“É um tipo de história de que gosto muito. Cria-se uma personagem que tem um problema, um outro homem chega e fica com ele. E no fim, quando este novo homem parece esgotado, um terceiro homem surge diante do problema. E assim sucessivamente. Como um grande mecânico que constrói carros de corrida.” As palavras são de Howard Hawks em entrevista aos Cahiers du Cinéma, a propósito da estrutura de dois dos seus mais extraordinários (e desconhecidos) filmes: The Dawn Patrol (A Patrulha da Alvorada, 1930) e The Road to Glory (A Grande Ofensiva, 1936), onde os finais evocam uma das primeiras cenas, com um homem a herdar um cargo de comando árduo durante a Primeira Guerra Mundial. Bastaria o excerto dito por Hawks para revelar um tema esporádico na carreira do cineasta, o qual se vai expandindo para a própria estrutura fílmica: a circularidade* (no sentido fatalista do termo), onde os homens se vêem sitiados pelo fenómeno cíclico da guerra, repetindo os comportamentos e posturas dos seus predecessores, algo que em The Dawn Patrol é comentado, sorrateiramente, com um lamento que a dada altura se escuta: “It just goes on and on”.
Trata-se do primeiro dos filmes hawksianos a abordar uma comunidade (embora seja ainda cedo para se falar em “espírito de grupo”) guiada por um código de conduta estóico. Essa sociedade é a de aviadores britânicos, chefiada por Brand (Neil Hamilton), o qual todas as manhãs ordena que uma patrulha (constituída maioritariamente por jovens inexperientes) combata perto das linhas alemãs, com resultados previsivelmente trágicos. Um dos veteranos, Courtney [Richard Barthelmess, depois de Griffith, antes de Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal, 1939)], com a ajuda do amigo Scott (Douglas Fairbanks, Jr.) desafia a autoridade de Brand, confrontando-o com as mortes obtidas sob a periculosidade das suas ordens. Numa reviravolta inesperada, Courtney será ele próprio obrigado a ocupar o lugar do superior que despreza, sem com isso diminuir as perdas humanas nas missões subsequentes.
Como o filme demonstra no seu desenrolar, as escolhas irresponsáveis do indivíduo no comando não advêm de um temperamento caprichoso, mas sim de uma subjugação ética e moral às responsabilidades militares diante do teatro absurdo da guerra (…).
Como o filme demonstra no seu desenrolar, as escolhas irresponsáveis do indivíduo no comando não advêm de um temperamento caprichoso, mas sim de uma subjugação ética e moral às responsabilidades militares diante do teatro absurdo da guerra (após a promoção de Courtney, Brand salienta a impotência com que se deparará com as ordens impassíveis a chegarem do quartel-general por telefone, “Estás acorrentado a esta secretária como eu estive”). Esta subordinação irrefutável não é levada de consciência tranquila e acaba por conduzir, inevitavelmente, cada um dos comandantes ao álcool, o único lenitivo capaz de apaziguar a culpa corrosiva. Hawks explora os efeitos psicológicos do cargo através da monotonia nas sequências onde Brand (e, mais tarde, Courtney) aguarda o retorno dos seus pilotos, diametralmente opostas às coreografias dinâmicas das sequências aéreas. Para isso serve-se de um trabalho cuidado de sonoplastia, onde os barulhos ensurdecedores dos motores dos aviões em fora-de-campo dominam a banda sonora diegética, enquanto se obtém visualmente um plano fechado do comandante inquieto a ouvi-los e, com base neles, a contar ansiosamente o número de aviões que retornaram após cada batalha (um exemplo do uso do som em Hawks enquanto complemento da imagem ao invés de reforço, como apontado por Gerald Mast em Howard Hawks, Storyteller). Hawks deixa assim saliente o estado de alienação do comandante, alicerçado na falta de acção inerente à espera inquieta e na claustrofobia sentida na sala de comando.
Há uma componente ritualística na forma como se anuncia, ciclicamente, a dissolução da identidade das personagens (Brand, Courtney e, no final, Scott) no cargo. Nas sequências onde são expostas as ordens para o dia seguinte, Hawks começa por colocar o assistente do comandante a atravessar a porta da sala de comando, pedindo aos homens silêncio. Quando a quietude está assegurada, o próprio comandante atravessa a porta, imobilizando-se diante do pelotão para ditar as instruções, com um comportamento calmo e oposto ao que havíamos visto previamente no interior da sala. A porta mostra-se assim como um elemento quase teatral, uma passagem que separa os bastidores (a sala de comando) do proscénio (o espaço onde convivem os soldados) e que delineia a transição comportamental do comandante, onde este põe de parte o remorso para dar lugar a uma postura firme e profissional. Cada comandante sabe então que, se abandonar esta representação diante dos seus homens para mostrar as suas vulnerabilidades internas, poderá pôr em risco a confiança deles e a esperança de acarretarem de forma bem-sucedida as tarefas que lhes foram incumbidas para a manhã seguinte.

Eventualmente, o ciclo vicioso levará a que Courtney seja também ele confrontado com a sua aparente calosidade (confronto que decorre na sala de comando que, como vimos anteriormente, é o espaço onde o oficial se encontra mais fragilizado). Tal chega-lhe pela figura de Scott, após Courtney ter ordenado que o irmão dele fosse combater. A sequência após a morte do irmão de Scott figura, certamente, como uma das mais psicologicamente violentas em todo o Hawks, pela sua construção formalmente rara na carreira do cineasta. Escreve José Navarro de Andrade na sua folha de sala da Cinemateca: “É lugar-comum dizer-se que em Hawks o olhar da câmara está à altura do olhar humano; será uma constatação plausível se a tomarmos como regra geral, todavia é essa sua generalidade que permite desmenti-la. O clímax emocional de The Dawn Patrol, quando Douglas Fairbanks irrompe no gabinete de Barthelmess, destruindo a amizade que entre eles havia – e é o clímax porque, já aqui, a amizade é a questão central em Hawks – chega-nos precisamente a partir de um plano dos pés, criando, deste modo, uma violenta ruptura com um ponto-de-vista até aí constante.” Como referido, este “clímax” começa com uma panorâmica que acompanha o movimento violento dos pés de Scott (1), ao qual se segue um plano de conjunto com a personagem a entrar no gabinete, num extremo oposto do enquadramento com Courtney (2a). Através de um travelling que enfatiza a progressão veemente do andar de Scott, a escala da figura humana no plano é ampliada até originar um plano americano de ambos (2b). Finalmente, o campo/contra-campo com Scott a lançar acusações de homicídio a Courtney (3 e 4).
O primeiro aspecto a notar é a tal “ruptura” que vai contra a forma como o filme estava até ali construído, assinalando uma reviravolta narrativa pela exposição bem saliente do domínio assertivo do espaço pela personagem de Fairbanks em 1. Depois, a forma como o espaço se comprime com o travelling que vai de 2a a 2b, incrementando a sensação claustrofóbica e a inevitabilidade do conflito, enfatizando como o comandante vai, enfim, ser confrontado impetuosamente com as consequências dos resultados das suas ordens. Ainda em 2b, é de destacar como a figura da secretária vem ocupar boa parte do enquadramento, um elemento físico que surge como símbolo da hierarquia militar que se impôs na amizade fraternal deles, para além de Scott ser colocado numa posição de superioridade (física e moral) face a Courtney, pelo facto de se manter de pé e deixar a sua manifestação de desprezo, olhando o comandante de cima. Finalmente, Hawks impede que Scott e Courtney voltem a compartilhar um enquadramento no restante desenrolar da sequência, com o corte e o isolamento das personagens nos planos 3 e 4 a exporem o conflito entre mundos privados que passaram a habitar e a incessibilidade de Scott para Courtney (num breve momento, Courtney estende a mão que antes agarrava o copo para fora do enquadramento, em direcção ao rosto do piloto, mas esta nunca entra no plano de Scott, é rejeitada, fica perdida num limbo entre os planos para apenas retornar exaurida à secretária, à zona perto do copo, à solidão destrutiva do comando.) Hawks faz sentir assim, de forma visceral, a responsabilização de Courtney pela morte do irmão do camarada, terminando, definitivamente, a amizade que até aí fora um dos baluartes do filme inteiro.
É então após este confronto que Courtney se redime. Embriaga Scott, o qual se havia voluntariado para o que é, certamente, uma missão-suicida individual, ocupando o lugar martirizante deste num voo ousado até às linhas alemãs, com a finalidade de bombardeá-las. E embora sejam extraordinárias as sequências de bombardeamento [tão boas que vieram a ser reaproveitadas em outros filmes da Warner, incluindo o remake deste filme, e pelo próprio Hawks em Today We Live (A Vida é o Dia de Hoje, 1933)], mais interessante será discutir as batalhas com os pilotos adversários que se travam no seu decorrer, mostrando algo a que o cineasta retornará mais tarde: o cavalheirismo entre adversários num ambiente de violência. É Bogdanovich quem faz esta comparação no seu Who the Devil Made It: em El Dorado (1966) a personagem de Chris George era abatida inesperadamente pela de John Wayne e nos seus derradeiros momentos dizia “Nem me deste uma chance”, ao que Wayne respondia “És demasiado bom para te ser dado uma.” George morria, mas não sem antes receber o maior elogio de um rival, isto é, o reconhecimento inegável da sua competência profissional. Observamos em The Dawn Patrol algo semelhante na forma como Courtney e o piloto alemão se despedem salutarmente, quando o avião do britânico entra em queda, após ser abatido pelo germânico. É diante da face da morte que os heróis e vilões hawksianos mostram o respeito mútuo que nutrem entre si.

E se entre rivais encontramos esta estimada forma de saudação, que dizer da maneira como os camaradas lidam com a morte de um soldado? “Here’s a toast to the dead already / Hurrah for the next man who dies.” São os versos mais tristes e bonitos da canção que os pilotos cantam após cada missão trágica, onde reafirmam a sua resiliência num abraço necessário ao estoicismo que os afasta do desespero. Pensarão talvez o mesmo que Cary Grant dizia de Joe, após este morrer em Only Angels Have Wings: “Ele não era bom o suficiente”. E diante desses voos da madrugada, na ambição ingénua de se provarem melhores que os precederam, percebem demasiado tarde que nenhum homem é bom o suficiente para lidar com a guerra. Como Scott que acaba por ocupar o lugar que pertencia a Courtney, outros virão para outras alvoradas, mas sempre com as mesmas ilusões, sempre com os mesmos destinos. It just goes on and on.
*Mesmo que o tipo de história descrito por Hawks não esteja presente neles, esta questão da circularidade pode ser encontrada noutros filmes seus, como os ensaios teatrais e as capotagens que iniciam e acabam Twentieth Century (Século XX, 1934) e Red Line 7000 (Traço Vermelho 7000, 1965), respectivamente.