“Cine-olho”. Poucos conceitos devem ter sido mais citados que este de Dziga Vertov. Contudo, poucos se lembram do outro conceito que mobilizava as experiências do realizador soviético: o de “rádio-orelha”. Vertov queria dar ao som o que conseguira dar à imagem, ligando-o à electricidade do mundo, fazendo do ouvido da câmara uma extensão do nosso, em choque com um mundo em permanente mutação, em permanente conflito. O cinema de terror tem explorado, com mais engenho por vezes que qualquer outro género cinematográfico, um certo olho cinético, mas quanto ao outro conceito, têm faltado propostas que muito directamente o ataquem. Para o terceiro filme do actor John Krasinski, cara conhecida sobretudo da comédia, os dados são lançados no sentido de se dar todo o protagonismo do mundo à “rádio-orelha”. Não uma qualquer, já que ela é ditada por seres de outro mundo que vão ceifando vidas humanas em resposta ao mínimo ruído que estas produzam. A experiência do seu realizador é pouca, e é natural que alguns desconfiem, até porque pode soar mal a passagem do registo cómico ligeiro para o terror melodramático de dimensão sensorial. Contudo, A Quiet Place (Um Lugar Silencioso, 2018) é um filme para se levar a sério. Porquê? Porque, desde logo, ele produz, num exercício de subordinação da imagem ao som, um elogio honesto e acessível à ilimitada plasticidade da linguagem cinematográfica.
Via o filme e lembrava-me de um pensamento de Blaise Pascal que dizia, e parafraseio de cabeça, que um homem podia perder os seus membros, mãos e pés, mas só se diria que ele deixava de ser homem se perdesse a sua capacidade para pensar. O cinema é um pouco assim. Já tivemos, num período dourado, filmes surdos – o período que habitualmente chamamos de mudo está cheio de palavras, mas não as ouvimos. Já tivemos filmes na escuridão, “sem imagem” – vide as experiências de Derek Jarman e César Monteiro. E até filmes efectivamente mudos já nos cativaram, mais ou menos. Para não ir longe, Plemya (A Tribo, 2014), mesmo que me tenha revoltado pela sua violência gratuita, atesta a viabilidade narrativa de um filme de pessoas que comunicam, mas sem poderem falar – o meu colega Carlos Alberto Carrilho dedica-lhe um elogio maior e melhor aqui. Em A Quiet Place, as personagens podem falar, mas evitam fazê-lo por uma questão de sobrevivência. Ao mínimo ruído, os monstros cegos de grandes tímpanos vêm buscá-las num abrir e fechar de olhos. A questão da “comunicação sem fala” torna-se o desafio principal do filme desde os primeiros minutos – desde o seu título, aliás! -, já que caímos na acção in media res, quando a Terra já havia sido ocupada por essa entidade invasora que “é toda ouvidos” para uma humanidade em perigo.
Um lugar silencioso? Apetece responder: “é o cinema, estúpido!” Se nós, espectadores na audiência, não estamos calados – como podemos, se o mundo nos educa a tolerar, e depois a amar, o ruído? -, o filme dá o exemplo por nós, e com estrondo!
Krasinski tem a inteligência de dar tempo aos acontecimentos e vagarosamente nos ir instalando na casa de uma família que chora ainda o desaparecimento do rebento mais novo. Só vendo A Quiet Place numa sala de cinema se pode perceber a extensão do gesto de Krasinski; a importância dessa calma inicial em não precipitar os acontecimentos, em deixar a família assentar naquele lugar, e nós com ela. A entrada no silêncio do filme, nessa sua maneira de existir no tempo, é feita a contrapêlo em relação às explosões de imagem e som que (ou)viramos antes, em trailers e anúncios tonitruantes que nos impingem o consumo disto e daqueloutro. Na sessão em que estive, mesmo antes do filme começar, era anunciada no grande ecrã a nova aparelhagem sonora instalada naquela sala. O efeito irónico ao arrepio dos ritmos modernos é poderoso, porque todo este muito patrocinado ruído acaba por amplificar a intensa hora e meia em que o silêncio é o principal protagonista. Em suma, a nossa entrada no silêncio do filme conduz à entrada do silêncio do filme em nós – Krasinski consegue esse efeito, o que é obra. A Quiet Place provoca assim, na actual paisagem sonora do mainstream, uma desaprendizagem do ruído, assumida desde os primeiros minutos, e sem contemplações, pelo modo como o filme debita a sua premissa. Um lugar silencioso? Apetece responder: “é o cinema, estúpido!” Se nós, espectadores na audiência, não estamos calados – como podemos, se o mundo nos educa a tolerar, e depois a amar, o ruído? -, o filme dá o exemplo por nós, e com estrondo!
O cinema já foi surdo, mas, creio, nunca foi tão mudo como aqui. Pelo menos, desta forma. Contudo, estamos em território conhecido. A Quiet Place tem todos os condimentos do cinema de terror americano com elementos melodramáticos, que reconhecemos num Steven Spielberg [War of the Worlds (A Guerra dos Mundos, 2005)] ou num M. Night Shyamalan [Signs (Sinais, 2002)]. [Se a comparação é justa, ressalvava que A Quiet Place não tem a dimensão abstracta que revela Trey Edward Shults no recente, outrossim filme de cerco e melodrama familiar, It Comes at Night (Ele Vem à Noite, 2017).] A família constitui o ecossistema central do filme, que é ameaçado de morte pelo ruído que possa inadvertidamente produzir – digamos que a responsabilidade primeira da morte recai em nós, humanos, e não neles, invasores tímpanais, cujos rostos desabrocham como flores malignas feitas de carne e visco. Apetece dizer que, se não for mais do que isso, este é um caso de uma composição de excelência por parte de um aluno empenhado. Krasinski encaixa as peças, do puzzle narrativo – que é um puzzle visual e, acima de tudo, sonoro -, seguindo uma gramática spielberguiana impecável, caracterizada por um grande rigor formal e muita intenção na construção dramática – uma construção sempre “em acção”, sem tempos mortos – das personagens que compõem esta família on distress. Como é que, enfim, a acção e o melodrama são compagináveis, assim, desta forma, em quase absoluto mutismo, com o terror? A resposta está na experiência que é o filme. Portanto, faça o favor de se levantar, ir até ao seu cinema favorito, comprar o bilhete, sentar-se confortavelmente, fechar a matraca e… abrir os ouvidos para o que aí vem.