Não é todos os dias que um filme com estes valores de produção vai parar directamente ao mercado do on-demand e home cinema. Independentemente de ser um dos filmes mais ambiciosos do seu realizador, Jeff Nichols, Midnight Special (Midnight Special – Poderes Misteriosos, 2016) tem todos os ingredientes para ter conseguido um razoável resultado de bilheteira: intriga messiânica high tech, situada algures entre o texto bíblico e a banda desenhada de super-heróis, protagonizada por um elenco de excelência, onde se destacam Michael Shannon – “a musa eterna” deste realizador -, Sam Shepard, Joel Edgerton – estes dois actores também fazem parte da trupe de Nicholson, sendo que esse último protagoniza o seu mais recente filme, estreado há pouco tempo em Cannes, Loving (2016) -, Kirsten Dunst e Adam “Star Wars” Driver. Qual a diferença especial para os filmes que têm “incendiado” as bilheteiras? Ao invés de se centrar na espectacularidade dos efeitos especiais ou na coreografia das cenas de “shock and awe”, este filme é a cara do cinema de Nichols: uma obra cuja economia narrativa é comandada pelos sentimentos das suas personagens. Dir-se-á que busca o “sense of wonder” (o sonho e o sentimento) de um Steven Spielberg. Sim, quem o diz não está longe da verdade, mas nada ultrapassa aqui os níveis de baixa frequência dramática do cinema, bem mais sussurrante, de Jeff Nichols. Não ultrapassa e talvez devesse fazê-lo. Mas vamos por partes.
Havíamos já descoberto a pulsão de Nichols para fábulas fantásticas ambientadas na contemporaneidade. O resultado dessa pulsão não era famoso: Take Shelter (Procurem Abrigo, 2011) gerou um certo culto, mas lançou Nichols para territórios que o pareciam distrair do essencial de um cinema que, no seu drama de estreia Shotgun Stories (Histórias de Caçadeiras, 2007), vivia da respiração íntima, tão sóbria quanto solene, do seu corpo de actores. Mud (Fuga, 2012), o seu melhor filme até à data, é uma fábula de piratas escondida num drama actual acerca de uma criança que procura abrigo paterno junto de um criminoso em fuga. Há um corpo de personagens e há personagens com corpo: amam, sofrem, lutam… mas fazem isso tudo “baixinho”. Michael Shannon – sobretudo o seu rosto – é a medida de todo o cinema de Nichols. A sua expressividade no limiar da inexpressividade é emblemática do que quer este realizador dos seus actores e das suas personagens: que sejam seres humanos, não importa a situação – mesmo a mais “fantástica” – em que se vejam envolvidas. De qualquer modo, ingressar num mundo longe do nosso é sempre um passo arriscado para um realizador tão terra-a-terra.
“A feeling of comfort”. A expressão vem do filme e resume bem para onde as personagens de Nichols, no fundo, caminham. Se em Spielberg vinga uma noção mais ou menos idílica de “casa” e de família, em Nichols sobressai a busca por um certo “sentimento de conforto”. Num mundo saturado de códigos – de comunicação, de vigilância, de “doutrinação” política, religiosa, sentimental – Midnight Special procura iluminar uma ideia moderada de bem-estar entre os homens. Uma “paz mínima”, não exuberante – nesse sentido, pouco spielberguiana -, ainda que alimentada por uma crença salvífica no humano – o humano como verdadeiro “poder misterioso”. Posto isto, não há lágrimas a rodos, apesar de haver entendimento, empatia, acenos e abraços; ou melhor, uma movimentação solidária para que alguém muito especial – que todos “os outros”, de toda a parte, procuram instrumentalizar, transformando em arma ou em “novo Jesus” – aceda a um mundo acima do nosso.
A viagem flui, com cuidado pelas personagens, mas o que o filme acredita – quer fazer acreditar – é demasiado grandioso para tão terrena – ia escrever “terrestre” – condução dramática.
Quase apetece dizer que um M. Night Shyamalan adoraria ter sonhado, escrito e realizado Midnight Special. Há neste filme, por um lado, uma crença profética num entendimento humano – não imune à dor – e, por outro lado, uma vontade de transformar o fantástico numa forma de comentário aos grandes assuntos da contemporaneidade – o “efeito” omnisciente, pós-Snowden, da informação e tecnologia combina bem aqui com uma ideia obsidiante de totalitarismo democraticamente consentido, que aniquila o humano a favor da ideologia cínica, igualmente fascista, do super-herói. Estamos algures entre Unbreakable (O Protegido, 2000) – o filme que descodifica toda a nossa era de homens em collants e “esquadrões suicidas” -, The Village (A Vila, 2004) e Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006)- que sonhavam intensamente com a vinda de um messias que jogasse ao chão as paredes de um “condomínio” que era tão-somente uma metáfora poderosa para a guerra e para os media, leia-se, para a guerra obsidiante dos/nos media. Como resulta então esta ideia perfeitamente shyamalaniana no universo de Jeff Nichols? No fim, e lamentavelmente, consumida pela sua endémica timidez. Isto é, o filme quer crer, quer crer muito. Todavia, não tão fortemente para fazer acreditar no inacreditável.
O excesso sentimental do cinema de Spielberg ou até de Shyamalan tem, por vezes, o mérito de acompanhar o movimento ascensional, incrível, impensável mesmo, da escadaria dramática. É uma arquitectura íngreme, que não tem medo de picos de patético ou de ridículo – tantas vezes condição para o sublime. Pois bem, aqui raramente Nichols tira o cinto de segurança. A sua viagem flui, com cuidado pelas personagens, mas o que o filme acredita – quer fazer acreditar – é demasiado grandioso para tão terrena – ia escrever “terrestre” – condução dramática. Quando a altura ultrapassa a nossa compreensão, é preciso saber voar, sair do chão e enfrentar as surpresas vindas do céu. Midnight Special não é um Jeff Nichols muito especial, mas mesmo assim não é inteligente – nem sequer inteiramente justo – remeter este filme para o desonroso mercado do direct-to-on-demand e direct-to-DVD.