The bogey of violence is particularly horrifying and intolerable to us when we meet it in cold-blood. The arts, however, avoid its brutal impact by their appeal to the emotions, they warm us to its presence, turning terror into enjoyment and cruelty into compassion. We participate in the act of violence without suffering its evil consequences. Art, in fact, allows us, as in certain rituals, to satisfy our Olympian yearning to stimulate the forces of nature. Its non-violent power has a therapeutic and catalystic influence.
Roland Penrose
Falecido em Setembro de 2016, Herschell Gordon Lewis é unanimemente considerado o inventor do gore, violento derramamento de sangue, na tradução literal do inglês. Esquecido pelas visões mais ortodoxas da história do cinema, o seu trabalho pioneiro justifica uma dedicatória merecidíssima, por ter sido instrumental, não só na evolução do cinema de terror, mas também de áreas adjacentes. A sua herança propagou-se a outras práticas artísticas, tornando-se paradigma da valorização da diversidade e do questionamento de noções de bom gosto prevalecentes na cultura ocidental.

The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974) de Tobe Hooper e Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) de George A. Romero são marcos que afirmam o cinema de terror moderno, capaz de representar as inquietações do mundo contemporâneo e ao mesmo tempo explorar as qualidades estéticas do melhor cinema clássico. Por um lado, a alegoria política de Romero impulsionada pela Guerra do Vietname e pela contracultura hippie, por outro, a inventividade estilística de Hooper acompanhada pela entrada em cena da adolescência urbana em colisão com uma América primitiva de casas adornadas por esculturas de ossos e penas. A América tornara-se um lugar perigoso! Haverá melhor imagem para o atestar, que a bandeira americana hasteada no cemitério, nos primeiros planos de Night of the Living Dead?
Nos anos sessenta, as revoluções sociais pediam ao cinema para ir além da sugestão e do fora de campo, que fizeram escola durante o período clássico, nomeadamente nos filmes de Jacques Tourneur para a RKO Pictures, produzidos por Val Newton. Era o tempo de cair a cortina e revelar o que as convenções sociais mantiveram longe do olhar: o sexo e o sangue, ou seja, a pornografia e o gore. De resto, eram as últimas barreiras que ainda justificariam a existência da censura. Se o papel de Romero e Hooper na afirmação do cinema de terror moderno é difícil de pôr em causa, ele é herdeiro da acção precursora de Herschell Gordon Lewis, jovem publicitário de Chicago que, em parceria com o produtor David F. Friedman, iniciará a carreira cinematográfica nos nudie-cuties, filmes centrados na nudez feminina, primeiro como produtor de The Prime Time (1959) e depois como realizador de Living Venus (1961). Convencido de que Chicago estava demasiada afastada da Califórnia para produzir filmes de sucesso comercial, alguém o levará a mudar de opinião, lembrando que Charlie Chaplin teria sediado na cidade a sua própria unidade de produção, enquanto parte dos estúdios Essanay.
Esgotado o filão dos nudies, a via seguinte era o sexo explícito, que Lewis não conseguiu totalmente evitar.
Esgotado o filão dos nudies, a via seguinte era o sexo explícito, que Lewis não conseguiu totalmente evitar, já que em 1971, sob o pseudónimo de R. L. Smith, assinaria Black Love, uma mancha na sua carreira. Disfarçado de filme educativo de qualidade duvidosa, não tanto pelo conteúdo explícito mas por facilmente proporcionar leituras de contornos racistas, resume-se a uma sucessão de cenas de “amor” entre casais negros, operando como exercício hábil para a América branca, que lotava os drive-ins e as grindhouses, espreitar pelo buraco da fechadura. Todavia, o que imortalizou Herschell Gordon Lewis foi a criação do gore, subgénero do cinema de terror também conhecido como splatter, caracterizado pela exibição ostensiva do interior dos corpos, humano ou animal, em variantes que podem ir da hemoglobina às vísceras, resultado de violência extrema. Manifestando-se igualmente noutras disciplinas como a pintura, a literatura ou a performance, o corpo, na sua faceta mais grotesca e repugnante, aquela que normalmente não é visível, torna-se o suporte; e o sangue a sua mensagem.

Não sendo fácil encontrar os filmes de Herschell Gordon Lewis em sala, uma óptima alternativa para entrar no seu universo é a partir do excelente blu-ray “The Blood Trilogy”, da editora americana Something Weird, que reúne três títulos fundamentais da sua cinematografia: Blood Feast (1963), Two Thousand Maniacs! (1964) e Color Me Blood Red (1965). Como extras, a edição contempla, com alguma ironia, dois pequenos filmes de outros autores que nos conduzem pela génese e retrato da fase inicial do gore, numa mistura entre o filme educativo, o erotismo, a violência e a perversidade: Carving Magic (1963), filme educativo sobre a arte de fatiar rolos de carne cozinhada, patrocinado pela empresa Swift & Company, especializada no processamento de carne; Follow That Skirt (1965) de Richard W. Bomont, a história de um serial killer que ambiciona mudar de sexo, perseguindo mulheres e assassinando-as em variações sanguinárias.
Concentrando-nos em Herschell Gordon Lewis, atente-se à cena inicial de Blood Feast (1963), onde se podem localizar pistas sobre uma nova gramática em torno do gore. Sob uma banda sonora tribal em modo soporífero, uma mulher loura entra em casa e liga a telefonia. O locutor (o próprio Herschell Gordon Lewis), após anunciar a trágica morte de uma jovem rapariga, encontrada com o corpo mutilado, aconselha os elementos do sexo feminino a refugiarem-se em casa durante a noite. Em tom de remate, adverte: “Se tiver de sair, que seja acompanhada. Mantenha as suas filhas trancadas!”. Enquanto a mulher se instala nua numa banheira e coloca ao lado o livro “Ancient Weird Religious Rites”, matizando a cena com obscuros relevos ritualistas, uma silhueta assombra a cena, expondo um homem com uma faca. Os seguintes planos detalham minuciosamente a orgia de sangue: o assassino sorridente mostra uma faca com um pedaço de carne ensanguentado; a cara da mulher morta com uma pústula de sangue coagulado a cobrir um dos olhos; o assassino, de costas, a infligir sucessivas facadas sem percebermos bem em que parte do corpo; e uma perna a ser retirada do corpo decepado e colocada num saco. Numa das cenas seguintes, em grande plano, o assassino arranca da boca de outra mulher e exibe uma língua sobredimensionada escorrendo sangue.
Vagamente inspirado em Brigadoon, as montanhas da Escócia, em Minnelli, são substituídas pelo interior rural americano, em Lewis; a luta entre o amor e a implacabilidade do tempo, pelo instinto de vingança; e os standards da Broadway pelo country desgarrado.
Se o nascimento do gore em Blood Feast gozou de uma certa acidentalidade, com Lewis e Friedman a testar uma nova via para conquistar audiências, Two Thousand Maniacs! é feito de outra têmpera. Com um orçamento maior e misturando o gore com o comentário social, tal como Moonshine Mountain (1964) recentra o cinema de terror na mitologia americana e nas zonas remotas do país, congeladas na tradição e onde ao virar de cada esquina parece aguardar um potencial serial killer. Vagamente inspirado em Brigadoon (1947), musical da Broadway adaptado ao cinema em 1954 por Vincente Minnelli e protagonizado por Gene Kelly e Cyd Charisse, evoca a lenda de uma povoação desaparecida que se materializa apenas por um dia em cada cem anos. As montanhas da Escócia, em Minnelli, são substituídas pelo interior rural americano, em Lewis; a luta entre o amor e a implacabilidade do tempo, pelo instinto de vingança potenciado pelas incuráveis feridas da Guerra Civil; e os standards da Broadway pelo country desgarrado, que surge pontualmente para comentar a acção, como um coro no teatro grego. Para rematar, Two Thousand Maniacs! presenteia-nos com uma febril festa de gore, em que mutilações, sadismo e burlesco caminham felizes, lado a lado.

“The Blood Trilogy” encerra da melhor forma com Color Me Blood Red, abordando as qualidades operativas do gore, enquanto matéria-prima para a pratica artística. Se, em Herschell Gordon Lewis, o sangue serve como matéria de criação, também o pintor protagonista de Color Me Blood Red a ele recorre para revigorar a sua obra e contornar crises de inspiração. Desfeita a parceria com David F. Friedman, por Herschell Gordon Lewis se recusar a repetir takes que aumentariam despesas e tempo de rodagem, The Wizard of Gore (1970) é uma das suas ultimas incursões em território gore, numa das suas visões mais repelentes com um banquete visual de entranhas e sangue. Algo que, anos depois e com outras ambições artísticas, Roger Watkins levaria a limites inimagináveis em Last House on Dead End Street (1977) e os filmes de zombies haveriam de tornar numa das suas imagens de marca, penetrando numa das outras zonas proscritas, o canibalismo. Seria demasiado fácil determo-nos nas falhas dos filmes de Herschell Gordon Lewis: os interiores parecem saídos de um filme hardcore; os actores, principalmente os do sexo feminino, não são escolhidos pelas qualidades de representação, mas antes pelos atributos físicos; a progressão da narrativa é lenta e calibrada pelos momentos gore. Porém, estas aparentes falhas, para além do valor histórico, vistas à distância, desmistificam o virtuosismo técnico, apresentando uma deliciosa patine artsy.
O gore foi instrumental na reflexão sobre as fracturas do presente e as ansiedades relativamente ao futuro.
As ramificações do gore pelas mais diversas praticas artísticas, depressa se começaram a notar. Ainda no cinema, a partir de Baltimore, John “King of Puke” Waters – figura importante no que toca às intersecções do cinema com as outras artes – foi um dos grandes divulgadores da obra de Lewis, prestando-lhe tributo através do nome de uma das suas primeiras obras, Multiple Maniacs (1970), e oferecendo um conselho aos futuros cineastas: “Exploitation films are the only ones that come close to the dreaded word ‘art’. I still wonder why film students babble on about Orson Welles or Howard Hawks when they ignore the two greatest masters in film history: Russ Meyer and Herschell Gordon Lewis. Even the worst films by these two directors are infinitely more interesting than Citizen Kane, and their relatively unheralded success outside the Hollywood system should give hope to any independent director starting today”. Entre o vigoroso contingente italiano encabeçado por Lucio Fulci, os retratos slasher da puberdade na década de oitenta, o body horror de David Cronenberg, a New French Extremity, os anjos da vingança do J-Horror, o subvalorizado torture porn e o caso recente do cinema de Quentin Tarantino, são décadas de produção intensa em que o gore foi instrumental na reflexão sobre as fracturas do presente e as ansiedades relativamente ao futuro.

Na Áustria, durante a década de 60, os Accionistas Vienenses – grupo de artistas plásticos que contava com Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch, e Rudolf Schwarzkogler, entre os principais elementos – recorriam à performance, como resposta à comodificação das artes, criando eventos únicos que, apesar de poderem ser repetidos ou documentados, não facilitavam a sua mercantilização. Inspirados pelo trabalho do grupo japonês Gutai, praticavam formas radicais de performance que também incluíam o uso do corpo como suporte artístico, utilizando-o em acções violentas e extremas (sangue, mutilações e escatologia) que punham em causa os limites da arte e a passividade do espectador. A influência destes artistas foi importante para o rumo da arte produzida pelas gerações futuras, como é o caso do artista californiano Paul McCarthy. Enquanto o contexto de trabalho dos Accionistas Vienenses era a Europa Central no período pós-guerra, a obra de Paul McCarthy assimilou as tensões da sociedade americana, da ilusão de Hollywood à exaltação do consumismo, não perdendo de vista o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. O sangue daria lugar ao ketchup, as fezes, à maionese, e outros fluidos corporais, ao leite.
O sangue daria lugar ao ketchup, as fezes, à maionese, e outros fluidos corporais, ao leite.
Percorrendo as lojas de adereços de Hollywood, Paul McCarthy juntou máscaras, perucas, próteses e maquilhagem que, juntamente com efeitos especiais baratos, usou em performances, fotografias e vídeos, em alusões à cultura popular, nomeadamente aos filmes de série B. Quase sempre desenvolvidos em estruturas arquitectónicas que lembram o set de um estúdio televisivo, protagonistas híbridos (entre o humano e o cartoon) com máscaras de personagens reais (Jimmy Carter ou George W. Bush) ou fictícias (Alfred E. Newman, Pinóquio, Heidi ou Old Man de The Texas Chain Saw Massacre), estruturas de poder familiar e social, mutilações, tarefas executadas de modo coordenado como num filme educativo, grande quantidade de comida e condimentos levada até aos mais pequenos orifícios do set e das personagens, desembocam em situações de anarquia, em que aspectos da cultura popular e do sistema da arte são estilhaçados e conduzidos à hecatombe. Tal como em Herschell Gordon Lewis, é um domínio que reconhecemos como falso mas que mantém a virtude de nos desconcertar e de causar náuseas. Sailor’s Meat (1975), Hollywood Halloween (1977), Sailor’s, Death Ship (1981), Cultural Soup (1987), Bossy Burger (1991), Heidi (1992) com Mike Kelley, Pinocchio Pipenose Household Dilemma (1994) ou Painter, (1995), são exemplos dignos do melhor festival de gore e que funcionariam como um óptimo colírio, após uma longa maratona de cinema.

Recuperando alguma sobriedade, talvez por não pôr totalmente de lado a abstracção, o pintor Peter Doig, de origem inglesa mas residente na ilha Trinidad, apropria-se de imagens da história da arte e da cultura popular, em que a procedência nem sempre é clara. Numa série de obras desenvolvidas a partir de finais da década de 80, época em que a posição da pintura dentro da arte contemporânea perdia relevância, a apropriação é demasiado evidente para um dedicado fã do gore. Trata-se do filme Friday the 13th (Sexta-Feira 13, 1980) de Sean S. Cunningham – responsável por uma interminável franchise e da longa lista de slashers que dominou a produção da década de 80 – sobre um grupo de adolescentes no começo da vida sexual, esquartejados por um assassino de nome Jason. O filme não é brilhante, muito inferior à obra-prima Halloween (1978) de John Carpenter, mas tem duas ou três sequências de antologia. Numa delas, perto do final e num belíssimo jogo de reflexos entre a água e a floresta, entre o figurativo e o abstracto, a final girl repousa numa canoa no meio do lago, quando Jason ressuscita das profundezas. Peter Doig inspira-se em alguns stills da sequência, para criar uma série de trabalhos, em variações que recorrem a diferentes cores, técnicas e suportes. Um deles, Canoe Lake (1997-98), rodeia o lúgubre lago-espelho por uma cerca, numa simetria implausível que parece incapaz de refrear a alucinada paisagem estival. “She was floating away from a scene of carnage,” refere Doig. “But what struck me was it looked like an image by Munch”, pintor expressionista, autor de Skrik (O Grito, 1893).