No passado mês de Outubro tivemos Doclisboa e o Carlos Alberto Carrilho resolveu destacar os filmes do Wang Bing que por lá passaram em dose dupla, assim como o novo documentário do histórico Claude Lanzmann. Já o novo walshiano, Bernardo Vaz de Castro, escreve-nos sobre No Intenso Agora, de João Moreira Salles e o novo Techiné que dividiu as hostes aqui no burgo. O Ricardo Vieira Lisboa fala das singularidades do documentário de João Monteiro sobre António Macedo e do último filme de Luís Filipe Rocha. Já Luís Mendonça achou por bem vir pôr um pouco de água na fervura com que se tem recebido o novo Kaurismäki e destacar as qualidades de copiadora-criadora de Anna Biller. Por fim, um filme que passou meio despercebido à equipa walsiana, Brad’s Status (A Vida de Brad, 2017) de Mike White, é objecto do comprimido deste mês tomado por Francisco Noronha.
The Love Witch (A Feiticeira do Amor, 2016) de Anna Biller
The Love Witch de Anna Biller, realizadora que escreve, pinta, faz o guarda-roupa, por vezes interpreta nos seus filmes, tem uma virtude: ao mesmo tempo que vai beber, diria até descaradamente, ao universo de vários realizadores e artistas – o trash de John Waters ou Russ Meyer mais o série B de Roger Corman e William Castle mais o absurdo, cores e humor sulfuroso de Luis Buñuel ou mais o “feminismo narcisista” de Cindy Sherman -, a verdade é que, na mistura açucarada que promove, acaba por produzir qualquer coisa nova. The Love Witch é um filme feito à mão, cada quadro é composto com todo o cuidado do mundo pela sua realizadora. Em entrevista conduzida pelo meu colega Carlos Alberto Carrilho, Anna Biller confidenciou: “É desta forma que faço filmes, como uma série de imagens com uma história, pensando no modo como, repentinamente, o espaço se transforma: em amarelo, azul ou a três cores.” As cores, os adereços, as roupas, o modo como as personagens andam, falam, se expressam, tudo é cuidadosamente composto e posto em cena. Anna Biller tem um mundo, isso parece-me indesmentível.
A questão seguinte que se coloca ao espectador será: quer este entrar e fazer parte desta visão do mundo? Aqui as reacções podem ser variadas, nomeadamente de indiferença a este universo “apatetado” que vive de mil e uma referências à cultura pop ou de fascínio por uma linguagem, estética e até política, que neste filme – se não já nas suas anteriores, e pouco difundidas, obras – parece ganhar forma. No que toca a The Love Witch não me coloco em nenhuma destas posições, mas mais “a meio”. O discurso sobre a condição feminina é inteligente, mas rapidamente se esgota. O que resta é a intriga soap trashy, deliciosamente encenada, com um aprumo de facto irresistível. Do filme emana o prazer grande que esteve subjacente ao seu fabrico. E quando o discurso político se esgota, ficamos agarrados aos pormenores que compõem este museu vivo de referências e mitologias profanas. Ao mesmo tempo, o filme goza de um ritmo peculiar. O seu final anti-climático, mais ou menos etéreo, entre o lamechas e o sinistro, é exemplar deste esforço em “ser muito”, em “convocar tudo”, e ao mesmo tudo em combater essa tentação. Esta batalha interior atravessa o filme e empresta a este a densidade formal – uma “singularidade” – que, se não fascina, pelo menos intriga. Intriga muito, na realidade. O que digo, então, é: que venham mais filmes desta realizadora.
Luís Mendonça
Toivon Tuolla Puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017) de Aki Kaurismäki
Apesar de ter tido sensação idêntica a propósito do muito aclamado Le Havre (2011), confesso que há qualquer coisa que me deixa ligeiramente (ainda) mais frio do que desejava depois de assistir ao mais recente filme de Aki Kaurismäki. É verdade que o cinema do finlandês oscila sempre entre um sentido de estilo e coolness mais ou menos imperturbável e um caloroso abraço às suas personagens que nos faz acreditar naquele outro lado referido no título, o da esperança. Como bom autor plenamente instituído e consciente de si mesmo, Kaurismäki promove de filme para filme uma variação mínima sobre determinados temas e ambientes, ao ponto de, a certa altura, as histórias se baralharem na nossa cabeça. A sua ligação a cineastas com universos personalizados, como Ozu e Tati, é evidente. Também neles a proximidade visual e temática entre os filmes promove essa espécie de “indistinção”. A diferença é que nenhum deles se cristalizou tanto como Kaurismäki. A história do restaurante neste mais recente filme é emblemática desta tentativa gorada de mudar: por muito que tente ser mais “trendy”, colocando sushi na ementa, o dono voltará inevitavelmente a servir almôndegas ou sardinhas em lata à sua parca, mas fiel, clientela. A fidelidade é, aliás, um dos grandes temas de todo o cinema, pouco aventureiro, de Kaurismäki. A começar pela fidelidade do realizador ao seu universo.
Na sua crítica ao filme, Inês N. Lourenço fala de uma “kaurismakilândia” e refere que o seu cinema reduz tudo ao essencial. A sensação que tenho é que o essencial em Kaurismäki é cada vez mais o próprio Kaurismäki – defeito que o aproxima de outro realizador nórdico, Roy Andersson. As personagens são peões colocados num pequeno teatro simultaneamente indiferente e caloroso, onde a tristeza é combatida com um ligeiro sorriso, uns passos de dança arrastados, um cigarro caído no canto da boca, cervejas por conta da casa ou umas arranhadelas na boa guitarra americana. Kaurismäki segue à risca a velha ementa e vai colocando no quadro, um a um, os elementos do seu cinema. Com isso, essencializa-se, mas aqui a essência é como um bom perfume usado em excesso. Lá estão as mesmas cores pictorais, hopperianas, claro. Depois, o cão, a jukebox. Os seus actores preferidos. O humor deadpan que não desarma, sem ser para o tal caloroso abraço à humanidade, que, por vezes, aparece a posteriori e tarde de mais, surgindo como mais um “efeito” (ou “marca”) dentro deste universo cristalizado, que corre sempre o risco de se musealizar. Terá sido este lado de “museu”, de nova visita guiada à “kaurismakilândia”, que me deixou mais frio do que desejava e do que, senti, o próprio filme pedia de mim? Possivelmente.
Luís Mendonça
Quand on a 17 ans (Quando se Tem 17 Anos, 2017) de André Téchiné
O livro Em Busca do Tempo Perdido é uma inesgotável fonte de reflexão e análise pessoal. É certo também, que há passagens absolutamente marcantes e que transcendem a particularidade de cada leitor, como a espera de um beijo nocturno por parte da mãe, a aflição de uma avó enquanto o neto é atacado pela falta de ar ou a obsessão e cativeiro em torno de Albertine. Todos estes momentos são absolutos e colocam os nossos desejos, medos e anseios em perspectiva analítica, porém não é de nenhum destes momentos que vos quero recordar. Talvez este seja um episódio menor para muitos leitores de Proust e da sua magna obra, contudo é um dos episódios mais marcantes e cruciais para o que aqui vos proponho falar sobre a representação deste filme. O Conde de Charlus, no quarto volume, lamenta o exercício que é necessário aos homossexuais fazer enquanto se lê. As paixões trágicas em Balzac, nunca são verdadeiramente trágicas, porque este necessita de se transfigurar e adoptar o papel feminino para que a paixão se consuma. Tal como Charlus, durante anos procurei no cinema esse lugar, um lugar constantemente vedado, moldado pela norma e restando o único exercício possível, o da transfiguração e adopção de um papel feminino.
Assim fui eu, enquanto espectador e incondicional amante do cinema clássico americano, uma vez Shirley MacLaine em Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958), outras Joan Crawford em Johnny Guitar (1954). Agora posso por fim realizar em pleno essa imagem que durante tantos anos me foi vedada e que durante séculos vedou a minha comunidade de se ver verdadeiramente representada, sem recorrer à necessidade barroca de um exercício que escape à censura da moral. Mais do que um filme, este belíssimo Quand on a 17 ans, devolve-me a minha juventude e a inocência por mim não vivida, porque durante anos me foi negada. Esta experiência que tive ao vê-lo no Queer Lisboa 2017 e que agora chega ao grande público, não teme o confronto contra o sistema, que desde o início perpetuou e normalizou as imagens possíveis do amor e da sociedade. Que este gesto se propague e que possua esta mesma delicadeza com que Téchiné nos conta o que é o primeiro amor, sem que tenhamos de fazer o habitual exercício.
Bernardo Vaz de Castro
No Intenso Agora (2017) de João Moreira Salles
As imagens não são inocentes e os fantasmas esperam justiça. Esse é talvez o maior e melhor exercício que o mais recente filme de João Moreira Salles nos propõe. Composto entre imagens da excursão da mãe à China comunista de Mao, às imagens de resistência durante a ocupação nazi na Polónia, ao Maio de 68 em França, todas se reúnem para contar uma história. Uma história incerta, orgânica e onde o registo caseiro e o arquivo histórico se equivalem.
O que Salles procura estabelecer são conexões entre estrelas dispersas e com elas formar a bela constelação que é No Intenso Agora. Uma imagem de uma família brasileira onde a empregada negra surge no início para dar lugar à mãe-patroa branca, não é um simples registo de um momento familiar, é também uma imagem que revela as estruturas de poder e de classe no Brasil e que conduz a mãe-patroa branca a ocupar o primeiro plano enquanto a empregada lentamente se desvanece no fundo da imagem. Foram estas estruturas com as quais estamos demasiado familiarizados, que nos impelem à necessidade de outras imagens, imagens de resistência e de revolução em outros lugares. Mas a revolução e a resistência neste filme possuem a melancolia da imagem da mãe, porque tal como ela, tudo o que é sólido se desfaz no ar. É sobre este signo que todo o filme se constrói e a sua melhor qualidade, é também ela por vezes a causa da sua inconsistência.
Bernardo Vaz de Castro
Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (2016) de João Monteiro
Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo é um objecto valioso pelos testemunhos que recolheu junto de muitos dos realizador do Cinema Novo Português, alguns deles entretanto falecidos: Fernando Lopes, Fonseca e Costa e Paulo Rocha. E talvez pela idade dos participantes (que já pouco têm e tinham que se preocupar) Monteiro conseguiu extrair alguns depoimentos de uma candura surpreendente. A sinceridade dos comentários (o pigmeu Bénard, como lhe chama Macedo) que não se importam de criticar ou desdenhar os colegas (Cunha Telles como o produtor sedento) revela finalmente um pouco o que terão sido as clivagens de um grupo que nunca foi de facto uno ou uniforme. Ou seja, tentando reavaliar a obra de Macedo, Monteiro acaba por reavaliar o próprio movimento do Cinema Novo Português (ainda que apenas de passagem, é certo).
Neste sentido o filme de João Monteiro é uma obra de enorme força lúdica para um espectador cinéfilo, que o faz gargalhar a cada cinco minutos pelas inside stories que se revelam, e mais que isso, é um objecto que segue uma linha narrativa em arco (ainda que o arco seja bastante curvo e ondulado), de ascensão e queda e nova ascensão, que tem um poder emocional bastante forte. Mas a chave para compreender Nos Interstícios da Realidade passa, creio eu, por encarar o filme dentro dos próprios mecanismos pelos quais se escreve a história. É que, de facto, se Monteiro promove uma reescrita da história do cinema português, ou melhor, uma reinscrição na história do cinema português, fá-lo através dos mesmos mecanismos que promoveram o esquecimento e o apagamento de António Macedo dessa mesma história. Isto é, se a candura dos entrevistas se revela no desbocamento, a candura de Monteiro revela-se na crença de uma possível reparação histórica. Como se existisse de facto a possibilidade de se aceder aos factos do passado. Assim a narrativa emocional que promove a correcção de uma falha da história é também ela uma distorção dessa mesma história, como são, afinal, todas as Histórias, enclausuradas pela própria limitação do conhecimento. Esse é o aspecto que, sendo a grande força do filme, é também a sua maior fraqueza.
Ricardo Vieira Lisboa
Rosas de Ermera (2017) de Luís Filipe Rocha
Rosas de Ermera trata de regressos: um, o do realizador, ao continente asiático, depois de Amor e Dedinhos de Pé (1991) filmado em Macau; dois, de Mariazinha, a Timor, depois do episódio central do filme, evento traumático da sua infância; três, do realizador, de fazer um filme sobre a vida de Zeca Afonso (irmão de Mariazinha); quatro, de Mariazinha, e das suas memórias de um território onde o sofrimento e a inocência se fundem. Explico-me: Luís Filipe Rocha parte do testemunho de Maria e João, os irmãos ainda vivos do falecido José, vulgo Zeca, para contar a história de uma família e, em particular, de um episódio histórico pouco referido na recente História de Portugal. Esse episódio é o da ocupação de Timor pelo Japão aquando da Segunda Guerra Mundial, ocupação que colocou os portugueses aí residentes em campos de concentração, sendo Mariazinha uma das vítimas.
Filipe Rocha constrói Rosas a partir de um diálogo, nunca presencial, entre Maria e José, irmãos separados por um hemisfério, retratando simultaneamente a realidade da vida no Portugal do Estado Novo e na colónia timorense. Relatos de felicidade, subversão, maus tratos e esperança. Mas aquilo que mais toca no filme é este transformar-se em presente, para o espectador médio que toma conhecimento de uma realidade pouco discutida (eu nunca tinha ouvido falar do episódio…), mas especialmente para Mariazinha, que por causa do filme volta ao espaço da sua infância que, por mais tormentosa, não deixou de ser uma infância rosada. Aí, na generosidade do realizador, o filme encontra a sua singularidade. Mas não deixa, no entanto, de se deixar enlear pelos modos do documentário televisivo, nunca encontrando uma forma própria. Apenas mastigando os cansados modos de ver e dar-a-ver do pequeno ecrã.
Ricardo Vieira Lisboa
Napalm (2017) de Claude Lanzmann
No seu último documentário, Napalm (2017), Claude Lanzmann – autor do monumental Shoah (1985), sobre o holocausto judeu, construído a partir de relatos de vítimas e carrascos sobreviventes, sem recorrer a imagens de arquivo -, viaja pela terceira vez até à Coreia do Norte, após uma primeira estadia em 1958, enquanto membro da delegação ocidental convidada pelo presidente Kim Il-sung a visitar o país, no seguimento da Guerra da Coreia, que opôs o Norte e o Sul da Península Coreana e a dividiu em dois países. O filme começa com imagens da Cidade Proibida (Pequim), sob a imponência das formas e da uniformização cromática do antigo palácio imperial da China, enquanto Claude Lanzmann aguarda a emissão da licença que o autorize a entrar na Coreia do Norte. O título do filme, a vermelho, coincide com os primeiros sons de Pyongyang, capital da Coreia do Norte, congelada no tempo, nas imagens institucionais dos monumentos aos líderes fundadores e da vida pública dos seus habitantes, próximas das que recebemos pela comunicação social, autorizadas pelo poder político a circular para o exterior.
Num parque, rodeado pela “comissão de acompanhamento”, Claude Lanzmann assiste ao treino de uma mulher numa espectacular luta simulada. Os planos gerais da excursão são intercalados por freeze frames que poderiam ser postais turísticos ou fotografias capazes de estabelecer percursos mnemónicos. Extenuado, Lanzmann repousa num banco do parque, enquanto opera uma radical mudança formal, que tem levado a crítica a trucidar o filme. Na lista de estrelas dos Cahiers du Cinema é corrido para o indigno fundo da tabela, com um conjunto de bolas pretas. Cerca de metade do filme é ocupado por um close-up cerrado que nos conduz até ao final do filme, em que o realizador narra um encontro intimo que tivera com uma enfermeira, aquando da sua primeira visita em 1958. Pelo meio, perigosamente, faz referência aos seus documentários sobre os campos de extermínio nazi. A proximidade da câmara, o nível de detalhe do encontro, a revelação íntima tornada pública afigurando-se como um impulso juvenil, parecem impróprios para um velho intelectual, enquanto revela o mistério do título do filme: os seios da mulher foram queimados por napalm durante a Guerra da Coreia. Na impossibilidade de filmar além do que é simulado, obliterando o seu papel de realizador, Lanzmann recorre à memória e ao relato pessoal para enfatizar os limites da construção do real. Não entendendo a memória como uma construção colectiva, introduz uma dimensão subjectiva susceptível de ser equiparada a um certo narcisismo contemporâneo.
Carlos Alberto Carrilho
Ku Qian (Bitter Money, 2016) de Wang Bing + Fang Xiu Ying (Mrs. Fang, 2017) de Wang Bing
A divulgação do trabalho de Wang Bing em Portugal deu-se pela mão de Augusto M. Seabra, antigo director e programador do Doclisboa, nomeadamente num programa aliciante concebido para a Culturgest que, para além da maratona de quinhentos e cinquenta e um minutos de Tiexi qu (West of the Tracks, 2002), contou com a exibição de outras obras de cineastas asiáticos, na época pouco divulgados no nosso país, como Ai qing wan sui (Vive l’amour, 1994) de Tsai Ming-liang e Hai shang hua (Flores de Xangai, 1998) de Hou Hsiao-Hsien. Desde Tiexi qu, as obras de Wang Bing têm variado bastante de duração, como se pode aferir pelas duas que foram exibidas no doclisboa’17. A mais longa, Ku Qian (Bitter Money, 2016), segue a movimentação de operários têxteis, entre a zona rural e o populoso centro urbano, em busca de melhores condições financeiras. Como o título não esconde, o dinheiro ganho resulta demasiado amargo obrigando a períodos de trabalho de dezasseis horas por dia, deixando livres apenas as horas de sono, o que dinamita as relações pessoais. Em longas sequências, a câmara acompanha as pequenas histórias destes trabalhadores, sem a preocupação de interferir no que é retratado. Numa cena, uma mulher pede ao marido para a aceitar de volta depois de este a ter expulsado de casa, por ela não cumprir as obrigações domésticas. Num plano fixo, a partir do exterior da loja que o marido gere, a mulher roga ao marido para terminar a separação, enquanto este responde com uma inesperada acção de bullying. Durante longos minutos, sem cortes, a câmara, bem como os clientes da loja, mantêm-se imperturbáveis, apesar dos sinais claros de crescente violência. O medo e angústia da mulher são atestados numa cena posterior, na praça, de onde foi retirada a imagem do cartaz do filme.
Co-produzido pela documenta 14, uma das mais prestigiadas mostras de arte contemporânea, e premiado com o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, Fang Xiu Ying (Mrs. Fang, 2017) é um pequeno filme com a duração de pouco mais de uma hora, que documenta os últimos dias de vida de uma doente de Alzheimer. No primeiro plano, no que parece um estado inicial da doença, a senhora Fang olha inquieta para a câmara como que à procura de um ponto de fuga. Nunca mais a voltaremos a ver assim. Remetida à cama e limitada nos movimentos, a câmara mantém o desafio sem perturbar aquele corpo ainda animado. Teima em decifrar o mundo invisível atrás daquele olhar, mas a senhora Fang, a minguar fisicamente, responde apenas com o piscar de olhos. Os familiares e amigos partilham repetidamente o jogo de decifração, interpretando tanto a presença como a falta de sinais de vida (ou de morte). Numa opção distante da tomada na cena de bullying de Ku Qian, quando se aproxima o derradeiro suspiro, Wang Bing afasta a câmara para detrás dos familiares, isolando o corpo da senhora Fang fora do campo de visão.
Considerada, anteriormente, um evento social e público, a morte transformou-se em tabu, substituindo o sexo como o principal tema proibido (Amos Vogel), tornando-se numa experiência anti-social e privada, que se torna mais chocante quando publicamente somos confrontados com ela. Autorizando apenas a morte violenta (assassinatos em massa ou terrorismo) a permanecer no espaço público, a cultura ocidental do século XX afastou a morte natural da visão quotidiana, o que manteve intactos o seu exotismo e estranheza e limitou as suas condições de representação (Vivian Sobchack). Qualquer opção de ângulo e movimento da câmara ou montagem torna-se num comentário sobre aquilo que é essencialmente um momento indescritível de transformação e caos, inscrevendo-o num acto de visão humana que assinala uma posição moral. Em Fang Xiu Ying, enquanto o corpo da senhora Fang se transforma em algo inanimado, passando de “ser” para “não ser”, a câmara sugere um olhar humano que, a partir de uma distância calculada, fita o ritual de dor e luto montado pelos familiares. Naquele quarto, como que entrelaçadas, são convocadas a inexorabilidade da vida e a inevitabilidade da morte. Lá fora, conforme acentua a última cena, importa apenas o doce mistério da vida.
Carlos Alberto Carrilho

Não é de agora que sabemos como Ben Stiller pode atingir grandes desempenhos. Brad’s Status (A Vida de Brad, 2017) – repare-se no jogo semântico do “B” e do “S”: ambas as letras servem tanto o título do filme como as iniciais do nome do actor… – é mais uma demonstração de como Stiller, mesmo mantendo os seus tiques e trejeitos característicos, é capaz de transitar, à velocidade da luz, entre o humor e a tragédia pessoal mais profunda, entre a gargalhada e as lágrimas (aliás, as suas gargalhadas, frequentemente picos de uma situação de inadequação ou embaraço, ocultam sempre, na verdade, um uivo lancinante) Aliás, muitas vezes, Stiller não transita sequer entre esses dois (aparentes) polos, antes os concentrando simultaneamente na mesma frase, no mesmo gesto, no mesmo rosto. Para o espectador, esse é um momento dramatúrgico poderoso, violento mesmo, e no qual sofremos com ele e por ele, tal como nos acontece com Chaplin, Keaton, Lewis, Carrey (não por acaso, Stiller integrou o nosso dossier de “palhaços notáveis”). Este é também um filme-lição sobre a diferença entre simplicidade e simplismo: sem artifícios nem pretensões por aí além, e através de uma narrativa assaz linear, Mike White imprime verdadeira densidade às personagens, jamais arquétipos de coisa alguma. Se a tradução portuguesa “A Vida de Brad” não é de desdenhar, ela não faz justiça, ainda assim, à subtileza do título original, no qual o status corresponde a esse momento de reavaliação retrospectiva das nossas vidas: quem sou? Melhor: o que é feito de mim? Deixou de existir, transformou-se, adaptou-se? E isso é bom, mau?…
Mas esse status tem ainda outro sentido, reverberando toda a frustração (e é mesmo muita…) de Brad com o seu “lugar” económico e social; reverberando, afinal, a frustração da grande parte da América que não cabe no one percent a que se refere a sua mulher. Num filme em que tudo começa onde acaba (Brad, à noite, na cama, abraços com uma insónia), a passagem da Morte (a conversa sinistra, mas simultaneamente cómica, com a mulher sobre a morte dos sogros como uma forma de, enfim, enriquecer) para a Vida (?) faz-se nesse derradeiro monólogo: “My son: he’s here. We still have years together… We’re still alive. I’m alive”. Mas, como facilmente nos apercebemos, não há aqui happy end algum, antes a necessidade de acreditar que: Brad não se resolveu, muito longe disso, e o que se seguirá na sua vida é uma incógnita. Dead or alive.
Francisco Noronha