Michael Myers é uma constante quase matemática do Mal desde que John Carpenter forjou o grande mito em 1978. Foi nesse ano que Halloween (O Regresso do Mal, 1978) deu rosto a um novo subgénero do terror, o slasher movie, mas o gesto inaugural de Carpenter ia muito mais longe: na génese de tudo estava também a sua superação máxima. Essa superação traduz o gesto mínimo, fundamental, da realização milimétrica, cronométrica, de Carpenter. O principal protagonista de Halloween era, antes de mais, a câmara, isto é, o cinema ele mesmo. Ao lado, e por vezes confundindo-se com a sua perspectiva, estava este homem sem rosto, de todos os rostos – “coisa” programada para matar para lá do tempo e do espaço. Claro que esta coisa-conceito que dá corpo a Myers e, antes, à câmara de Carpenter, aparecia nos anos 1970 por trás da máscara do cinema de género, como uma reflexão sobre a luta geracional que se disputava então na sociedade americana, entre gerações mais novas e mais velhas, na ressaca da revolução sexual hippie e da governação Nixon. A precisão maquinal dos gestos de Myers – da matança asséptica que este “põe em cena” – tem, enfim, todos os cuidados de uma espécie de ideologia de Estado, a mesma que, reproduzida nas escolas, na televisão e no cinema, existe para reprimir tudo aquilo que vem manchar o american way of life ou um americanismo saudável, puro e “great”. Por isso, Myers é também como um Deus punitivo, um “papão” que, à falta de uma boa polícia política e na ausência de um ainda melhor exército dos costumes, dá “tau-tau” a toda uma geração obcecada com sexo e drogas.
Várias sequelas depois, e após um reboot interessante da autoria de Rob Zombie, surge-nos Halloween (2018) – apetece dizer “simplesmente, Halloween” – e, com ele, reencarnado, o seu vilão Michael Myers, hoje tornado “estrela pop” ou, glória maior, transformado em “meme” nas redes sociais. Os dois, filme e vilão, aparecem como que regressados dos mortos; como se pouco ou nada tivesse acontecido antes, de permeio. Este Halloween, apoiado numa impressionante máquina de propaganda, em que se inclui alguma acrítica crítica de cinema, surge-nos assim, de cara lavada, com a pretensão de ser uma espécie de “John Carpenter’s movie” também ele asséptico, porque o mestre não realiza, apenas assina a banda sonora em regime de co-autoria. Para que é que precisamos de Carpenter? Não precisamos dele, se são vários os piscares de olho – os assédios… – aos dois primeiros da série (o primeiro de Carpenter é continuado, num raccord perfeito, pela sequela, que tem vários méritos, de Rick Rosenthal).
À maneira de Walter Benjamin, podemos olhar para um produto como este e ver nele, bem escarrapachadas, “as catástrofes” do nosso tempo, à cabeça o fenómeno de medo que tem sequestrado a nossa vida social e a nossa atenção mediática, no Facebook, nos cafés e nas urnas de voto. Claro que há lições políticas importantes a retirar deste regresso do “Regresso do Mal” – o título português do primeiro filme é, hoje, um verdadeiro triunfo, celebração justa do seu poderoso conceptualismo. Concomitante a este “regresso ao regresso” está um plenamente assumido grande regresso a John Carpenter – o seu cinema nunca esteve tão bem cotado, com reposições em sala dos seus clássicos e várias leituras académicas, teórico-políticas, das mensagens ocultas nalguns dos seus filmes. A coisa, contudo, cheira a oportunismo quando se usa um recipiente antigo para se depositar um líquido novo, viscosamente fresh. Com efeito, a forma como a personagem interpretada por Jamie Lee Curtis, Laurie, é, para usar um palavrão do momento, “empoderada” neste novo filme, ao lado da sua filha e neta, consubstancia uma tentativa de sustentar a fácil narrativa dos nossos tempos, que vai facilmente do papão Harvey Weinstein ao papão Donald Trump.
Esta tentativa de tornar Carpenter em suporte do mais esquálido feminismo é só o princípio da desonestidade e falta de chama do que se propõe aqui – muita conversa, poucochinho cinema.
O que fica politicamente é um conjunto de ideias, sacadas acriticamente ao Zeitgeist. Não destoando, a mensagem cinematográfica é igualmente mole e fácil. Infelizmente, a intenção política de Halloween acaba por chocar de frente com a ausência da intenção cinemática de renovação do olhar carpenteriano. É que este filme, que muito debita a mensagem política dos nossos dias, é canhestro a debitar a poderosa “mensagem cinematográfica” que tornou Halloween não só um dos filmes maiores da Nova Hollywood como uma obra cuja acutilância estética – e por arrastamento também política, claro – nunca foi tão grande. Não há câmara, não há olhar em David Gordon Green, espécie de “realizador-Zelig” que se tem adaptado a vários registos – o drama indie pós-malickiano ou a comédia esgrouviada da trupe de Judd Apatow – sem deixar verdadeira marca em nenhum deles. O principal problema deste filme radica precisamente nesta fraca – quase ausente – personalidade do realizador, que é sinónimo da ausência ou fraqueza deste olhar que agora se aproveita de uma máquina de cinema superior. Toscamente, sem imaginação ou poder conceptual, a câmara imita Carpenter, não o reinterpreta, nem o reapropria – nisso Rob Zombie dá 5 a 0 ao desenxabido Gordon Green.
Myers era um conceito de corpo denso, maciço, no filme de Carpenter. Agora só a espaços – sequência na casa de banho, no início – sentimos o peso da sua ameaça. De resto, tudo é motivo de vingança, “delas contra ele”, isto é, destas mulheres unidas por um trauma comum (familiar) que agora, “empoderadas”, vêm pôr os pontos nos “is”. Resulta daqui que deixa de haver terror, restando apenas uma robotização política sem grande imaginação. Título verdadeiro: Halloween. Título alternativo: Halloween, o regresso de Laurie e a vingança de saias. Esta tentativa de tornar Carpenter em suporte do mais esquálido feminismo, muito em voga hoje em dia, é só o princípio da desonestidade e falta de chama do que se propõe aqui – muita conversa, poucochinho cinema. Porque, de novo, se não há olhar-câmara, não há Myers ou não há um conceito capaz de penetrar nos nossos pesadelos. Se não há ameaça, não há grandes motivos para a acção, sobressaindo a gratuidade da tal narrativa de vingança pós-Weinstein. Em suma, o que o espectador exigente e sofisticado deve fazer é revisitar os dois/três primeiros filmes da saga. É ainda aqui que podemos encontrar a mensagem político-estética que mais poderosamente implica com o nosso pensamento crítico.