Há um ponto de partida relativamente fácil para se compreender a essência do filme com que João Pedro Rodrigues (JPR) arrebatou o prémio de Melhor Realizador em Locarno 2016. Na verdade, um ponto de partida – o leitor perdoar-nos-á a incursão auto-biográfica – que nos é muito caro. Explicamos. Era uma vez um menino não baptizado e com pais não religiosos, pelo que nunca recebeu uma educação religiosa em casa. Mas, vá-se lá saber porquê, os mesmos pais entenderam, à data, inscrever o filho num colégio católico. De freiras. Um colégio, portanto, com aulas de “émê-rê-cê” (“Educação Moral, Religiosa e Católica”), catequese e ocasionais missas nas quais o rapaz era o patinho feio que nunca podia tomar a hóstia (o que fez com que, quando todos os coleguinhas se preparavam para fazer a primeira comunhão, tenha padecido de uma “crise de fé” e pedido aos pais que o baptizassem, ao que estes, felizmente, não acederam).
Durante a catequese na capela, o rapaz distraia-se olhando, fixa e demoradamente, para todas aquelas esculturas, imagens e gravuras bíblicas. Corpos despidos, doridos, sangrentos, rostos de esgares suplicantes, trejeitos corporais altamente sublinhados, expressões barrocas de uma vibração invariavelmente sexual (inclusivamente sado-masoquista), sugestões de submissão e rendição… E o que esse confuso rapaz entrevia em tudo isso é – compreende ele agora tantos anos depois – o que também atrai JPR na religião: a extrema sensualidade, a volúpia, a luxúria desses corpos, dos seus olhares, dos seus gestos. Daí o modo plástico e subversivo como o cineasta, iconoclasta desde o primeiro filme, joga com toda a iconografia e narrativa cristãs, da figura de Cristo à ressurreição; do martírio crístico (as chagas nos dedos de Fernando como as chagas de Cristo) ao sado-masoquismo (e castração associada) como reverso da “santificação” ou “purificação” (como é sabido, a auto-flagelação permanece um ponto de honra entre os cristãos mais ortodoxos); da frugalidade franciscana à descoberta de uma “vocação”. O Desejo latente, elemento herético e contraditório por excelência no seio do figurativismo cristão, é o que conduz ao outro milagre (além do da “santificação” de que o filme trata) da obra de JPR, o de encontrar o erotismo nos locais menos óbvios: a iconografia cristã em O Ornitólogo como a mota em O Fantasma (2000).
Já se disse que O Ornitólogo é um filme-resumo ou um filme-revisão da obra de JPR, e talvez seja esse o motivo para, em parte, nos ter desiludido (mas tomara que muitos realizadores nos “desiludissem” desta maneira). O tema da metamorfose, eixo central da sua obra desde o estrondoso O Fantasma, é novamente posto em cena no seu último filme, aqui ao ponto literal de, efectivamente, se dar uma transformação (já não, portanto, apenas como metáfora), uma milagrosa “mudança de pele”, no caso, de um homem em carne e osso que se volve em santo (a segunda convocação do padroeiro de Lisboa na obra de JPR depois de Manhã de Santo António, 2012). E metamorfose, também, ao ponto extremo de esta veicular uma certa dimensão meta-cinematográfica, no sentido em que envolve o realizador, JPR ele mesmo, nesse processo transformativo: Fernando que se metamorfoseia em JPR (e se é por questões práticas que JPR dobra a voz do actor Paul Hamy, o certo é que tal mecanismo acaba justamente por contribuir para essa marca meta-cinematográfica); Fernando que se metamorfoseia em Santo António; JPR que se metamorfoseia em Fernando (na faculdade, o realizador ambicionava ser ornitólogo); JPR que se metamorfoseia em Santo António?
As respostas são o que menos interessa, num filme que é, para o espectador como para Fernando, uma experiência, uma jornada sensorial de descoberta da natureza, dos animais, dos surroundings (mas não apenas, ou não tanto, isso…). E se JPR sempre filmou algumas das suas personagens como animais ou, melhor, como criaturas, obsessivas e voyeuristas — como sublinhámos em texto que escrevemos sobre Odete (2005), e aspecto tão ou mais flagrante em O Fantasma —, Paul Hamy, pouco ou nada “animalizado”, é o grande desvio a essa tradição de representação, até porque, pela primeira vez na obra de JPR, a personagem principal já não é o único agente voyeurista, pois que ela própria é observada, “espiada”, por terceiros, os pássaros (embora as ovelhas testemunhem o momento sexual junto ao rio da mesma forma que o cão se agitava do lado lá da porta do quarto de hotel em O Fantasma). Por debaixo de tudo isto está, porém, uma descoberta maior, a auto-descoberta da personagem principal, sendo, por isso, naturalmente ascendente o percurso trilhado por Fernando, que se vai afastando, progressivamente, das margens do rio e subindo em altitude, como quem “sobe aos céus” (da santidade), nesse trajecto assumindo importância capital o “ponto intermédio” no qual Fernando encontra uma pequena capela onde contempla as tais figuras bíblicas, os tais corpos desnudos, os olhares suplicantes, o sangue.
Em mais um ímpeto metamorfoseador, JPR transforma – ou traveste, para convocar a ambiência queer desde sempre presente na sua obra – a própria paisagem do Douro. A certa altura, e sobretudo pela proeminência da noite (a noite é paisagem e personagem principal em todas as longas de JPR) e do modo como esta é filmada (as sombras e os brilhos, a lua, a vegetação, os ruídos), aquelas margens fluviais “ganham vida” (ou morte?), volvem-se numa selva de assombrações (as máscaras do caretos, a máscara de O Fantasma) e espíritos a lembrar um Apichatpong, uma “tropical malady” duriense – de que a cena nocturna de Morrer Como Um Homem, 2009, embora magnífica, ainda estava longe, porque menos “tropical” ou “fantasmática” – capaz de trazer revelações e outros tantos mistérios. Algo que, se bem que com outros pressupostos (desde logo, outra paisagem, a urbana, embora sempre “nas margens” do urbano, é certo), JPR e Guerra da Mata já haviam logrado fazer em A Última Vez Que Vi Macau (2012, filme magnífico que elegemos como um dos melhores de 2014), onde tais assombrações confluíam mesmo para um aparente e sobrenatural fim do mundo (o mesmo “apocalipse”, ainda que noutros termos, de Manhã de Santo António), num registo exploratório e narrativamente menos linear partilhado por O Ornitólogo, que também se subtrai às formas mais convencionais do melodrama (as de Odete e Morrer Como Um Homem).
Somos demasiado admiradores (e honestos, já agora) do cinema de JPR para, gabando-lhe a grandeza, não deixar de reconhecer o risco de irrisão em que alguns dos seus filmes, em certos momentos, não deixam de ter um pé (como, aliás, outros já o reconheceram). Temos para nós, de resto, que, em todo o grande cinema, do mais clássico ao mais vanguardista ou experimental, esse risco está presente e é, muitas das vezes, efectivamente pisado. A última cena de O Ornitólogo é um desses momentos que desequilibra inegavelmente o filme e que nem uma deliberada “caricaturalidade” atenua, a não ser, de facto, pelo gesto iconoclasta e livre de JPR (tentar encontrar “humor” nessa cena é, cremos, não compreender a própria proposta de JPR). Como quer que seja, é uma cena coerente com a proposta estética de JPR e que não apaga o que de interessante o filme oferece, perfeitamente inserido na obra já longa e riquíssima daquele que é um dos mais talentosos realizadores da história do cinema português (e é intencional o alcance generalizante que empregamos com esta última frase).