Há quatro anos quando decidimos começar esta aventura, este carrossel sem freio chamado À pala de Walsh havia duas ideias que me eram (e são) particularmente caras. Uma, a de juntar esforços para usar o digital como “arma” de democratização do pensamento em torno dos filmes, mas de uma forma que pudesse agregar qualidade ao invés de a dispersar. Duas, a de poder dar voz e cara a projectos que, colocando os filmes no centro das suas preocupações, resistiam como alternativa à natural concentração de iniciativas em torno da cidade de Lisboa. Dispersão digital e geográfica, portanto.
Entretanto o cinema morreu. Ou pelo menos esse é o refrão mais conhecido de uma já longa canção. Só que o cinema é um walking dead e desta morte vários caminhares se foram fazendo. De um lado, o aperfeiçoamento da máquina mundial de marketing e super-heróis, movida a coca-cola e pipocas, que todos os anos invade espaços comerciais promovendo em muitos casos a amnésia ou a pura aceleração sensorial. No espectro oposto, mais ainda herdeiro desta falência cardíaca da sétima arte, está o crescimento exponencial dos festivais de cinema. Estes servem como alternativa à exibição comercial da maioria dos filmes feitos hoje e por isso são de facto uma vital lufada de ar fresco. Contudo, importa notar que os festivais, uns como forma de sobrevivência outros por opção, acabam por ser “vítimas” do seu próprio crescimento. A crescente visibilidade dos mesmos implica que a máquina cresça e que os filmes e o cinema sejam apenas uma parte de um grande evento que deve agitar-se, ter cor e muitas guloseimas. Nesse “centro comercial” alternativo, o espectador deambula, igualmente intoxicado, já não pelas pipocas e pela coca-cola, mas pelas múltiplas hipóteses que a programação cultural oferece. Nessa deambulação há hoje, creio, uma dicotomia interessante a pensar entre o espectador profissional do aperto de mão e o espectador alucinado que, desviando-se dos contactos sociais como se de obstáculos se tratassem, quer é sobretudo ver o máximo de filmes que puder. (Sobre essa performance alucinatória aproveito a ocasião para anunciar que vamos em breve publicar a tradução de um texto de Ariel Schweitzer, crítico dos Cahiers du Cinéma, precisamente sobre esse tema.)
Entre estes dois pólos opostos mas relacionáveis – o circuito mainstream e os grandes festivais – existe uma dimensão intermédia, que nem sempre é fácil de determinar. Um pouco como aquele experiente bêbado que sabe manter-se alegre, evitando a sobriedade mas também o vómito e o sono. Nos últimos anos vários cineclubes portugueses e associações têm conseguido manter-se nesse ponto de equilíbrio, apresentado obras contextualizadas em torno de uma importante mediação das imagens e discussão em torno delas. A título meramente exemplificativo poderia destacar iniciativas como o muito meritório trabalho que tem feito o Lucky Star Cineclube de Braga, ou, noutro plano, os já muito conhecidos Encontros Cinematográficos no Fundão, e o Doc’s Kingdom. A estes podemos adicionar os próprios festivais com uma dimensão intermédia (por exemplo, o MotelX ou os Caminhos do Cinema Português). Ainda recentemente as iniciativas da Gulbenkian – sejam elas os Encontros de Harvard na Gulbenkian, o ciclo programado por João Mário Grilo “P’ra Rir!” ou o ciclo “Nos Caminhos da Infância” organizado pela associação os Filhos de Lumière – procuram recuperar esta noção de encontro (de menor dimensão e mais comportável dimensão) para falar do cinema.
E chegamos finalmente a Close Up – Observatório de Cinema que arranca hoje a sua primeira edição na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. A ideia do programador Vítor Ribeiro (também responsável pelo Cineclube de Joane) é ambiciosa: trata-se de durante período alargado, e de dois em dois meses, organizar quatro dias de programação cinematográfica em torno de alguns eixos temáticos. Desde logo um dos elementos que mais me chama a atenção é o facto de todas as sessões serem comentadas e discutidas com o público em interacção com críticos, cineastas e programadores. A opção é para já a de não ter uma secção competitiva apostando em que cada filme, e a lógica de cruzamento com outros, possa funcionar com acontecimento em si.
Na programação encontramos assim uma secção intitulada “Paisagens Temáticas” que vai reflectir sobre a possibilidade de fazer cinema a partir de uma herança e distância ao holocausto. Aqui serão exibidos filmes como o Saul Fia (O Filho de Saúl, 2015) de László Nemes, Treblinka (2016) de Sérgio Trefaut, Hannah Arendt (2012) de Margarethe Von Trotta e O Homem Decente (2014) de Vanessa lapa. Numa segunda linha temática, de nome “Histórias do Cinema”, passarão a dialogar dois grandes nomes da história do cinema. Neste caso Yasujirô Ozu,, com Higanbana (A Flor do Equinócio, 1958) e Ohayo (Bom Dia, 1959) que irão ser passados em relação com dois filmes de um dos fundadores dos estúdios Ghibli, Isao Takahata, Omohide poro poro (Memórias de Ontem, 1991) e Heisei tanuki gassen ponpoko (PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins, 1994). Lembro que estas sessões em particular serão comentadas pelos walshianos David Pinho Barros e Luís Mendonça.
O cinema português estará presente na secção “Fantasia Lusitana” que privilegiará olhares perto do registo diarístico ou biográfico. Passarão por lá nomes como Margarida Leitão (Gipsofila), André Príncipe (Campo de Flamingos sem Flamingos), Manuel Mozos (João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei), João Botelho (O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu), o próprio Oliveira através do seu filme biográfico a ser visto apenas a sua morte (Visita ou Memórias ou Confissões), Maya Kosa e Sérgio da Costa (Rio Corgo) e ainda In Media Res de Luciana Fina, que também contribui com a instalação Chant Portraits, que se encontra na Casa das Artes desde o início do mês de Outubro. Não esquecer ainda a sessão especial do recente O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata.
As restantes secções serão dedicadas ao cinema do mundo que nesta edição homenageia o brasileiro Gabriel Mascaro, com a exibição de três obras suas e com destaque para o recém estreado entre nós Boi Neon (2015). Haverá ainda projecções direccionadas à reflexão sobre a “Infância e Juventude” e “Sessões para Escolas e para Famílias”. Finalmente o capítulo “Extrapolações” porporcionará um final de cada dia mais relaxado com café-concertos, a cargo do Dj. Close Up.
Se é com este figurino e com muitos convidados que Famalicão entra no mapa dos eventos cinematográficos do país, resta assinalar o pai inspirador deste projecto: o cineasta Abbas Kiarostami. Além de dar nome ao projecto, com o seu conhecido Close Up, [ou Nema-ye Nazdik (1990) no original], Vítor Ribeiro, dado a recente perda do grande cineasta iraniano quis homeageá-lo dirigindo com Mário Macedo a obra Cinco para Kiarostami. Este é um filme que conta a influência que Kiarostami teve na vida de cinco pessoas (uma delas o walshiano Francisco Noronha) completamente diferentes. É com este gesto de amor que abre hoje o primeiro encontro de Close Up – Observatório de Cinema de Famalicão, às 21h45, desta quinta-feira, na Casa das Artes.
Resta dizer, let the films (and the thinking) begin neste festival que não é bem um festival mas que sabe bem qual é a mais ambiciosa das linhas de partida: a lente aproximada ao cinema, o close up.