Inspirado no já sexagenário Flaherty Film Seminar – do qual Nuno Lisboa, o director do Doc’s Kingdom, foi o programador convidado o ano passado – o Seminário Internacional sobre Cinema Documental que agora se realiza regularmente em Arcos de Valdevez (depois de se ter iniciado em Serpa e ter passeado às ilhas dos Açores) tem no seu nome uma homenagem. Presta a sua vénia eterna ao cineasta Robert Kramer que rodou em Portugal o homónimo Doc’s Kingdom (1987) e que faleceu em Novembro de 1999, um ano antes da primeira edição do Seminário. O reino do Doc – alcunha do médico que protagoniza esse filme – é aqui re-significado como o reino do documentário. Mas nesse jogo de palavras as mãos do prestigiador tropeçam nos panos caídos das mangas e o doc-tor faz-se doc-umentário, e vice-versa. Isto é, os reinados do cinema e da medicina cruzam-se para, conjuntamente, fazerem o diagnóstico, o tratamento e a prevenção do real. A prática do documentário é pensada a partir de um olhar que observa o mundo segundo o ponto de vista da maleita, perscrutando-a, identificando-a, examinando-a e, caso assim seja necessário, excisando-a. Não necessariamente um mundo doente, antes um mundo donde, por vezes, brotam multiplicações de tecidos caóticos que precisam ser analisados.
Desde 2007 que cada edição do seminário Doc’s Kingdom vem acompanhada de um subtítulo, e este ano as sessões e conversas que acontecerão entre o dia 2 e 7 de Setembro far-se-ão sobre o signo da “Máquina do Mundo”. No Canto X de Os Lusíadas intitulado «Tétis revela ao Gama a Máquina do Mundo» canta-se a certa altura: «Diz-lhe a Deusa: “O transunto, reduzido/ em pequeno volume, aqui te dou/ do Mundo aos olhos teus, para que vejas/ por onde vás e irás e o que desejas./ Vês aqui a grande Máquina do Mundo,/ etérea e elemental, que fabricada/ assim foi do Saber, alto e profundo,/ que é sem princípio e meta limitada.(…)“». A máquina do mundo de Camões resulta do saber vigente à época, o modelo de Ptolomeu que encarava o universo como uma série de esferas concêntricas cuja matrioska central era o planeta Terra.
Mas os programadores desta edição do seminário citam antes a “releitura desenganada” de Carlos Drummond de Andrade onde a máquina do mundo se abre para quem de a romper já se esquivava/ e só de o ter pensado se carpia. É uma máquina do mundo que se mostra a um espectador desinteressado do funcionamento das suas entranhas mecânicas. Drummond fala em pupilas gastas na inspecção e de uma mente exausta de mentar. Assim, Nuno Lisboa e Patrícia Mourão – que os mais cinéfilos reconheceram dos escaparates da Livraria Linha de Sombra como a editora de excelentes livros dedicados a, entre outros, Pedro Costa e à dupla Straub-Huillet – parecem propor, para esta edição do seminário, uma reflexão sobre o poder do documentário na investigação dos emaranhados do real para um espectador farto e desinteressado. Investigações feitas sob o manto da divulgação, da pedagogia do olhar e da revelação daquilo que se encontra opaco.
Num programa único, que se quer partilhado na totalidade, desconhecem-se os filmes. Esse desconhecimento fomenta uma participação integral em todos os momentos do seminário.
O conceito que determina o seminário (e reafirme-se, não é um festival nem uma conferência – “contrariando a dimensão quantitativa dos festivais e a formatação do espaço académico, o que aqui se propõe é uma experiência de cinema e uma experiência humana global, que desejavelmente se tornem uma só coisa”) centra-se na realização de um programa único, sem eventos paralelos, aberto ao público local e enchendo-se de mais de uma centena de convidados. Nesse programa único, que se quer partilhado na totalidade, desconhecem-se os filmes (apenas os realizadores convidados para a edição). Esse desconhecimento fomenta uma participação integral em todos os momentos do seminário que se organiza em três sessões diárias (às 10h00, 14h30 e 21h00) às quais se segue sempre uma conversa com os respectivos realizadores (que invariavelmente estão presentes para participar em debates colectivos entre todos os presentes). Este ano os realizadores convidados incluem Andrei Ujică, Deborah Stratman, Forensic Architecture, Jumana Manna, Maria Augusta Ramos, Nicolas Pereda e João Pedro Rodrigues.
Destes, aqueles que mais directamente se integram no projecto anunciado da máquina do mundo segundo Drummond serão talvez (e de acordo com os meu parcos conhecimentos) os Forensic Architecture e Maria Augusta Ramos. A última é a realizador do recente O Processo (2018) apresentado no início do ano na Berlinale e depois disso estreado nacionalmente no IndieLisboa onde recebeu tanto o prémio da sua secção em que competia como o prémio do público. Já antes Maria Augusta Ramos havia exibido o seu Juízo (2007) também no IndieLisboa, também um filme de tribunal, dessa feita sobre jovens brasileiros menores de 18 anos que eram levados ao Tribunal da Justiça do Rio de Janeiro antes de serem mandados para uma instituição de correcção para menores. Juízo será exibido dia 10 de Setembro pelas 18h30 no Goethe-Institut em Lisboa no âmbito do ciclo Problematizar a realidade – encontros entre arte, cinema e filosofia com a presença da realizadora e da curadora Patrícia Mourão [numa parceria entre IFILNOVA (CineLab) / FCSH / UNL, Goethe-Institut Portugal e Maumaus / Lumiar Cité e em colaboração com Apordoc / Doc’s Kingdom].
Quanto aos Forensic Architecture – um centro de pesquisa londrino que funde metodologias de investigação criminal com as capacidades de modelação digital da arquitectura para fazerem trabalhos de denúncia muitas vezes em parceria com organizações de defesa dos direitos humanos – um dos seus trabalhos foi apresentado o ano passado durante o DocLisboa numa sessão especial programada pelo canal Inhabitants. Não tendo visto essa projecção, cruzei-me com o trabalho deste colectivo na última edição do European Media Arts Festival em Osnabrück, onde fora instalado o vídeo Air Strike Atimah (2015), onde o grupo trabalhava a partir de imagens captadas por anónimos (de smartphone em punho) de uma bombardeamento feito na localidade do título a 8 de Março do mesmo ano. A partir de três dessas “reportagens” os investigadores puderam criar uma triangulação do evento, sendo assim capazes de localizá-lo geograficamente no terreno e modelar a propagação dos efeitos das bombas, complementando o vídeo com uma impressão em 3D dessa mesma modelação da destruição fumegante. Uma peça que fazia convergir o rigor das ferramentas científicas e o horror dos eventos com a leveza de uma nuvem de acrílico branco.
Se estes “dois” cineastas se dedicam a um cinema de investigação no sentido mais procedimental da palavra, já Nicolas Pereda trabalha um certo onirismo. Ou melhor, essa é a ideia que tenho do seu trabalho de ficção, nomeadamente Los mejores temas (2012) exibido no IndieLisboa e Minotauro (2015) exibido na última edição da Mostra de Cinemas Ibero-americanos [sobre o qual escreveu o colega Carlos Alberto Carrilho]. Mas pelo que percebo (numa pesquisa breve) a sua obra documental que o DocLisboa exibiu em 2009 e 2010 [Interview with the Earth (2009), Perpetuum Mobile (2009) e Todo, en fin, el silencio lo ocupaba (2010)] é dona de um “realismo extremo, num meio de pobreza e dificuldades, sem qualquer concessão a embelezamentos estéticos“. Espero portanto descobrir o outro lado de um cineasta cuja faceta que conhecia se pautava pela delicadeza.
Jumana Manna é, tanto quando me recordo, desconhecida em território português, apesar de os seus dois últimos filmes terem sido exibidos no Forum da Berlinale [A Magical Substance Flows Into Me (2016) e Wild Relatives (2018)] tendo passado por festivais como BAFICI, Roterdão, CPH ou o Cinéma du réel. Sempre entre a galeria, a escultura, o vídeo instalado e a sala escura, o trabalho da artista-cineasta trabalha com frequência a ideia de arquivo (o mais recente o “arquivo” de sementes de todo o mundo conservadas no árctico, o anterior o esforço museológico do etnógrafo Robert Lachmann) e de ruína (em particular o espaço das termas/saunas no encontro entre culturas e no choque entre corpos minerais e espaços de des-conforto).
Já Deborah Stratman é um nome mais regular dos ecrãs portugueses, a sua média-metragem Walking is Dancing (2010) foi exibida no DocLisboa e o festival Curtas de Vila do Conde tem exibido exaustivamente o seu trabalho, tendo Hacked Circuit (2014) sido premiado na competição experimental. Ainda assim Stratman é um nome fundamental no circuito do cinema experimental. Representada pela importantíssima distribuidora de Chicago, a Video Data Bank, os filmes da realizadora têm sido exibidos em festivais como Sundance, CPH, Jihlava, Roterdão, Oberhausen, Nova Iorque, Toronto, San Sebastián ou Ann Arbor (o mais importante festival de cinema experimental nos EUA onde a cineasta já foi galardoada três vezes). Com mais de 20 filmes produzidos desde o início dos anos 1990 o seu cinema vem trabalhando essencialmente no formato curto tendo, no entanto, um trio de longas-metragens onde a mais recente é The Illinois Parables (2016) – também exibido no Curtas.
Mas o mais reconhecido dos realizadores internacionais convidados é naturalmente Andrei Ujică, cujo Autobiografia lui Nicolae Ceausescu (Autobiografia de Nicolae Ceausescu, 2010) estreou comercialmente em 2011 em Portugal, figurando no final desse ano em várias das listas dos melhores filmes do circuito comercial português. Com uma obra cinematográfica muito espaçada e reduzida em número (apenas três títulos para cinema em mais de 25 anos), Ujică é professor há mais de 15 anos na HfG – University of Arts and Design para a qual “convidou” o fotógrafo e vídeo-artista português João Tabarra a leccionar. A propósito deste encontro improvável (que aconteceu por serem ambos júris da edição de 2012 do DocLisboa) convido o leitor a ler o artigo da walshiana Carlota Gonçalves para a Revista Contemporânea. O primeiro filme do realizador, feito a quatro mãos com Harun Farocki, é o seminal e fundamental Videogramme einer Revolution (1992) que fará parte da outra extensão do seminário, desta feita na Cinemateca Portuguesa [no âmbito da programação Com a Livraria Linha de Sombra], sendo exibido dia 8 de Setembro às 21h30 (e contando também com a presença do realizador).
Feito o trabalho de casa, já com as roupas embaladas, o bilhete comprado, o bloco de notas no bolso e o lápis afiado encaminho-me, sem saber bem o que me espera, para o Doc’s Kingdom 2018 – Seminário Internacional de Cinema Documental apenas com a certeza de que no final das contas terei umas histórias para contar. Aguardem por elas.