Em certa medida, En guerre (Em Guerra, 2018) continua La loi du marché (A Lei do Mercado, 2015). Nos dois, o protagonista interpretado por Vincent Lindon reclama o direito ao trabalho. Nos dois, é nos seus olhos, que lembram os do mítico actor francês Raimu, que filtramos a acção. Em La loi du marché, o olhar é pesado, resignado, impotente. Em En guerre, o olhar não cede um milímetro, faísca por todos os lados, é o grande contentor do drama. No primeiro filme, falamos de um homem desempregado que procura, sem grande esperança, um trabalho que reacenda o sentido da sua vida – esta frase saiu-me com um lirismo indesejado, na medida em que o filme tem a secura de um documentário. No segundo filme, este que agora se estreia, o nosso “herói” fará tudo para evitar o despedimento colectivo anunciado. Este trabalhador de uma fábrica de componentes de automóvel, com sede na Alemanha, levará até às últimas consequências a sua batalha. Lindon, aqui, chefia uma guerra violenta, de braços dados com os seus colegas, gritando a plenos pulmões, dando o peito às balas na mesa de negociações com o patronato, aguentando a pressão dos media, do poder político e, a tarefa mais dura, respondendo ao “fogo amigo” dos seus camaradas de profissão.
Nunca foi dado melhor uso à câmara nervosa de Brizé. Se em La loi du marché e mesmo em Une vie (A Vida de Uma Mulher, 2016), ela coloca-se a uma certa distância – dir-se-ia, a uma “distância de segurança” -, em En guerre ela, temerária como a personagem de Lindon, vibrátil e faiscante como o seu olhar, avança e mistura-se entre os trabalhadores em protesto. Este activismo não desarma durante as quase duas horas de filme. Na montagem, o realizador – com, o seu a seu dono, a montadora Anne Klotz – procura criar alguns momentos de descompressão, como as sequências em que deixamos de ouvir a acção crua dos protestos e passamos a ouvir somente a anticlimáctica música de Bertrand Blessing – é como se, nestes instantes, o filme nos permitisse vir à tona ganhar algum ar. Faz sentido então esse anticlímax, porque em En guerre quase tudo é clímax – apesar de Brizé ainda nos reservar um chocante clímax do clímax mesmo no fim do filme…
En guerre é uma implacável celebração do carisma de um actor chamado Vincent Lindon. Manifestamo-nos com ele, por ele, independentemente das consequências que tudo isto vai acarretar no fim.
Ora, nesse sentido, quase apetece dizer que En guerre está mais próximo em matéria de temperança estética de Stachka (A Greve, 1925) de Serguei Eisenstein ou de um filme de Elio Petri como La classe operaia va in paradiso (A classe operária vai para o paraíso, 1971) do que, por exemplo, do português A Fábrica de Nada (2017), filme-geringonça, miscelânea de géneros e propostas, ou mesmo de um Ressources Humaines (Recursos Humanos, 1999), obra de Laurent Cantet que transportava, com certa suavidade, a “luta de classes” para o seio de uma família operária. En guerre é uma montagem das atracções aos solavancos, verdadeiro rollercoaster pós-eisensteiniano desenrolado no coração palpitante do Estado social, qualquer coisa digna de uma Feira Popular para sindicalistas wannabe da CGTP. E Brizé é ágil a montar este “espectáculo”, suga-nos, aprisiona-nos e só nos liberta quando, após um acto de supremo sacrifício, a guerra se torna vã, obscena. Perto desse gesto derradeiro, que esgota o estado de guerra imanente ao filme – que é o filme -, há um grande plano “roubado” a um dos olhos de Lindon, quando este vai no carro a caminho do primeiro encontro com o neto recém-nascido. A câmara apanha uma pequena lágrima que lhe escapa dos olhos, um micro instante em que a tensão raivosa do filme esvazia significativamente. É também neste plano que fica evidente que todo o lugar do drama se concentra no corpo, nos olhos deste actor-mundo.
O problema principal do filme é a sua maior virtude: uma absolutamente inescapável tensão dramática, que não nos permite antecipar ou muito menos festejar vitórias, porque nunca acreditamos verdadeiramente nelas – o sabor a tragédia é intenso, e inultrapassável, desde os primeiros minutos. Como se La loi du marché tivesse ido beber à tragédia de Une vie para parir um terceiro título que nos sentencia a sua lei da vida: viver ou morrer em guerra. Quanto mais alto é o drama, mais nos mexemos, inquietos, na cadeira, na expectativa sobre o que se segue, algures entre o tipo que diz “esfola!” e o tipo que diz “mata!” – o tipo que diz “rende-te!” não é para aqui chamado. Estamos sempre com Lindon, mas não tanto por acreditarmos na sua causa ou acharmos que esta se coaduna com os tempos cínicos e complexos em que vivemos. Estamos com ele porque somos atraídos pela energia polarizadora, a “brute force”, da sua presença, do seu olhar. En guerre é uma implacável celebração do carisma de um actor chamado Vincent Lindon. Manifestamo-nos com ele, por ele, independentemente das consequências que tudo isto vai acarretar no fim, naquelas imagens anónimas, cheias de grão, aos solavancos, que documentam sem heroísmo o acto final do guerreiro.