Como oportunistas que somos, aproveitamos a estreia de Carol (2015) para fabricar um conjunto de palavras sobre um filme de um tempo em que o bissexto Todd Haynes (seis longas-metragens em trinta anos, algo raro num cineasta norte-americano) ainda não era a figura institucional e quase uniformemente elogiada no interior do cinema de Hollywood. E é bastante provável que, por altura de Superstar: The Karen Carpenter Story (1988), ainda ninguém tivesse redigido as palavras “Douglas” e “Sirk” num texto sobre os então escassos trabalhos estudantis de Todd. Embora, por esta sua curta-metragem, bem que poderiam tê-lo feito.

Superstar: The Karen Carpenter Story ocupa na delimitada cinematografia “independente” (aspas, sempre) um lugar de quase relíquia, resultado de em 1990 ter sido banido de toda a circulação (comercial) por ordem judicial, após processo movido por Richard Carpenter (irmão de Karen) a Haynes, tão só e apenas pelo mesquinho motivo do nosso realizador ter utilizado as canções dos The Carpenters sem autorização prévia. Vinte e cinco anos depois, e aparte uma cópia em poder do MoMA (que não a pode exibir), o que resta para visualização encontra-se espalhado pela Internet numa qualidade esplendorosamente miserável, onde conceitos como “remasterizações” e “2k” são expressões idiomáticas de seres espaciais. A degradação da imagem, fruto de sucessivas cópias, resulta num contrabando à moda antiga que não só contribui para a mistificação onírica do próprio filme como está em perfeita consonância com o tema central do filme, isto é, a degradação do corpo e da mente da Karen Carpenter.
E, agora, pergunta a senhora que nos lê, envolta em xailes negros, curvada, e cozinhando pão no borralho: mas quem é esta Karen Carpenter? Pois bem, Karen era a vocalista e cara-metade dos The Carpenters, grupo musical de dois irmãos que nos princípios dos anos setenta do século passado atingiu o estrelato com o recurso a canções pop de grandiosa delicadeza melódica, tão grandiosa que os seus detractores – bandidagem pura, acrescente-se- a confundiram com arremedos de romantismo descartável. Como se não bastasse isto, projectavam uma imagem de inatacável limpidez, envolta nos bons valores americanos, portanto, um retrato de uma juventude norte-americana a milhas das sujas barbas, cabeleiras e reivindicações da geração hippie que, felizmente, se começava a dissipar. Atingiram o céu quando foram convidados pessoais do próprio Presidente dos EUA, Richard Nixon, para actuarem na Casa Branca, isto a escassos dias de ocorrer uma qualquer coisa num hotel.
Um dos hobbies preferidos de quem escreve sobre filmes é procurar nos primeiros e (ainda) artesanais filmes de um cineasta os sinais do seu futuro; no caso de Haynes, como se costuma dizer, “já lá estava tudo” em Superstar: The Karen Carpenter Story.
Para quem conhece razoavelmente bem o percurso de Haynes, não é preciso muita sabedoria para adivinhar o que lhe interessou na vida de Karen. Os segredos da suburbia (esse tema caro a muito cinema americano); a pressão exterior (sociedade, família, amigos, meios de comunicação…) a deformar a sanidade física e mental de uma pessoa; a relação obsessiva entre a pessoa e a doença de que sofre (anorexia nervosa, neste caso), oito anos antes de Julianne Moore ter de se isolar num iglo; o fascínio e simultaneamente a repulsa pelos mass media e seus mecanismos publicitários. Um dos hobbies preferidos de quem escreve sobre filmes é procurar nos primeiros e (ainda) artesanais filmes de um cineasta os sinais do seu futuro; no caso de Haynes, como se costuma dizer, “já lá estava tudo” em Superstar: The Karen Carpenter Story.
Chega-se, então, ao quarto parágrafo sem se mencionar o aspecto mais facilmente identificável com o filme: Karen, Richard, os seus pais e outras personagens são todas “interpretadas” por…marionetas. Pode-se aventar a hipótese de tal ter sido decidido por questões orçamentais ou por mero “capricho” artístico, o que não se pode duvidar é do resultado de tal escolha: um filme que tanto distribui melancólica inocência (uma Barbie a “cantar” Carpenters…) como se envolve em pequeno retrato de um horror caseiro (casinhas todas elas moduladas para os bonecos, claro está), sobretudo quando vemos o “rosto” macilento da Karen/Barbie, resultado do progresso da anorexia. Bom, pensando bem, se Karen foi pensada como uma Barbie, tanto pela família como pelos media, nada como uma para a personificar. Dois símbolos de uma perfeição corporal inantigível. A acabar em desastre, como se esperava.
Quase trinta anos depois de Superstar: The Karen Carpenter Story, Todd Haynes é hoje um realizador bem mais polido (ou “maduro”, se for conservador) e muito mais facilmente “lido”. Este seu trabalho mostra um jovem, por outro lado, a estourar de energia criativa, misturando narrativas caras ao biopic com entrevistas de rua sobre anorexia, passando por sucessivas colagens à Brakhage, onde se vislumbram episódios da guerra do Vietname, travellings sobre as casinhas suburbanas dos USA, dessincronização cognitiva entre uma voice over e informações embutidas no filme, Holocausto ou um boneco a ser espancado. E a voz de Karen sempre a pairar um palmo acima de tais mundanas matérias. Cada vez mais triste, sobretudo quanto mais joviais são as letras. “Douglas”. “Sirk”.
https://www.youtube.com/watch?v=rACJWPd3VnI