O inglês foge até à costa. Vê “o lar, doce lar” à distância. Tão perto, tão longe. Por um lado, nada o impedirá de… sobreviver, deixando bem lá atrás o aparentemente capitulado Velho Continente. Por outro lado, ele quer parar para defecar. Mas não, não há pausas para esse género de mordomias. A fuga, para ser bem sucedida, tem de ser heróica; dura e desesperada, mas nem por isso menos heróica. Mas que heroísmo é este, o do soldado que quer defecar, que parece ter abdicado do combate – esqueça-se o “king & country” por um momento – e que se deixa levar pelo fluxo composto por todos aqueles que se querem ver a milhas do palco da guerra? A batalha de Dunquerque tem esta particularidade de nos contar a história de uma espécie de “Brexit doce-amargo”, um recuo necessário que embalou a defesa e o contra-ataque ingleses que acabaram por fazer a balança da guerra pender para o lado bom. O filme de Christopher Nolan propõe um olhar sobre esta guerra “passiva”, desenrolada em pleno acto de retirada. “Não fizemos nada, apenas sobrevivemos”, diz baixinho um dos soldados ao pisar solo britânico.
Dunkirk (2017) é um filme horizontal, estendido no espaço, mas temporalmente concentrado. O “tique-taque” da música de Hans Zimmer é omnipresente, mas não é mais o “tique-taque” de um relógio que o de um metrónomo. Até os tiros participam na estrondosa e ininterrupta rítmica. Nolan monta o espectáculo da guerra e exalta em pleno filme a sua capacidade para mobilizar os peões ou as peças da grande engrenagem cine-bélica. Ao mesmo tempo, o tempo estilhaça e comprime-se. É mais um gimmick a que Nolan nos habituou desde Memento (2000) e que aprimorou com algum prazer lúdico em Inception (A Origem, 2010).
Pelo ar, pelo mar, por terra. A guerra “joga-se” em todos os tabuleiros. A câmara de Nolan não quer perder pitada, mas também não tem paciência. Quase apetece dizer que também ela não tem tempo para defecar. A jusante da música de Hans Zimmer, as imagens correm, sucedem-se, amontoam-se. Nada se fixa, nem pelo ar, nem pelo mar, nem por terra. Esta é uma estética da saturação, ainda que este seja um filme com poucos diálogos, virtualmente “mudo”. Tão poucas palavras, que ousadia! Mas como explicar tanto ruído? De facto, no lugar das palavras Nolan deixa que o seu filme seja tomado pelo espectáculo estrepitoso da máquina de guerra como máquina do cinema.
Não há personagens em combate ou em retirada, mas peões mobilizados por um director demasiado vaidoso face aos seus muito dispendiosos brinquedos.
É uma estética saturante, infatigável, cheia de “pompa e circunstância”. Por isso, também é uma estética do embasbacamento: “vejam bem o que consigo fazer!” – é o que parece que Nolan grita em cada imagem. O alter ego de Nolan no filme é o comandante interpretado por Kenneth Branagh. Em planos que se tornaram “imagem de marca” do cinema de Nolan (variante da cara spielberguiana), por mais que uma vez vêmo-lo a olhar para o céu. Um relativamente longo push in mostra o rosto incrédulo do comandante a fitar o horizonte. Apetece perguntar: é um pássaro, é um avião? Serão “os nossos” ou é “o inimigo”? Esplendorosa é a visão que a câmara de Nolan nos sugere em off. O contra-campo não é o que Branagh vê, mas o que é, nesta altura, o cinema de Nolan: espectáculo pelo espectáculo, imagens moles alteadas por orquestrações ribombantes, animação permanente numa guerra onde não se conhece a espera (por exemplo, as tais várias horas que separam as marés são referidas mas não sentidas, porque aqui o tempo não dá tempo) ou o desgaste físico (desde logo, as necessidades e sujidade do corpo são aludidas, mas não são dadas a sentir tal a ansiedade do todo-poderoso realizador em maquinar um espectáculo impessoal, limpo e dominical). Apetece lembrar o óbvio a Nolan-Zimmer: não há música sem silêncio, não há instrumentos sem homens.
Não interessam a Nolan nem os seres nem os corpos nem a metafisíca da guerra, ainda que os olhares para o céu pareçam aspirar a esta. Com efeito, entre William Wellman [Battleground (A Grande Batalha, 1949)], Terrence Malick [The Thin Red Line (A Barreira Invisível, 1998)] e até o próprio Steven Spielberg [Saving Private Ryan (O Resgate do Soldado Ryan, 1998)], Nolan sai a perder, por estar sempre demasiado preso a um narcísico embasbacamento com o que consegue fazer com as suas peças. Não é realização, mas logística. Não há personagens em combate ou em retirada, mas peões mobilizados por um director demasiado vaidoso face aos seus muito dispendiosos brinquedos. Da mesma maneira que não é por me gritarem aos ouvidos que ouço melhor, não é por Dunkirk ter muitas e algumas “vistosas” imagens da guerra que este seja vivido como uma experiência da guerra. Foi à distância que o inglês em fuga viu a sua pátria – também eu estive longe de penetrar a guerra ante o matraquear de sons e imagens de Dunkirk.