O impacto do “imaginário Disney” – suas histórias, personagens, mitologias – talvez tenha o seu expoente máximo na adjectivação que, social e psicologicamente, se passou a utilizar na caracterização das “dores do crescimento” que todos – uns mais, outros menos – sentem: a chamada “síndrome Peter Pan” (inclusivamente com repercussão científica no livro The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown Up, 1983, de Dan Kiley). Ora, Big (1988), de Penny Marshall [a mesma realizadora de Awakenings (Despertares, 1990)] é, podemos dizê-lo, o filme “anti-Peter Pan” por excelência, na medida em que levanta, ainda que dentro dos convencionalismos de Hollywood, fundas e incómodas questões, ao mesmo tempo que afirma, em alto e bom som, que, no fundo, no fundo, ninguém quer voltar a ser criança ou “não crescer”, enfim, que ninguém quer verdadeiramente habitar a utópica “Terra do Nunca” (Neverland, o nome que, recorde-se, alguém como Michael Jackson deu ao seu rancho).
Enquanto comédia (muito) amarga que é, fá-lo com graça, sim, mas pragmaticamente e sem complacências, desse modo demolindo um dos grandes mitos da civilização ocidental, por sua vez fundado nessa ideia de que ser adulto, consciente, reflexivo (a “dor de pensar” pessoana), assumir responsabilidades, é algo intrinsecamente mau; e que, pelo contrário, ser criança e carregar como única angústia na vida a obrigatoriedade de dormir a sesta depois do almoço (pressupondo, claro, o nível de bem-estar burguês da família do miúdo no filme, desconhecido para milhões de crianças em todo o mundo) é que é algo realmente prazeroso e gerador da “verdadeira felicidade”.
A “Terra do Nunca”: um “Jardim do Éden” sem maçãs pecaminosas, um “paraíso na terra” laico onde todos podemos ser o que quisermos (excepto ser adulto)
Aliás, nessa desconstrução mitológica, Big inicia-se em toada precisamente oposta ao ideal “peterpanesco”: Josh (um tenrinho Tom Hanks, então com metade dos tiques que hoje me afastam dele), uma criança como outra qualquer, quer… crescer, ser adulto. Porquê? Não pelas razões em que mais rapidamente pensaríamos (independência, liberdade, dinheiro, poder), mas pela razão mais importante de todas, a única que, na realidade, interessa: uma miúda. Em rigor, mais do que propriamente ser “adulto”, Josh quer ser… mais alto (“big”), em especial, mais alto que a miúda dos seus sonhos. Não só para ficar bem na fotografia, mas, também, de forma a poder entrar com ela na roda gigante (onde é barrado por ser demasiado baixo), cuja aceleração e “vertigem” rimam com essa montanha russa chamada amor (e, já agora, com uma outra chamada “vida adulta”, mas já lá iremos).
Sendo-lhe concedido um corpo de adulto pelo misterioso “Zoltar” (o do plano abaixo), uma figura mística que habita uma poeirenta máquina arcade que Josh encontra por acaso na feira popular (era o tempo em que, nos filmes “para crianças” ou “para toda a família”, uma cena de cinema fantástico ainda era possível de ser filmada com algum mistério e silêncio, sem decibéis exagerados e um arsenal de efeitos especiais), Josh enfrentará o grande desafio que é o de viver no “mundo dos adultos”. Mundo, esse, pintado, desde o primeiro minuto, como um espaço de hostilidade, confronto, ganância: primeiro, nessa conturbada chegada a Nova Iorque (aqui cidade dos “pecados”, não dos sonhos) onde se aloja numa decrépita pensão, depois, com a entrada no “mundo empresarial”. Para sua sorte, e depois de um feliz encontro com Mr. MacMillan numa loja de brinquedos (cena memorável, essa, a do piano gigante “pedestre”), Josh passa a ser o “consultor” da MacMillan Toy Company, que beneficia da sua “cabeça de criança em corpo de adulto” para testar o sucesso de novos brinquedos no mercado. Claro está que Hanks será o consultor-prodígio, através da sua “lucidez inocente” de criança vendo coisas que os outros consultores, gananciosos e embrutecidos (adultos, pois), não vêem, passando, então, a ganhar uma fortuna, a qual esbanja numa apartamento “de sonho” equipado com máquinas arcade, trampolins e uma vending machine de Pepsi (delicioso). Como se vê, não há sequer aqui – e tudo concorreria para que houvesse, a começar nas palavras “20th Century Fox” – aquela patetice das “crianças que se portam como adultos” e dos “adultos que se portam como crianças”, já que a leveza (diferente de ligeireza) do filme não compromete a sua seriedade e o seu empenhamento dramático. Bem pelo contrário, Josh é uma “criança-grande” que se recusa a portar como um adulto, e, quanto aos adultos do filme, todos eles se comportam como tal sob o traço caricatural que Marshall lhes atribui (com a excepção de Mr. MacMillan, todos são cinzentos, gananciosos, interesseiros).
Até este momento, Hanks é uma espécie de “último moicano”, anti-herói que, vivendo e actuando no mundo dos adultos, conserva a sua infantilidade e respetiva forma de estar, evitando, assim, ser “assimilado” pela “classe” etária em que se insere (e os códigos que ela pressupõe), no que o filme ensaia uma espécie de grito contra a formatação a que, nas nossas vidas, nos vamos progressivamente submetendo, simultaneamente mostrando simpatia por todos os “inadaptados” que, por um motivo ou outro, são tradicionalmente olhados de lado. Todavia – e aqui se inicia o tom pragmático do filme a que aludimos acima –, à medida que o tempo passa, Hanks começará a “adultizar-se”, seja pelo fato e gravata que passa a utilizar ou pelo stress e irritabilidade (motivados pelo trabalho na empresa) que começa a acusar e que, inclusivamente, o afastam de Billy, seu melhor amigo de infância e o único que está ao corrente da sua metamorfose. Esse o olhar definitivamente desencantado e descrente que o filme lança sobre o que é isso, afinal, de “ser adulto” (e, indisfarçavelmente, o ritmo laboral que lhe está associado) e sobre a impossibilidade de transgredimos com a praxis social que essa condição pressupõe (ainda há tempos, em conversa com um amigo meu com quem partilhei muitos momentos “transgressivos” na juventude, ele dizia-me, para meu espanto e contrariando tudo o que um dia apregoámos, que jamais aceitaria na sua empresa um tipo com um brinco na orelha…!).
Zoltar, o Deus ex machina (aqui em modo arcade)
Paralelamente (e convencionalmente), a inocência de Hanks conquistará, ainda que de forma involuntária, o coração de uma executiva da sua empresa, que larga o consultor “mau” para se entregar ao consultor “bom”. Se o convencionalismo e moralismo do argumento incomodam, o filme, na sua franqueza, na sua ausência de “truques” ou artificialismos (gimmicks), vai, a pouco e pouco, enternecendo o espectador pela forma como se preocupa e acarinha as suas personagens, como compreende as suas angústias. E a maior delas é esta: Hanks terá, mais tarde ou mais cedo, de “voltar a ser criança”, de despir o corpo de adulto e regressar a casa dos pais (desesperados com o seu desaparecimento), à escola, aos trabalhos de casa e às brincadeiras de rua com os vizinhos. Aqui se joga a substância essencial do filme: Hanks voltará ser criança (perdendo Susan) ou preferirá manter-se adulto e viver a vida feliz que tem com Susan? No auge do dilema, Hanks vira-se para Susan: porque não voltar ela a ser criança e, num trajecto contínuo, crescerem juntos para, mais velhos, se apaixonarem e viverem juntos numa “segunda vida”?
É neste passo que o filme dá uma (dupla) machadada na “síndrome Peter Pan”. Ao contrário do que é expectável – ou, pelo menos, ao contrário daquilo por que suspiramos frequentemente no nosso dia-a-dia (“ah, quem me dera voltar a ser criança novamente…”) –, Susan, depois de ponderar, recusa a hipótese de voltar a ser criança (bastaria recorrer, como Josh, ao “Zoltar”), preferindo continuar a habitar o mundo dos adultos e perdendo, consequentemente, Josh. A questão que o filme, de forma muito directa (e até um pouco bruta, avessa a lamechices), coloca – e resolve (através da escolha tomada por Susan, justamente…) – é essa: a sério, a sério, quantos de nós, que tanto apregoamos o desejo de voltar a ser criança, gostaríamos efectivamente de o ser se nos fosse dada essa oportunidade ? Josh volta a ser criança não porque isso lhe permita uma vida mais feliz ou despreocupada, mas porque tem de voltar aos seus pais e, de alguma forma, seguir o rumo biológico normal da vida.
Ironia: Tom Hanks, a criança-que-quer-ser-adulto-e-depois-criança-novamente (perdendo a sua proto-esposa), haveria de casar justamente no ano de estreia do filme, então com 32 “adultos” anos
Para alguns cinéfilos, poderá ser heresia citar-se aqui o nome de Krzysztof Kieślowski, mas isso interessa-me tanto como a revisionista recontagem de títulos que o Sporting tem tentado levar a cabo. Tal como nos filmes do polaco, o filme coloca as suas personagens – e os espectadores – perante intrincados campos de possibilidades, coincidências, hipóteses, bi e trifurcações, tudo coberto por um enigmático manto “cósmico”, aqui claramente reforçado pela dimensão fantástica do filme, expressa na presença e influência de “Zoltar”, literalmente Deus ex machina. Se eu escolher ir por aqui, o que acontece? Se for antes por ali, que consequências terá isso mais tarde? De que forma um caminho que eu escolho pode influenciar outros (meus e dos outros)? Haverá alguma causalidade oculta, alguma insondável relação entre as escolhas que todos fazemos? E serão elas realmente escolhas ou estarão já previamente escritas num Grande Plano superior criado por um qualquer “Zoltar”? E se…?
Porque é que Josh decide voltar a ser criança quando tem uma vida tão feliz e preenchida com Susan (ela é, provavelmente, o “amor da sua vida” )? Apenas para tranquilizar os pais ? E será que, se Susan voltasse a ser criança, eles poderiam, de facto, crescer e vir a apaixonar-se novamente ? E será, ainda, como Josh e Susan chegam a desejar, que, depois de Josh crescer e se tornar adulto (novamente…), poderá conhecer Susan (agora mais velha) e apaixonarem-se outra vez, com idades tão díspares ? É tudo isto que ressoa naquele final tão económico quanto comovente em que Susan deixa Josh à porta de casa dos pais, momento em que a “comédia infantil” vira drama tocante e credível. Josh sai do carro, vai em direcção a casa e volta-se para trás, recebendo de volta o olhar de Susan: os dois conscientes daquela relação “impossível”, da inevitabilidade do desencontro, de que o Tempo, mais do que a vida, é madrasto.
Eu, “adulto”, eu que nasci no mesmo ano em que o filme estreou, também o sei, e, por isso, pergunto(-me): ó tempo volta para… trás? Ou para a frente?