Talvez seja mais fácil encontrar cinema no Netflix do que neste último filme de Moore. Segundo a prédica actual, são as séries que transformam o mundo. Mas este discurso que parece retomar as antigas pretensões de um Godard ou Rossellini, são no entanto o seu inverso. Enquanto estes pretendiam levar o cinema à televisão, é a televisão que neste momento chega ao cinema. A própria experiência cinematográfica que já havia sido destabilizada com a introdução do VHS e a possibilidade de reproduzir infinitamente e parar a belo prazer do espectador, é hoje o centro de toda a experiência. Porque actualmente os objectos são vítimas de uma outra lógica económica, a da atenção. Tudo está organizado segundo um princípio de condição e não de possibilidade. A experiência que resulta desta inscrição da condição, destabiliza a ideia que há duas décadas atrás se oferecia apenas como possibilidade. Parar ou reproduzir novamente, voltar atrás ou avançar, era apenas isso mesmo, uma possibilidade técnica, nunca um princípio determinístico inscrito na estrutura de um filme. Pelo contrário, hoje esse princípio está inscrito e portanto reduzir, aglutinar e fragmentar são conceitos elementares à criação.
Moore parece acreditar que é impossível voltar a reproduzir uma estrutura coesa semelhante à dos seus anteriores filmes, como é o caso de Fahrenheit 9/11 (Fahrenheit – 11 de Setembro, 2004) ou de Bowling for Columbine (2002), tendo optado pela lógica simplista que já anteriormente Michael Moore in TrumpLand (2016) era refém. Moore limitou-se a cozer uma manta de retalhos e portanto sobre o signo dos EUA, a contaminação por chumbo em Flint, a manifestação dos professores por melhores condições salariais, a insurreição dos estudantes contra as armas, a ascensão da nova esquerda no partido democrata, convivem num mesmo objecto e sem aparente contradição ou impossibilidade. Não há uma única ideia de montagem, porque esta se tornou dispensável no circuito comercial. O que atraí actualmente as imagens já não são outras imagens, mas antes o discurso que é possível estabelecer entre elas. Portanto o flop comercial que este filme representa para Moore não deve colocar em causa a sua estrutura, mas antes a saturação que o tema discursivo é vítima. Moore não soube compreender que o seu filme era já passado antes mesmo de estar concluído.
Numa era onde predominam as imagens sem densidade, prontas a serem consumidas sem questionamento, assim se oferecem também as imagens de Moore e de tantos outros bem-intencionados cineastas, fazedores de séries e criadores televisivos. O que estes novos produtores acreditam é que a imagem enquanto estrutura autónoma perdeu a sua força transformadora e portanto o peso do discurso deve recair novamente sobre a palavra. Mas se o discurso é refém da temporalidade mediática, toda a imagem revela-se saturada e expõem consequentemente a obsolescência ao qual o discurso está sujeito.
É um paradoxo curioso pensar que a oralidade num mundo onde apenas se repetem chavões como “empreendedor”, “inovação” ou “viral” e se visa reduzir a circulação das palavras ao mínimo (tal como num pesadelo orwelliano), a palavra tenha conquistado novamente a primazia do lugar. Obama que é contemplado neste filme, é talvez o primeiro de todos os redentores discursivos ao contrariar as suas imagens através de um polimento locutivo (o arauto da democracia, contradiz as imagens de bombardeamentos a civis ou a expulsão recorde de emigrantes através do seu dom discursivo). O próprio Trump irá servir-se desta mesma lógica, quer nos seus inflamados tweets, quer através do seu prolixo discurso (toda a palavra em Trump é a tentativa desesperada de suster uma imagem que o contradiz. Por exemplo, a repetição sistemática de “biliões” no seu discurso e a imagem do homem de sucesso que lhe escapa a cada falência).
Portanto o flop comercial que este filme representa para Moore não deve colocar em causa a sua estrutura, mas antes a saturação que o tema discursivo é vítima. Moore não soube compreender que o seu filme era já passado antes mesmo de estar concluído.
Já não são as imagens que restam ou Moore não seria capaz de aglutinar num mesmo filme Hitler, Trump, Obama, um atropelamento brutal, um tiroteio num secundário ou uma parada de neonazis. Estas imagens são a microestrutura que estão sujeitas à macroestrutura dos episódios unidos pelo discurso. Invocar a imagem de Hitler para falar de Trump reduzindo-a a um exercício cómico (como ele o faz ao sobrepor a voz de Trump sobre as imagem de Hitler num comício, resultando num episódio unicamente caricato para quem assiste a esta infantilização), torna a operação num jogo inconsequente porque enquanto demoniza Trump, retira um certo peso a Hitler. Este método aparentemente inofensivo do qual nos socorremos do passado para analisar o futuro, é responsável por um certo branqueamento histórico. Hitler corre o risco de em breve ser só mais uma imagem. É a imagem que actualmente está em risco, não a palavra. Porque aqueles que vociferam contra o «politicamente correcto» alegando uma censura discursiva, recorrem à pluralidade linguística mais néscia para afirmar a sua possibilidade de dizer.
Moore ao alertar para os perigos do populismo e das suas reminiscências com o passado fascista, não soube compreender que inscrevia a violência nesse mesmo território populista ao popularizar ainda mais as imagens (as imagens de arquivo de que serve fazem parte das imagens já difundidas e repetidas até à exaustão pelos média e nas redes sociais. Não há uma imagem que rompa com a banalização à qual a imagem esteve sujeita desde o início da sua circulação). Talvez este exercício de Moore seja um importante sinal (o único, na verdade) a reter: o apogeu de um fenómeno – a cultura da imagem – é também o início claro da sua decadência. Estamos já a sustentar as imagens com palavras e se as palavras não resistem porque são sempre passado, pouco matéria há para pensar o futuro. Infelizmente a esperança que o filme tenta veicular, é também a de um futuro sem futuro porque tudo aquilo é já passado.