Filme de fantasmas, inquietante e brumoso, Portrait of Jennie (O Retrato de Jennie, 1948), de William Dieterle, adaptado do livro de Robert Nathan, leva-nos numa viagem de sonho, mais realidade, para um reino de imagens que se encontram e sustentam ao longo dos seus 86 minutos de duração, absorventes e próximas de uma experiência onírica. Não foi por acaso (neste caso), que Breton adorou o filme e o elogiou como um conto (talvez canto), surrealista, cheio de material onírico d’amour fou eterno.
O Retrato de Jennie, desenvolve-se assim por um fio brumoso de imagens, marcadas por um tom fantástico de uma assombrosa realidade-sonho. Admirável dualidade que viverá muito bem junta, amparando-se num jogo que fabrica um efeito do real, perfeitamente definido, na sua própria matéria nebulosa. O filme começa exactamente lá em cima no céu, pelas nuvens, atravessadas por uma voz off, grave e pomposa, que lança as questões de sempre que marcam a permanente inquietação humana: “O que é o tempo? O que é o espaço? O que é a vida? O que é a morte?”. Esta entrada que conduz ao miolo das coisas e à persistência da dúvida, procura uma resposta maior, menos tangível que se rematará muito bem, e logo de seguida, com outra pergunta (que permitirá uma ideia para uma resposta): “Quem sabe se a Morte não é, finalmente, a vida e o que os mortais chamam vida não é, finalmente, a morte?”, com assinatura de Eurípides. Aqui está, bem lançada, e sugerida no trocadilho, a pista a seguir, deixar que estas dimensões vivam ou morram como quiserem, ou como nós quisermos.
Este era um filme da vida de João Bénard da Costa que falava do seu amor incontestável por ele, referindo-se à força exercida pela voz off inicial, vagarosa e magnética, não deixando de lado a música de Tiomkin com Debussy e Herrmann, como pedra de toque bem cheia de uma potência qualquer que lhe vai dar o tal poder mágico. O produtor do filme David O. Selzenick, tê-lo-á feito para o dar de presente à sua futura mulher Jennifer Jones, a soberba actriz que vive no corpo da menina e depois da mulher, a protagonista Jennie. Jennifer Jones mostra aqui a sua gigante versatilidade e prova como após o passional e carnal papel em Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946) de King Vidor, consegue encarnar, na mesma medida, uma etérea e corpórea personagem, humana e irreal que vem de longe no tempo para amar de perto o pintor, Eben Adams (Joseph Cotten), e dar-lhe também a ele uma nova vida, na vida. E assim eles vão amar-se, ela vai viver duas vezes e morrer mais duas; vai aparecer-lhe menina, enquanto ele homem feito procura dias melhores como pintor que não vende as suas obras. Ela traz-lhe vida e parece indicar-lhe o caminho para chegar mais longe na arte da arte, e na arte da vida, dando-se ainda apaixonadamente, tirando-o do ‘’inverno do espírito”, porque ela apenas sabe as coisas, não se lembra delas mas sabe-as simplesmente; ela vai prometer crescer depressa (e cresce), os meses corresponderão a anos e a menina ficará mulher. Podemos também falar dos encontros no Central Park, cenário que serve como uma luva o ritual de aproximação destes dois seres solitários e tristes, sob céus profundos a romper luz, numa Nova Iorque fantasmática e tão atmosférica.
A imagem como uma tela que Dieterle trabalha como uma trama, vê-se por vezes no arranque das cenas, e é outro incrível detalhe que nos leva para o mundo das histórias que se contam como um livro de imagens animadas. Até apetece citar o Huberman quando este fala da imagem como: “uma tecelagem, uma tela do tempo, que abre infinitamente a temporalidade e alarga a legibilidade”. Há muitas naturezas temporais no Retrato de Jennie, como há também uma abertura gigante à noção de duração porque este ‘’tempo’’ terá uma natureza própria, na carga anacrónica que transporta e no fulgor irreal que veicula. E o amor entre o dois é também fruto de uma “tecelagem”, isto segundo as próprias palavras de Jennie: “As linhas da nossa vida foram tecidas juntas”(…). E pronto, aqui estamos perante a anormalidade de um sentimento imperativo, incontornável.
Absurdamente romântico é então O Retrato de Jennie, e tem ainda uma beleza triste que pode vir do lado trágico e intenso da história. Inúmeras vezes é referido o olhar triste de Jennie, e a sua canção-tema tem um verdadeiro poder hipnótico, e ela canta-a com um fio de voz que encanta. A imagem vem ainda reforçar toda a estranheza sombria que paira na atmosfera plástica. O trabalho da fotografia de Joseph H. August tem um importante rasgo estético que dissemina logo os conteúdos pela materialidade etérea que projecta, na incandescência do sonho, com o seu jogo incansável de luz e sombra, num preto e branco pleno que vai culminar em cor num momento soberbo com imagem a preto e verde, mais sépia, para o final (já lá voltamos).
Nesta linha de imaginários de fantasmas no cinema, acordam logo outros grandes filmes que se projectam neste mundo de vida e morte, de memórias que se enlaçam, altamente perturbados e estilizados, e muito cheios de sintoma que viveram em grande na época dos 30, 40 e 50.
Ergue-se logo o grande e incontornável, The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947) de Joseph L. Mankiewicz, que permite a intrusão do fantasma no mundo dos vivos no corpo do capitão (Rex Harrison), por quem a viúva, (Gene Tierney), se apaixonará numa relação intensa e viva de um amor irrepetível. Lembramo-nos de Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935) de Henry Hathaway, em que a cumplicidade de um menino e de uma menina, separados em crianças, vão perpetuar a relação mais tarde na fase adulta, através de um forte amor que comunica pelo sonho. Esta relação tem na imagem o tom perfeito de uma soberba correspondência estética, carregadinha de onírico. Outro filme bem amado por Breton e visto como um triunfo do pensamento surrealista.
O pulsional Secret beyond the door…(Segredo da porta fechada, 1947) de Fritz Lang com os fantasmas traumáticos do protagonista, desenvolve-se num ambiente de medo e mistério com a notável colecção dos quartos fechados. A lembrar o magnifico sonho da protagonista que inaugura o filme como um esquema perfeito que anuncia possibilidades simbólicas, chaves possíveis de sinais especulares. E muitos outros filmes se podem juntar a uma galeria de projecções, assombrações, sonhos e fantasmas que o cinema tão bem tem alimentado: Liliom, (1934), Rebecca (Rebeca, 1940), A Guy Named Joy (Um Certo Rapaz, 1943), Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1943), A Matter of Life and Dead (Caso de Vida e Morte, 1946), La beauté du diable (O Preço da Juventude, 1949), Pandora (1951), etc., etc., etc.
Surgem ainda outros filmes que usam o “retrato” como motor narrativo e dramático, com projecções imaginárias singulares, a ver alguns dos anos 40 e 50, época fértil destes universos: Experiment Perilous (Noite na Alma, 1944) de Jacques Tourneur, Laura (1944), de Otto Preminger, The Woman in the Window (Suprema Decisão, 1944) de Fritz Lang, The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, 1945) de Albert Lewin, The Locket (O Medalhão Maldito, 1946) de John Brahm, Born to Be Bad (A Deusa do Mal, 1950) de Nicholas Ray, Scarlet Street (Almas Perversas, 1957), outra vez Lang, Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock, entre outros.
Voltando à ‘’lenda inquietante’’ do Retrato de Jennie, desenvolve-se pois sob um clima intenso que leva o espectador numa viagem, ao entrar no pacto que o filme propõe sugerido na ambivalência criada entre vida e morte. É também um filme bondoso, não há maldades aqui, não há lutas entre maus e bons (há uma luta final com as forças da natureza, é tudo), não há problemáticas muito complexas (espera-se Jennie), e não há nós a desatar. Quando Jennie está com Eben não há testemunhas, a força do sonho, da irrealidade, ou daquela realidade, não precisa de mais ninguém. Ela aparece, desaparece, diz coisas e não se lembra, e está bem assim, porque se fabrica tanto um corpo carnal, como uma figura espectral, simples e sábia, bela e palpável, possível e impossível.
Em relação às personagens secundárias há que falar da sua importância e apoio (de bondade), da sua dimensão humana, pois logo irão ajudar Eben a providenciar a sua pobreza. Quando ele precisa de ganhar dinheiro lá estão os galeristas solícitos a comprar pinturas (as flores, o esboço de Jennie); ou Gus, o taxista a inventar a pintura de um mural num restaurante para que não falte a Eben a refeição diária. A galerista, Miss Spinney (Ethel Barrymore), mulher solitária e mal amada (um piropo de Eben vem alegrá-la e cobrir anos de vazio), vai ligar-se numa amizade estreita e cúmplice com ele, dizendo-lhe (premonitoriamente logo no início): “tem de aprender a querer [desejar] profundamente alguma coisa”. Há um pequeno mundo que se adapta à volta dos amantes, e quando factos se clarificam (a Irmã no convento fala da real morte de Jennie no passado), nada se fecha. Há ainda alguns elementos para validar aquela realidade irreal: o lenço, o jornal de época, o Farol de Land’s End, o maremoto… Há o retrato que valida o título do filme e corporifica a figura ultra romântica e trágica de Jennie. Ela é musa e mulher, sedutora e perturbada, carrega vida e também carrega morte, e atravessa o tempo.
Há um final soberbo em que as forças da natureza reaparecem numa tempestade violenta para juntar os amantes no cenário trágico do farol de Land’s End, uma terra de fim, ou sem fim, cíclica e lapidar, que se torna visceralmente verde e preta, e depois sépia, para engolir o filme pela cor e deixar, por fim, ver-se o retrato, abrigado no museu, desta trágica heroína vibrar num relance em technicolor. É daqueles filmes farol, a iluminar noites sombrias, aéreo e fugidio, de uma beleza perturbada, que vem de um lugar distante do cinema e das histórias, secreto e triste como uma canção, a canção de Jennie que começa assim: “Where I come from, nobody knows and where I am going everything goes”. Uma caixa de música para abrir várias vezes.
A Cinemateca Portuguesa tem a decorrer um ciclo com o título “Fantasmas ao nosso encontro”, muito rico e variado com uma abrangente cronologia que percorre a história do cinema à procura destes exemplares fantasmáticos, compulsivos, ultra românticos, ou humorísticos. Este Portrait of Jennie será exibido dia 27, pelas 15:30, na Sala Félix Ribeiro.