de Hollywood: pense-se no final de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), filme magnífico mas que, perdoem-nos a – nem de propósito – heresia, não deixa de ser, com milagre ou sem milagre, com espiritualidade ou sem ela, um happy end algo forçado e canhestro].
Comum a esses exercícios é a tendência para a problematização desses “finais felizes” e a tentativa de os resgatar da simplicidade, o mesmo dizer é dizer, da felicidade plena que corporizam e transmitem. Desse modo procurando-se sublinhar, ao invés, a aparência (e, eventualmente, a falsidade) de toda a happiness desses endings, iluminar a infelicidade que eles afinal escondem ou a aporia em que não deixam de se consubstanciar, enfim, desvelar o “final aberto” (open ending) para o qual, apesar de tudo, irremediavelmente apontam. Sem prejuízo do interesse que este tipo de exercícios, por si só, indiscutivelmente possui (porque o que importa, de facto, é debater tudo e extrapolar hipóteses), será ele realista, será ele plausível? Não será, ao invés, uma tentativa um tanto ou quanto forçada de contrariar aquilo (a happiness) que não pode ser contrariado, que é flagrante e salta pelos “olhos dentro” (mas como, se a felicidade é, efectivamente, muito fácil de “ver”, e a tristeza pode passar, e frequentemente passa, por invisível…?)? Não será, muito frequentemente, um esforço em “desculpar” um (bom) filme – muitas vezes, um filme que se ama – do seu (mau) desenlace e, desse jeito, combater os seus detractores? Ou será, ainda, a simples e ancestral tendência para tentar encontrar na infelicidade (ou no fracasso/erro/derrota) uma “beleza” maior – ou, pelo menos, mais interessante ou estimulante – do que aquela que existe na felicidade (no sucesso/certeza/vitória)? A beleza tem, como dizem alguns, uma tristeza intrinsecamente subjacente?
É neste ponto que chegamos a Now, Voyager (A Estranha Passageira, 1942), adaptado do romance homónimo de Olive Higgins Prouty) e realizado por Irving Rapper, melodrama clássico que, para juntar mais uns pozinhos problemáticos, nada ajuda na clarificação da contenda. Com efeito, no filme de Rapper, não são precisos esforçados exercícios revisionistas para levar a melhor avante, pois que o seu final, embora propositadamente embalado por um ambiente absolutamente romântico e sonhador (um casal, uma varanda, noite, lua, estrelas, as cordas de Max Steiner que se ouvem…), é, assumidamente, não-happy. O prefixo na negativa justifica-se porque não é, apesar de tudo, um sad ending aquele que Bette Davis e Paul Henreid protagonizam, antes uma fuga para a frente que, muitíssimo invulgar para os convencionalismos de Hollywood, tem tanto de sensata como de louca e insustentável.
Por falar em loucura e insustentabilidade, é desses atributos que se faz a relação entre Charlotte Vale (Davis) e a sua tirânica mãe, Henry Vale (Gladys Cooper), cujo estatuto de matriarca ditatorial está em linha com a circunstância de, ao longo do filme, os pares masculinos dos casais (Jerry, Livingstone) serem sempre a parte “mais fraca”, em detrimento da presença e força das mulheres. Já no que toca ao duelo a dois entre mulheres (mãe e filha), Charlotte parte com uma enorme desvantagem: última e tardia filha, sofreu toda a vida do complexo da filha “não desejada”, sendo absolutamente dominada pelos humores da mãe desde a hora em que veio ao mundo: o que vestir, o que ler (e foi num romance “proibido” que Charlotte aprendeu que os homens não gostam de mulheres púdicas, “pista” de que muito mais haveria aqui por explorar não fosse a vigência do Código Hays), com quem estar, inclusivamente os óculos que deve usar, forma de a forçar a “ver correctamente”, é dizer, a ver o mundo e a ver-se (auto-depreciativamente) a si mesma como a mãe quer que se veja (“When she was young, foolish, I made decisions for her… always the RIGHT decisions”, ouve-se-lhe dizer). Como tal, para Mrs. Vale, Charlotte deve ter como único propósito de vida o de servi-la e acompanhá-la na sua velhice, o que faz da filha um ser deprimido, complexado e, do ponto de vista físico, perto do grotesco (Davis terá querido trabalhar, i.e., “estragar” ainda mais a sua aparência, mas o produtor entendeu que podia afugentar o público). De alguma forma, fica igualmente no ar a possibilidade de um passado ainda mais negro na vida de Charlotte do que aquele que a narrativa revela, marcado por eventuais abusos do pai (estranhíssimo o comentário de Charlotte sobre um rangente degrau nunca concertado desde uma noite em que, com 17 anos, chegou a casa depois da meia noite) ou dos médicos (quando o psiquiatra a que nos referimos adiante lhe pergunta se pode ver o seu quarto, Charlotte responde, acidamente, que ainda não é sua paciente).
Este estado das coisas é, porém, posto em causa aquando do aparecimento em cena de um famoso psiquiatra, Dr. Jaquith (Claude Rains), cujos préstimos são solicitados pela cunhada de Charlotte, Lisa Vale, de quem não se conhece nunca o marido, o que só reforça a aparência de um “filme de mulheres” (weepies, como ficou conhecido o género nos anos 30 e 40) – e de mulheres que dispensam o suporte masculino. O psiquiatra é chamado para tratar da depressão da unwanted child, embora, na visão da mãe de Charlote, tudo não passe de birras e crises infantis sem importância. Mas este não é um psiquiatra qualquer; quando Charlotte faz uso de uma hipálage para apelidar a sua casa de “introvertida”, o médico diz que não acredita em conceitos científicos e que os prefere deixar para os escritores e para os charlatães, afirmando utilizar como modesto método terapêutico o de indicar o caminho a não seguir quando os seus pacientes se encontram perante uma bifurcação.
Charlotte passará uma temporada em Cascade, retiro do Dr. Jaquith, findo o qual lhe é proposto fazer um cruzeiro pelo Atlântico, método muito freudiano de superar o recalcamento que carrega desde os 20 anos, aquando de um cruzeiro semelhante na companhia da mãe, e no qual foi apanhada no interior de um carro com um elemento da tripulação (impossível não pensar em Di Caprio e Winslet, cinquenta e cinco anos depois no filme de James Cameron). É aí que conhecerá o galante Jerry Durrance (um Paul Henreid que, não sendo um Clark Gable ou um Bogart, é um cavalheiro muito estimável), o homem que acende dois cigarros ao mesmo tempo (consta que passou o resto da vida a ser assediado publicamente por esse número). Jerry encantará Charlotte (a quem chamará de Camille, de chameleonic, e ilustração da “nova” pessoa em que se tornou), devolvendo-lhe o amor-próprio e – para quem acredita naquela coisa de as pessoas ficarem tanto mais bonitas quanto mais amadas são (crentes nos confessamos) – a beleza, ao que ajuda, naturalmente, o guarda-roupa sofisticado, que substitui aquele com que víramos Davis na primeira cena do filme (sobre isto, houve quem se referisse ao “machismo” do filme, argumentando que, no fundo, se trata de uma mudança meramente superficial, porque assente num materialismo fútil; mas isso é ignorar que a roupa, como qualquer outro adorno, não deixa de ser também um prolongamento de nós mesmos e do nosso estado de espírito). Mesmo sabendo que Jerry é casado e tem duas filhas, Charlotte entregar-se-á nos seus braços e passará uns imaginamos-que-deliciosos dias (o espectador só os vê de passagem) no Rio de Janeiro (onde, muito incrivelmente, o povo nativo fala… espanhol). No final da viagem, o sonho tem, contudo, de acabar, e Jerry de voltar à sua esposa, mulher infeliz e doente que não ama mas relativamente a quem sente o dever de manter a sua companhia e de ajudar na educação das filhas. A hipocrisia das convenções sociais a minar o verdadeiro amor, dir-se-á, embora isso não apague, porém, uma certa sensação de que, na verdade, talvez Jerry nunca tenho estado assim tão apaixonado por Charlotte e esta tenha sido apenas um pulo – entre outros – fora da “cerca”. Ou talvez não, e, nesse caso, a sua prisão (à esposa, de quem uma amiga de Jerry diz ser uma terrível ditadora, lembrando alguém ao espectador, claro) seja o sucedâneo da anterior prisão de Charlotte (à mãe), modo de ilustrar como, na vida, as amarras com que que vivemos desaparecem e renovam-se constantemente (mesmo as de terceiros, que também exercem influência sobre nós).
Se, como dissemos, este é um filme em que o sexo masculino surge particularmente débil, cobarde, periclitante, Charlotte encarna, ao invés, o vigor e a coragem feminina (quem, senão Davis, para o fazer?). Não só pelo modo como, regressada do cruzeiro, e apesar da separação de Jerry, Charlotte se emancipa do domínio materno (mesmo voltando para casa – habituada a viver no andar acima do do quarto da mãe, recusa passar, como esta lhe exige, para o piso inferior, modo simbólico de rejeitar o seu papel servil e de se manter definitivamente “por cima” dos desmandos da mãe), como, mais importante, faz o que Jerry não faz, i.e., rompe com o “socialmente correcto”, rejeitando casar com Livingstone (descendente de uma família rica de Boston). Com isso se dando uma transformação, além de pessoal, também familiar: da tia feia e deprimida, Charlotte passará a ser a proto-moderna “tia fixe”, a tia solteirona e divertida que faz churrascos em casa. É neste passo, portanto, que a frase de Walt Whitman que dá o título original ao filme (“The untold want, by life and land ne’er granted / Now, Voyager, sail thou forth, to seek and find”) ecoa, com o que ela comporta de auto-descoberta e auto-superação, em toda a sua plenitude, não sem uma areia na engrenagem: a lembrança de Jerry, por quem, apesar de tudo, Charlotte não deixou de ser rejeitada, facto relevante para alguém com o seu historial. Quem viu Brief Encounter (Breve Encontro, 1945) de David Lean, não esquece, e, por isso, dificilmente não o verá também, retrospectivamente, na cena da estação de comboio em que Charlotte acorre ao encontro de Jerry: também aqui, um amor “impossível”, barrado pela norma social; também aqui, dos dois elementos do casal, o homem é quem mais titubeia e dá o dito pelo não dito.
Com a morte da mãe e o peso da culpa no espírito (“I didn’t want to be born. You didn’t want me to be born. It’s been a calamity on both sides!” é o gatilho do “tiro” fulminante), Charlotte volta a Cascade, onde, à chegada, conhece uma menina deprimida que a faz recordar profundamente de si mesma e que, por isso, abraçará como se de uma filha sua se tratasse – como se, o leitor já advinhou, da uma filha sua com Jerry se tratasse. Na verdade, Christine é a filha mais nova de Jerry, também ela uma filha tardia, não desejada e, por isso, infeliz e complexada. Neste sentido, opera-se como que uma transferência ou re-transmissão afectiva neste estranho “triângulo de compensações” (composto por Charlotte, Jerry e Christine): Charlotte, que se restabelecera graças ao amor de Jerry, mas que agora dele carece, irá fortalecer a filha deste (que sofre do mesmo mal que ela própria sofreu), dando-lhe aquilo que, querendo dar (também) ao seu pai, dele não pode receber.
É, então, com pai e filha em sua casa que Charlotte dirá ao primeiro, numa cena que tinha tudo para ser um retumbante happy ending, a célebre “Don’t let’s ask for the moon, we have the stars” – e a lua, sabemo-lo, é tanto a felicidade individual de Charlotte como o amor com Jerry e a sua tradução carnal, ou seja, o beijo final que Charlotte lhe recusara segundos antes. Final que, não se podendo dizer ser “infeliz”, é de todo inusitado (imaginamos o desconsolo do público americano), porquanto, sendo promessa de um amor unicamente platónico, promove uma renúncia de tal modo castradora que ninguém acredita no seu sucesso. Neste sentido, este é um falso final (diferente de um “final falso”), ou, mais apropriadamente, um final em falso. Um final aberto também, pois claro, quanto mais não seja porque, em matéria das stars a que se refere Davis, sabemos, desde High Sierra (O Último Refúgio, 1941) de Raoul Walsh, que, quando Bogart diz a Joan Leslie “When you’re out at night, you look up at the stars and you can almost feel the motion of the earth”, não se está a referir apenas (ou de todo) à terra, mas ao amor e ao movimento (“motion“) que ele imprime em nós.
Now, Voyager será exibido dia 30 de Outubro, pelas 21h45, no Auditório do Museu Municipal de Caminha, numa sessão promovida pelo Cineclube Locus Cinemae.