Dedicava-me a cozinhar pratos do seu [Jean Gabin] país para os muitos amigos franceses que trazia consigo. Renoir era um deles. Gostava muito de couves recheadas, tinha um apetite voraz e quase sempre se ia embora depois de ter acabado de comer. Nesse tempo eu era conhecida em Hollywood como uma mulher pouco convencional nas maneiras: as pessoas podiam vir e partir da minha casa quando desejassem. Nada de cerimónias nem de sobremesas; algo que Renoir muito apreciava. Era um convidado assíduo, e cada vez que vinha, preparava-lhe couves recheadas.
Pensar que a atriz da minha predileção cozinhava couves recheadas para o meu cineasta favorito, deixa-me um sorriso nos lábios. Não fizeram um filme juntos, mas partilharam várias refeições, e isso pode ter um valor mais afetivo do que qualquer relação profissional. Começar por esta “curiosidade” um texto sobre Marlene Dietrich é apenas uma forma de garantir que é meu. Não me tome o leitor por arrogante, mas duvido que fora desta sala de estar com lareira onde escrevo, no dia em que passam 115 anos sobre o seu nascimento, existam muitas mais pessoas que organizassem um olhar biográfico sobre a individualidade de Dietrich a partir deste relato informal. Justamente, e aproveitando o ímpeto de o arrancar da trivialidade, saber por tal excerto retirado da autobiografia da atriz (Nehmt nur mein Leben, 1979) que cozinhar era um dos seus maiores prazeres, quebra, desde logo, a ideia errónea da mulher fria e distante, inapta para qualquer tarefa doméstica, que muitos filmes transmitiram. Vejam-na no papel de uma mãe diligente em Blonde Venus (A Vénus Loira, 1932) e depois conversamos…
Não me proponho aqui analisar cada um dos filmes em que entrou, ou especular sobre aspetos paralelos ao seu percurso. Isso será empresa para outra ocasião. Além do mais, tenho a certeza que lhe causaria irritabilidade, como manifesta repetidas vezes, numa voz alquebrada mas ainda rigorosa, em Marlene (1984): seja o que for que Maximilian Schell lhe pergunte nesse impressivo documentário, em que nunca somos permitidos a ver-lhe o rosto envelhecido, ela responde, rabugenta, “está escrito no meu livro.” Por isso mesmo, recorrerei várias vezes a ele para completar este pequeno trabalho, feito através da retina do coração, no conhecimento biográfico da mulher que aconteceu ter contribuído para uma certa consciência de que o cinema tem uma costela de Eva.
Com a espontaneidade simples de quem venera, confesso que Marlene Dietrich me causou fascínio desde a primeira vez que a vi, nas imagens em movimento de Shanghai Express (O Expresso de Xangai, 1932). Já sabia que era um ícone, mas os ícones nem sempre provocam emoções intensas ou sinceras. São lampejos do passado, que reconhecemos pela evidência. Mas ela não. Apanhou-me de surpresa na sala escura maior da Rua Barata Salgueiro. Primeiro, um vulto estranhíssimo, ornamentado de penas negras, com o rosto velado numa rede. Depois, um corpo tangível, de voz e gestos lânguidos, protagonista de um dos mais belos planos de alguém a fumar. Sim, aquele com a luz primorosamente afirmada no seu rosto – não descodificamos bem se é essa luz que lhe trabalha o desenho da face, se é a sua expressão que doutrina a claridade. Uma luz que se diz só Josef von Sternberg ter sabido aplicar-lhe. Aceito que sim. Dietrich é a primeira a declará-lo, assumindo-se como respetiva criação do mestre: «O olho por detrás da câmara, esse olho que ama a criatura cuja imagem impressiona a película é a origem do efeito prodigioso que a dita criatura produz, provocando a adulação e a paixão dos espectadores de todo o mundo.»
Poder-se-ia dizer que, neste ponto, o meu texto gera um impasse com o título do dossier – “E elas criaram o cinema.” Então afinal Marlene é um produto de Von Sternberg? Mil vezes não. A atriz nascida em Berlim, a 27 de Dezembro de 1901, devota de Goethe e Rilke, e impelida para a escola de teatro de Max Reinhardt no desejo de recitar estes autores (e fugir às aulas de violino), foi um ser de carisma singular. Von Sternberg descobriu-o confortavelmente sentado na plateia, durante a peça Duas Gravatas, de Georg Kaiser, em que Dietrich interpretava uma personagem norte-americana, apenas com uma deixa: “Vamos, venha jantar comigo!” O realizador, na altura prestes a lançar-se no projeto do primeiro filme sonoro alemão, Der blaue Engel (O Anjo Azul, 1930) – que, como sabemos, viria a ter uma versão inglesa – alguma coisa terá percebido nela, no modo como pronunciou por diversas vezes a mesma frase ao longo da peça. Não a convidou para jantar, mas chamou-a para um teste que se espelharia em muitos dos seus outros papéis, além desse Lola Lola. Refiro-me às performances musicais, claro. Era o piano que acompanhava a sua voz, e não o contrário.
Pediram-me que me empoleirasse no piano, que enrolasse uma meia no tornozelo e cantasse o tema que levava preparado. Mas eu não tinha preparado nenhuma canção. Se não ia conseguir o papel, para quê levar uma partitura? Na realidade, para que é que tinha ido ali? Só havia uma resposta; porque me tinham pedido que o fizesse.
Von Sternberg era um homem paciente: “Já que não trouxe uma canção, cante o que quiser.”, disse-me.
“Gosto de canções americanas.”, respondi, encolhida.
“Então cante uma canção americana.”
Ligeiramente aliviada, pus-me a explicar ao pianista a canção que queria cantar. Naturalmente, não a conhecia.
Von Sternberg interrompeu-me com um tom que não admitia réplica: “Esta é a cena que quero. Está perfeita. Vou filmá-la de seguida. Volte a fazer exatamente o que fez junto ao pianista: explique-lhe o que deve interpretar e a seguir canta-lhe uma canção.”
A partir deste momento, estava lançada na aventura do cinema, nas grandes produções, pela mão do seu estimado mestre. A ribalta propriamente dita chegaria logo a seguir, com Morocco (1930), em Hollywood. E é curioso como alguns biógrafos de Dietrich assumiram que mesmo antes de Der blaue Engel ela já era uma atriz “célebre”… Há, efetivamente, qualquer coisa egrégia que estava lá antes de tudo. Mas este é o facto, e o seu livro faz a correção a todo esse tipo de verdades fabricadas. Assim, sublinhe-se, quando Sternberg a escolheu para este filme, escolhia uma desconhecida. Mas uma desconhecida de caráter disciplinado, interessada por cada detalhe técnico da produção de um filme e amante da França. Era ainda uma criança quando a Alemanha declarou guerra a esse país, no primeiro conflito mundial, e já então assumia uma posição política antagónica com a consciência nacional. As aulas de Francês que cedo entraram na sua formação, ministradas por uma professora que era também objeto da sua idolatria, Marguerite Breguand, eram a maior alegria que tinha no colégio, visto como uma prisão. Não admira por isso que tenha sido ela, muito mais tarde, nas lides de Hollywood, a figura solicitada para auxiliar Jean Gabin (como fizera também com René Clair), fugido da França ocupada, na sua nova vida americana. Tornou-se tradutora pessoal, mas também sua professora de inglês. Repare-se que, para subsistir num país estrangeiro e continuar a fazer cinema, Gabin precisava de aprender a língua, e de alguém que lha ensinasse com o pleno entendimento da sua condição.
Na América do Norte estávamos todos fora do nosso país: vivíamos em terra estrangeira e tínhamos de nos adaptar a costumes e ideias desconhecidas. Gabin, que nisto era muito francês, repelia toda a intrusão estrangeira no seu lar. Eu tinha de cozinhar e falar em francês com ele, e só estávamos com atores e realizadores franceses. Gostava muito daquela vida. Sentia-me simplesmente como em minha própria casa. Existe uma espécie de desejo, nostalgia, frustração de um lar, que me atrai para os franceses e que devo à minha juventude.
Gabin era o homem, o super-homem, o homem de uma vida. O ideal que procuram todas as mulheres.
Dietrich amou-o tal como amou Ernest Hemingway e Noel Coward, amitiés amoureux que faziam as delícias da imprensa cor-de-rosa, mas que só através das suas palavras se podem aceder sem as armadilhas da superficialidade mediática. Uma mulher que ama os amigos não é bem vista, e ela fazia questão de se manter fiel à pouca convencionalidade das suas maneiras. Com Josef von Sternberg foi diferente. Havia um sentido de deferência. O homem que a chamou para Hollywood, afastando-a da Alemanha de Hitler, foi o seu maior protetor, conselheiro, porta-voz, crítico e pacificador. Efetivamente, Dietrich não era um espírito sossegado, mas ele tinha a fleuma necessária para moldar os vestígios da sua juventude numa desarmante maturidade cinematográfica. Quem a viu em Morocco, a partilhar o grande ecrã com Gary Cooper, desconfia que aquela era a sua primeira produção americana? Ao proferir, de olhos semicerrados e cigarro na mão direita, “Husband? I never found a man good enough for that.”, inaugura a pose que lhe valeu o epíteto de femme fatale – justamente neste filme em que usa calças, sempre com a mão esquerda no bolso, e surge numa magnífica elegância andrógina, chegando a beijar uma mulher. Beijos mais doces do que vinho. No cinema há muitas femme fatale, é certo, mas não creio que haja alguma como Marlene, que pela inteligência do corpo, enquanto presença e atitude, consegue definir sozinha a carga erótica de uma cena. Não eram precisos malabarismos carnais, bastava uma canção, um olhar intimidante, o cigarro entre os dedos. A bem dizer, Dietrich abominava qualquer indício de pornografia, e o cinema era a primeira manifestação desse controlo performativo. Também por isso lhe fazia tanta confusão o burburinho sobre a natureza afetiva das suas amizades, acima mencionadas.
Com Von Sternberg, é sabido, manteve uma das mais profícuas colaborações da história do cinema, como o comprovam, para além dos títulos já referidos, Dishonored (Desonrada, 1931), o soberbo The Scarlet Empress (A Imperatriz vermelha, 1934), e The Devil Is a Woman (O Diabo é Uma Mulher, 1935) – este último o seu preferido, como escreveu nas memórias, e a derradeira vez que trabalhou com o cineasta.
Depois disso, ao longo da carreira foram vários os realizadores de renome que lhe deram o papel principal nos seus filmes. Ainda antes de The Scarlet Empress, Rouben Mamoulian foi o primeiro a atrever-se a “ocupar o lugar” de Von Sternberg, com The Song of Songs (Cântico dos Cânticos, 1933), e logo de seguida, Frank Borzage, com Desire (Desejo, 1936), Ernst Lubitsch, com Angel (O Anjo, 1937), René Clair, com The Flame of New Orleans (A Condessa de Nova Orleães, 1941), Raoul Walsh, com Manpower (Discórdia, 1941), William Dieterle, com Kismet (1944), Georges Lacombe, com Martin Roumagnac (Desespero, 1946) – aqui, Dietrich ao lado de Jean Gabin –, Billy Wilder, com A Foreign Affair (A Sua Melhor Missão, 1948) e Witness for the Prosecution (Testemunha de Acusação, 1957), Alfred Hitchcock, com Stage Fright (Pânico nos Bastidores, 1950), Fritz Lang, com Rancho Notorious (O Rancho das Paixões, 1952). Marlene detestou trabalhar com Lang. Apesar de compatriota, revelou-se-lhe um controlador dos gestos que, como ela afirma no seu livro, “Hitler não teria desaprovado”… Na verdade, mesmo que num ou noutro momento não fosse tratada com a dignidade devida, todos desejavam o carisma de Marlene Dietrich nas suas narrativas e nos cartazes dos filmes (ainda que, no início da década de 1940, figurasse entre os nomes apontados pela Associação dos Exibidores Independentes da América como “undiserable at the box office”, ao lado de Greta Garbo, Joan Crawford ou Katharine Hepburn). A odiosa colaboração com Lang resultou, apesar do obstáculo pessoal, numa belíssima despedida aos papéis de protagonista, com a característica cena em que canta uma canção.
A young man is full of adventure
and eager to do what he can
he maybe a joy
but don’t send a boy
to do the work of a man.
Get away, get away,
Get away, young man, get away…
Quem também já passara a juventude e ainda a chamaria para um filme seu, embora num papel secundário, seria o grande – até fisicamente – amigo Orson Welles. Em Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958), por uma última vez, dá uso à expressão enigmática dos seus olhos semicerrados, conjugados com o fumo do cigarro, sempre aceso, sempre a roubar a nossa atenção. Aqui, no entanto, ao contrário de em Morocco, já lhe vislumbramos compaixão no semblante… Por fim, Judgement at Nuremberga (O Julgamento de Nuremberga, 1961), de Stanley Kramer, que diz ter sido um belo encontro com Spencer Tracy, encerraria uma carreira levada com dedicação, mas também alguma distância: “Sou insensível à admiração dos desconhecidos. A celebridade, que pode modificar completamente a personalidade de um ser humano, nunca me fez mossa”.
Morreu em Paris, a 6 de Maio de 1992, num apartamento da Avenue Montaigne. O mesmo onde escreveu as memórias que aqui recuperei e muitas outras (da II Guerra Mundial, por exemplo). Agradeço ao seu livro este bocadinho.
Os excertos da autobiografia de Marlene Dietrich aqui citada provêm da edição portuguesa da mesma: Marlene D., tradução de Filipa Rosa de Morais, Publicações Dom Quixote, 1986.