Os espíritos da Lua descem mais uma vez à Terra. Levam consigo um dos nossos maiores génios da animação – que terrível é compartimentar um génio que pertence por inteiro a todo o planeta Cinema! Isao Takahata realizou, no seu traço, um retrato pungente das relações intrafamiliares no Japão, seguindo as pisadas de um dos seus heróis, Yasujiro Ozu. Fez com a animação o que Ozu fez sem ela: criou personagens multidimensionais a partir de cores mais ou menos vigorosas, mais ou menos diluídas. Encontrou na folha branca o primeiro cenário para capturar gestos de ternura, de trabalho, de sobrevivência, de dor. Um cinema de animação cheio de alma, de uma sensibilidade extrema, que foi sendo cozinhado debaixo desse grande tecto que são os Estúdios Ghibli, sempre na companhia do seu colega – e também mestre na arte – Hayao Miyazaki. Importa recuperar a história de Takahata e do seu cinema de animação de pendor realista agora que o homem por trás dele desaparece, deixando-nos todos humanamente mais pobres e já com saudades.
Falar de Takahata é falar também de Miyazaki, mesmo se ambos trilharam caminhos distintos na sua arte. Comparar os dois deverá ajudar-nos a isolar a singularidade de cada um. Enquanto frequentava o curso de literatura francesa, Takahata fez a descoberta da sua vida. Provavelmente se, então, não tivesse visto La Bergère et le Ramoneur (1952) de Paul Grimault e Jacques Prévert, não teria decidido tornar-se realizador. Mas foi isso que aconteceu. Foi nesse sentido que Takahata pôs mãos à obra. Realiza em 1968 o seu primeiro filme: The Great Adventure of Horus, Prince of the Sun (Hols, o Príncipe do Sol, 1968). Esta foi a primeira vez que Hayao Miyazaki trabalhou com Takahata, na qualidade de animador principal. Desde aí, eles trabalharão em equipa, tendo ambos produzido a série Heidi para a televisão.
Os Estúdios Ghibli vão surgir na sequência do sucesso popular de Nausicaä of the Valley of the Wind (Nausicaa do Vale do Vento, 1984) de Miyazaki. Este filme segue a pulsão fantástica-mitológica do filme de Takahata, mas já mergulhando mais profundamente nalgumas das que serão as principais preocupações do cinema de Miyazaki, tais como a arrogante e gananciosa luta dos homens contra as forças da natureza. Nausicaä antecipa Mononoke-hime (Princesa Mononoke, 1997) na sua tentativa de transformar em fábula, ou em parábola mitológica, uma narrativa panteísta com fortes preocupações ambientalistas. Na sequência de Nausicaä, Takahta, Miyazaki e o jornalista e produtor Toshio Suzuki fundam os Estúdios Ghibli. O nome Ghibli foi escolhido por Miyazaki, devido à sua paixão pela aviação e pelo vento – paixão que se tornará evidente em Kurenai no buta (O Porquinho Voador, 1992) ou, mais simbolicamente significativo, no mais recente Kaze tachinu (Asas do Vento, 2013). “Ghibli” é uma palavra italiana que significa, explica Toshio Suzuki no documentário The Birth of Studio Ghibli, “vento do Sahara”, nome que foi dado a motores Maseratti e, em particular, a um modelo de aviões italiano da Segunda Guerra Mundial: Caproni Ca.309 Ghibli.
O primeiro filme produzido pelos Estúdios Ghibli foi Tenkû no shiro Rapyuta (O Castelo no Céu, 1986) em 1986, filme que reedita muitos aspectos de Nausicaä. Esta será uma espécie de falsa partida face ao que acontece em 1988, aquando da estreia simultânea daquelas que serão as duas obras-primas maiores da Ghibli: Tonari no Totoro (O Meu Vizinho Totoro, 1988) de Miyazaki e Hotaru no haka (Túmulo dos Pirilampos, 1988) de Takahata. Este último é um pungente retrato de dois irmãos separados dos seus pais durante os ataques aéreos a Kobe durante a Segunda Guerra Mundial. Totoro,situado no contexto do pós-guerra, mas concentrado em elementos fantásticos e enternecedores, e Túmulo dos Pirilampos revelam duas assinaturas: a fantasia delirante, reconfortante ou heróica de Miyazaki, de um lado, e o que o próprio Miyazaki descreve como sendo a animação de todos os dias de Takahata, do outro. Miyazaki dirá que Takahata tem uma capacidade especial para “retratar o estado interior da mente humana em profundidade”. Descreve os filmes de Takahata como crónicas do dia-a-dia – acrescentaria eu, dos gestos de todos os dias. Em certa maneira, 1988 mostrou que a árvore da Ghibli tinha dois ramos: a “fantasia fantástica” de Miyazaki, por um lado, e a “fantasia realista” de Takahata, por outro.

Contudo, devemos andar um pouco atrás para aprofundarmos esta ideia. Provavelmente o ponto de viragem em Takahata tenha começado com outro filme, o pouco visto documentário de imagem real Yanagawa horiwari monogatari (The Story of Yanagawa’s Canals, 1987). Trata-se de um documentário com duas horas e quarenta minutos de duração que conta a história da localidade de Yanagawa e o seu sistema de canais com quatrocentos anos de idade que, denuncia o filme, enfrentava as ameaças da poluição e de uma galopante modernização. A certa altura, ouvimos o narrador dizer: “o segredo para reavivarmos os nossos rios consiste em olharmos para a sua história e contribuições.” O rio não se regenerará sozinho, pelo que precisa da nossa ajuda – a mensagem ambientalista é clara ao longo deste documentário vagaroso, atravessado por paisagens de cores intoxicantes que denunciam a sensibilidade particular a um cineasta da animação. Neste filme antecipa-se o olhar atencioso para os gestos esquecidos dos trabalhadores que estará presente nalgumas animações de Takahata, entre elas, Omohide poro poro (Memórias de Ontem, 1991) e Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguya, 2013).
Memórias de Ontem foi realizado no seguimento de outro dos sucessos maiores dos Estúdios Ghibli da autoria de Miyazaki, Majo no takkyûbin (Kiki – A Aprendiz de Feiticeira, 1989). Kiki foi um sucesso, mas a sua produção atribulada conduziu os Estúdios Ghibli a uma reestruturação profunda do seu modo de funcionamento enquanto empresa. Até aqui as equipas de animadores eram contratadas ad hoc. O perfeccionismo de Miyazaki na produção de Kiki levou a uma derrapagem orçamental incomportável. De tal maneira que Suzuki, Miyazaki e Takahata ponderaram fechar portas. A solução passou por fazer dos Estúdios Ghibli uma grande escola e uma grande família. Não só passaram a contratar em permanência como investiram na formação dos seus animadores. Memórias de Ontem é o primeiro filme produzido dentro deste “regime autárcico”. O subestimado telefilme Umi ga kikoeru (Eu Posso Ouvir o Oceano, 1993), reposto recentemente nos Estados Unidos, será a primeira produção Ghibli inteiramente executado pelos pupilos da nova geração pós-Kiki.
O que é tão singular em Memórias de Ontem se compararmos com tantos grandes filmes que a Ghibli já havia produzido antes, realizados ora por Takahata ora por Miyazaki? Desde logo, mantém o traço realista e o registo amargo-doce da animação de Túmulo dos Pirilampos. Junta-se-lhe, contudo, uma visão nostálgica sobre um período de fulgurante recuperação do Japão, que tem como marca simbólica as Olimpíadas de 1966. Contexto que será reutilizado no mais recente filme da Ghibli Kokuriko-zaka kara (A Colina das Papoilas, 2011), lançado em 2011 pelo filho de Hayao Miyazaki, Gorô Miyazaki. É também um drama centrado numa personagem feminina forte – um traço em comum entre Miyazaki e Takahata que tem como matriz o espírito destemido da princesa Nausicaä. A protagonista de Memória de Ontem é forte, mas é preciso ressalvar: é forte, apesar de viver no filme um momento de avaliação da sua vida ou mesmo do seu lugar no mundo. A estrutura em flashbacks, que nos devolve a vários pequenos momentos da sua vida, sobretudo da sua infância no Japão dos anos 60, será reutilizada pela equipa de pupilos de Miyazaki em Eu Posso Ouvir o Oceano, drama claramente mais próximo do estilo realista e intimista de Takahata que da fábula fantasiosa e parabólico-política de Miyazaki.

Também detectamos em Memórias de Ontem uma mudança no traço. Cores suaves, mais esbatidas, que em certa maneira antecipam o estilo “aquarela” já completamente experimental de Hôhokekyo tonari no Yamada-kun (A Família Yamada, 1999), filme de 1999 de Takahata, e do seu mais recente – e derradeiro – O Conto da Princesa Kaguya. Este filme, aliás, sai juntamente com Asas do Vento de Miyazaki em 2013, replicando o lançamento duplo de 1988 de Totoro e Túmulo dos Pirilampos. A razão é simples: os Ghibli quiseram celebrar o seu fim como celebraram o seu começo.
Escreveu Inês N. Lourenço na crítica walshiana a este último sopro – imenso e (e)terno último sopro! – de Takahata o seguinte: “Não interessa se é um sonho ou se está mesmo a acontecer, interessa a impressão. Um traço gentil que, de repente, se torna selvagem, no incontestável reinado da forma. Também nós, espectadores, experienciamos a beleza de Kaguyahime no monogatari conforme o mando desse traço.” Com efeito, o que importa reter na questão do traço, mormente na diferença de traço entre Takahata e Miyazaki, é, de facto, a dimensão impressiva ou a velocidade do gesto. É nele que se inscreve, desde logo, esse olhar mais frágil e terra-a-terra sobre a vida. Diz Takahata: “Acredito nisto há 50 anos: quando estamos a desenhar rápido existe paixão (…) Com um produto cuidadosamente acabado essa paixão termina”. Posto isto, a velocidade no traço não significa execução rápida, descuido ou menor perfeccionismo. Aliás, Takahata conta com um número substancialmente inferior de realizações comparado com Miyazaki.
Takahata chega mesmo a caracterizar-se como uma “preguiça gigante”, que tende a atrasar os projectos em que se vê envolvido. As suas produções demoram vários anos para serem completadas, no caso de Kaguya foram 14! Demoram tanto e são tão dispendiosas que o próprio assumiu Kaguya como o seu derradeiro filme devido à possível inexistência de alguém que o quisesse produzir. Os seus filmes demoram a sair, mas, quando saem, é para saírem de um sopro. O trabalho do traço, sobre o branco do papel que ganha importância cenográfica a partir de A Família Yamada, é o lugar da arte e visão de Takahata. Foi como a princesa do filme que Takahata agora parte para o reino dos céus, acompanhado pelos espíritos da Lua. Ele parte seguramente com a mesma ânsia de, lá, entre montanhas de branco, desenhar mundos cintilantes para lá do nosso.