O À pala de Walsh é um site devotado à cinefilia. Se a cinefilia é uma forma de religião – e é, porque nos “religa” a todos -, então temos de abrir esta antevisão do LEFFest, que este ano se divide entre Lisboa e Sintra, com uma vénia ao grande Jean Douchet. Quando o crítico e cineasta francês esteve no festival em 2015, a Inês N. Lourenço fez-lhe uma entrevista. Aí, Douchet deixou uma sugestão que deveria ser ouvida: “Na minha opinião, era urgente pedir às autoridades policiais que obrigassem todos os habitantes da cidade a ir ao cinema”. Esta concepção de pólis é-nos cara. Se as autoridades policiais não puderem corresponder, então, pelo menos, as autoridades da crítica podem e devem exortar os habitantes a irem assistir a Jean Douchet, l’enfant agité (2017), retrato a várias vozes, a vários tempos, deste “homem cinema” que soube preservar o espanto (de criança) com o mundo das imagens e fazer desse espanto uma contagiante “arte de amar”. A ele este parágrafo inaugural.
Mas… é verdade: Jean Douchet não faz “a capa” do festival. Essa pertence – e está muito bem entregue – a uma força da natureza chamada Isabelle Huppert. A passagem de alguns dos seus filmes possibilitará colocar esta actriz no lugar que lhe é merecido: o lugar que pertence às grandes estrelas da história do cinema, aquelas que souberam inflar com a alma – com a alma não, com o corpo! – cada partícula dos filmes em que participaram. No feminino, continuo, nesta minha antevisão, mas para paragens mais incertas. A curiosidade é grande em relação à curta retrospectiva dedicada a uma cineasta húngara chamada Ildikó Enyedi, que, com Az én XX. századom (O Nosso Século XX, 1989) – filme a preto-e-branco ambientado no tempo de Edison -, arrebatou a Caméra d’or no Festival de Cannes.
Mais um destaque. Não um qualquer, porque pede – exige, ouço o leitor dizer – uma nota prévia. A distinção é muito clara para nós: uma coisa é a criação, outra coisa é o criador. Que a primeira nasceu do segundo, ninguém pode desmentir, mas também é verdade que a primeira é coisa autónoma, que, uma vez nascida, é lançada ao mundo e por ele apropriada. A partir do momento em que a obra se torna pública, rompe-se o cordão umbilical que a ligava ao seu primeiro e principal criador.
É verdade que as feições “geneticamente herdadas” e algumas manias, jeitos ou trejeitos podem estar, mais ou menos vincados, na obra que chega às salas. Louis C.K., conhecido pela sua comédia de registo extremamente pessoal, terá feito, com certeza, um filme à sua imagem. Mas a obra não é Louis C.K. A ela não devemos aplicar a censura que a sociedade – nela, o meio das artes e da cultura – aplicou após tomar conhecimento dos testemunhos das mulheres que foram por ele violentadas de alguma maneira. Por isso, o meu destaque – simbólico, sim, ainda que o meu entusiasmo em relação a esta incursão do comediante na realização cinematográfica seja bem anterior ao “escândalo” – vai para I Love You, Daddy (2017). Vai para este filme de Louis C.K. e não para a última obra de outro realizador que, ciclicamente, tem visto a sua vida privada ser esmiuçada na praça pública: Woody Allen. A obra de C.K. parece ser uma espécie de “dois em um”, pela referência evidente – desde logo, no preto-e-branco! – feita a Manhattan (1979) como também pela proposta de renovação de uma certa maneira (muito nova-iorquina) de fazer humor em cinema. Reservo o desejo de no fim da sessão podermos dizer, sem incorrermos numa piada de mau gosto, que Louis C.K. tinha tudo – ainda tem? – para ser “o novo Woody Allen”.
Mas sim. O que importa aos cinéfilos é o cinema. Títulos que inspiram curiosidade não faltam na programação deste LEFFest. Dois deles fazem parte do naipe de obras seleccionadas que obedecem a uma lógica de ante-estreia. Os novos filmes de Abdellatif Kechiche e de Philippe Garrel – em relação a este, estava prevista a estreia comercial no mês passado – são obras que prometem marcar o ano cinematográfico. Garrel com L’amant d’un jour (O Amante de um Dia, 2017) continua a tecer universos sentimentais intensos e turbulentos, ao passo que Kechiche com Mektoub, My Love: Canto Uno (2017) promete devolver-nos aos sentidos do Verão e dos amores de juventude. Um será o filme lunar e outro a obra solar deste LEFFest? A interrogação é legítima se pensarmos que há outro filme veranil – e polémico – na programação do festival, desta feita, dentro da competição: é o regresso do italiano Luca Guadagnino, Call Me By Your Name (2017), obra sobre primeiros amores e a descoberta da sexualidade. Tem dado que falar, mas não é aqui que, desconfio, iremos encontrar as melhores festas, o melhor Verão.
O melhor Verão tem tudo para estar num dos filmes-sensação do cinema português: Verão Danado (2017) de Pedro Cabeleira. Esta primeira obra mereceu uma menção honrosa no Festival de Locarno e mereceu algumas reacções junto da crítica que só nos podem deixar curiosos. Diz-se que será uma grande epopeia nocturna – que um filme sobre o Verão traga tantas imagens da noite é algo que nos remete para Uma Rapariga no Verão (1986) – sobre o lugar incerto da juventude depois dos anos de maturação da faculdade. Na estação do “tempo suspenso”, abusa-se da sorte, celebra-se imoderadamente o fim de algo sem se querer ainda encarar o dia de amanhã. A competição do festival é especialmente rica este ano. Cabe também aqui o derradeiro filme de Harry Dean Stanton, actor e cantor falecido este ano. Para quem conhece melhor Harry Dean, saberá que este não foi apenas um actor, mas alguém que corporizou – ainda corporiza, no grande ecrã – um modo de estar na vida. Lucky (2017) espalha a mensagem de alguém que nunca pediu muito mais da vida do que um cigarro e uma guitarra.
Mas não, talvez Garrel não seja o único realizador lunar de todo este ensemble. Hong Sang-soo está, de novo, entre os realizadores com filmes na competição do LEFFest. Mais uma variação sobre os temas que obcecam o cineasta sul-coreano, Geu-hu (O Dia Seguinte, 2017) tem uma particularidade que salta à vista: é filmado a preto-e-branco. Que a rejeição das cores seja partilhada por três realizadores tão diferentes – ou nem tanto? – tais como Hong, Louis C.K. e Garrel poderá querer dizer alguma coisa, mas, claro, temos de confirmar tudo na sala escura. A confirmar – desta feita, em cores vivas – está também o bom burburinho em torno de Western (2017), da alemã Valeska Grisebach. Olhar sobre um grupo de homens e a sua relação com uma comunidade que lhes é estranha. Até onde vai a promessa do título, sobre um western em tempos modernos? A pergunta é suficiente para me levar à sala.
Como sabemos, o LEFFest é muito mais que os filmes na competição ou fora da competição. Para lá de qualquer ideia de competição, estão as retrospectivas, ciclos temáticos, homenagens, debates, exposições, etc. Para o cinéfilo mais sofisticado existe um conjunto de rubricas da programação que lhe fará brilhar os olhos: Descobertas, Redescobertas e Preservar a Memória do Cinema. Filmes pouco vistos ou apreciados de Otto Preminger, Anthony Mann, John Ford, Marco Ferreri, Sylvest Stallone, Bette Gordon, Michelangelo Antonioni, William Friedkin, entre outros, fazem deste “lado B” do festival uma ementa irresistível.
Todavia, isto não é tudo. As retrospectivas da obra de dois cineastas portugueses aparecem como oportunidades, também bem azadas, para a descoberta ou a redescoberta. A obra do documentarista português, radicado em França, José Vieira é extensa e estimulante, mas lamentavelmente pouco vista por cá. João Mário Grilo tem uma carreira longa na reflexão e prática do cinema, mas, na presente data, conseguir ver um filme seu no grande ou mesmo no pequeno ecrã é uma ocasião que devemos estimar. Por fim, temos dois regressados ao festival que vêm mostrar e debater o seu cinema. Falo de David Cronenberg e Abel Ferrara. O primeiro vem conversar (com o Professor Universitário Donato Santeramo) sobre Eastern Promises (Promessas Perigosas, 2007) e o segundo vem acompanhar uma retrospectiva extensíssima da sua obra – a mais completa que, creio, alguma vez se fez em Portugal. Sobre esta retrospectiva, sendo impossível mencionar todos os filmes que valem a pena – porque são muitos -, deixo uma nota de incentivo ao leitor: não perca a oportunidade de ver ou rever Ms .45 (Vingança de uma Mulher, 1981), pujante história de vingança de uma mulher que diz “não” aos abusos de que é vítima. Protagonizada por uma estonteante Zoë Lund, santa vingadora que fez tanto sentido então como hoje, nestes tempos de redefinição e punição da (má) conduta masculina.