The photograph is meant to get lost somewhere in a box, in an attic.
It’s a nomadic thing that has a small chance only to survive.
W. G. Sebald, «Sebald y la fotografia»
Os pretextos eram vários: o lançamento do seu mais recente livro, pela mão da editora Pierre von Kleist, 1 + 1 = 1, a exibição recente dos seus filmes em dois festivais do Porto, o Family Film Project – sobre o qual escrevi aqui – e o Porto/ Post/ Doc ou a exposição que organizou recentemente no Musée National Eugène Delacroix em Paris. O que encontrei em Daniel Blaufuks, fotógrafo, cineasta, escritor, pensador, foi uma luminosa e acutilante reflexão sobre o estado do mundo e o estado da arte. Os objectos animaram-se, numa atmosférica sala da Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian (endereço o meu obrigado aos serviços da biblioteca), a partir de um pensamento cintilante que nunca abdica de se debruçar sobre o hoje. É esta a maneira de fazer História em Daniel Blaufuks. Uma História viva, aberta à identificação, que permanentemente interroga o nosso lugar no mundo, ontem como hoje.
A propósito do seu trabalho, o curador e investigador Sérgio Mah fala de uma fotografia com uma dimensão itinerante decorrente de uma condição de exílio que dá forma ao seu olhar. O Daniel nunca se fixa totalmente no mesmo sítio, tal como não cessa de experimentar com novas linguagens. E depois reflecte sobre essa transumância a partir da sua memória pessoal. Isto é, ao mesmo tempo que lê o que tem à frente, também se lê sempre a si próprio?
Sem dúvida! Mas também só encontro aquilo que procuro. Cada verdadeiro fotógrafo tem o seu próprio trabalho. Há um fotógrafo, qualquer que seja, que vai para a rua à procura de senhores vestidos de vermelho. Por mim passam todos os dias senhores vestidos de vermelho, mas eu não noto. O que encontro é também o que procuro, consciente e inconscientemente.
Não é por acaso que estamos a falar de deslocação e exílio e eu estou há anos a fotografar a mesma janela. Se calhar para mim é importante, porque é ir contra todo esse sentido de onde vem o meu trabalho. Portanto, coloco-me numa posição em que digo: “se calhar, eu estou exilado perante esta janela”. Todo o trabalho é autobiográfico, mesmo os realizadores de ficção estão a fazer trabalhos autobiográficos. Acho que é inescapável. A própria história ou o tema que um realizador de cinema ou um escritor de romances escolhe é autobiográfico. A sua própria escolha é uma opção, é uma opção do eu.
Na entrevista a David Campany publicada recentemente no livro So Invisible, So Present, confidencia: “Estou muito interesado na memória e na história; ou, melhor dizendo, nas histórias, memórias pessoais colocadas contra um pano de fundo histórico”. O que se vai passando na sua obra é uma progressiva imbricação entre o que é privado e o que é público, entre a sua história privada e a história pública do século XX. Sei que o escritor alemão W. G. Sebald é um autor de cabeceira para si. É possível fazer História a partir do eu, do que nos é imediatamente próximo? Que riscos é que isso acarreta?
Acho que tem imensos riscos, mas cada vez mais acho que é a história que precisamos. Porque a História é sempre demasiado abstracta. Se calhar faltam-nos histórias de pessoas que estavam numa esquina na rua Augusta e, de repente, passou-lhes o 25 de Abril à frente. Se calhar precisamos tanto dessas histórias como as de Salgueiro Maia. Porque precisamos de um certo grau de identificação com a História. É isso que Hollywood consegue. Hollywood faz um filme sobre qualquer coisa que foi há cem anos e nós, de repente, identificamo-nos com uma pessoa de há cem anos. Mas se lermos um livro de história – são raros os livros de História que são lidos –, não nos conseguimos identificar.
As pessoas há cinco, dez anos perguntavam-me candidamente porque é que eu ainda trabalhava sobre o Holocausto. Hoje já ninguém me pergunta porquê. Porque, na realidade, e de repente, estamos muito mais próximos não de um Holocausto, mas da possibilidade de qualquer coisa assim acontecer. O que interessa na História não é as coisas terem acontecido, mas o porquê de terem acontecido. É um mecanismo da História que faz com que as coisas aconteçam. O mecanismo que fez com que um Hitler fosse eleito não é muito diferente do mecanismo que leva um Trump ou um Bolsonaro a ser eleito. É desses mecanismos que temos de falar.
A História é mais interessante quando é personalizada. Quando ouvimos que “explodiu uma bomba em Bagdade, morreram setenta pessoas”, para nós é abstracto, é um número. Mas se soubermos que morreu também um senhor tal e tal, que tinha aquela padaria, que todos os dias… conseguimos criar um laço completamente diferente. De repente, entendemos uma coisa que é básica: as pessoas são pessoas. É básico, claro, mas como podemos olhar para os refugiados como “o outro”, quando na realidade eles são “nós”? Eles são pessoas!
Essa remissão para a actualidade que faz parece-me resumir a natureza política do seu trabalho. Podemos dizer que há um tempo da História e um tempo da vida? Pergunto isto porque me parece que é isso que trata Como se/As if (2015), filme que ocupa o espaço e o tempo da cidade-estúdio de Terezín, qual memória em ferida que persiste hoje como ervas daninhas.
Só posso olhar para a História ou para o que aconteceu do ponto de vista de hoje. Aí contrapõem-se sempre dois problemas. Por um lado, nós avaliamos – e isso é de certa forma cruel, muito complicado – o passado pelos olhos de hoje. O que sabemos hoje não é o que se sabia há cem anos, duzentos anos. É preciso provavelmente ser um historiador, no verdadeiro sentido da palavra, para se conseguir fazer esse salto. Por outro lado, também não podemos olhar para a história como se nós estivéssemos no meio dela, porque já não estamos. A questão é: que rasto é que fica?
Hoje no jornal Público vinha um artigo sobre anti-semitismo, que dizia que um em cada cinco ou seis europeus já não sabe o que foi o Holocausto. Que rasto é que temos da História? É verdade que o Holocausto, à medida que nos afastamos, vai perdendo o interesse. Não ficará para sempre no interesse das pessoas. Se estivesse a trabalhar sobre o Napoleão, as pessoas não se iam interessar muito. No entanto, o Napoleão foi importantíssimo para a nossa ideia e construção da Europa. Como é que vamos olhar para o Holocausto daqui a cinquenta anos? Se calhar não vamos olhar.
Às vezes digo: se estou a falar do Holocausto, do anti-semitismo, eu penso que estou a falar do racismo, homofobia, de todos os movimentos contra as minorias. Estou a falar daquele que me é mais confortável, porque não sou nem negro, nem homossexual. Mas eu espero que as pessoas compreendam que estou a falar de tudo.
Depois há, ainda propósito de Terezín, a grande interrogação sobre o que é falso e o que é verdadeiro. É interessante comparar As If com o seu mais recente filme, Judenrein (2018), porque neste último trabalho cinematográfico [mostrado no passado Porto / Post / Doc] é já bastante assumido o protagonismo dado à leitura das imagens. O próprio Blaufuks dá voz ao seu texto. Faz com as imagens um pouco o que refere, claramente influenciado por Benjamin, a propósito da fotografia em Archive: “A escrita dobra a imagem. Gosto de o experimentar”. Penso que, porventura ao contrário de um Claude Lanzmann, está longe de ser um crente na existência de documentos puros ou formas puras, por isso estritas, de registo documental.
Quando digo isso, que as imagens se dobram à escrita, é uma vantagem, mas também é um perigo, como sabemos hoje em dia, com as fake news, etc. É um perigo enorme… Portanto, este “filmezinho” – filmezinho ao lado que é o As if, porque tem 20 minutos e esse quatro horas e tal – é um manifesto, é quase um pedido de atenção: “vamos ter atenção, porque isto está a piorar a olhos vistos.” É um grito. Ao contrário do As if, que é uma coisa de um artista distante que está a trabalhar sobre as imagens, só que não se inclui, neste sou eu que estou a olhar para estas imagens, sou eu que escrevo e digo o texto. E digo “eu”, fazendo uma remissão para os tempos actuais. Porque, de facto, o mundo mudou muito nestes quatro anos. A mim, apetece-me gritar, mas não sei bem como: como é que se grita de uma forma produtiva na arte?
O Sebald tem uma resposta que eu acho brilhante e pouco sebaldiana ou talvez não: “O sermos contra na nossa cozinha, é o mesmo do que sermos a favor na praça principal.” De facto, não tem valor. Eu posso estar contra o governo ou contra o que quer que seja na minha cozinha, mas só se estiver essa opinião na praça pública é que a coisa pode mudar um bocadinho. O Judenrein é isso.
Mas longe da posição mais ortodoxa de um Claude Lanzmann.
Ah, sim! Ele recusava-se a usar imagens de arquivo, o que eu admiro profundamente. E claro: Shoah (1985) é um monumento incrível e faço uma vénia à obra do Lanzmann. Mas o tempo do Lanzmann é outro. Nas minhas aulas, normalmente mostro o Nuit et brouillard (Noite e Nevoeiro, 1956), que é supostamente o primeiro filme sobre o Holocausto, que recorre a imagens de arquivo, nomeadamente às imagens horríveis dos cadáveres a serem empilhados. Felizmente que o Lanzmann recusa isso, porque, na realidade, não deveríamos precisar dessas imagens para contar aquela história. Aquelas imagens – tenho absoluta noção disso – são uma falta de respeito com as vítimas. São imagens usadas gratuitamente. Essas imagens não deviam ser usadas, mas se calhar chegaremos a um tempo em que precisaremos de usá-las novamente, como terapia de choque.
Quando faço o As if, usando o filme nazi [feito em Terezín], sei que aquelas pessoas não estão naquela cidade voluntariamente, não estão no filme voluntariamente e não estão nos meus trabalhos artísticos voluntariamente. Tenho noção disso. Eticamente, o que posso fazer em relação a isto? Pouco. Posso, por exemplo, dizer à minha galerista: “não vamos vender isto como arte, vamos incluir no livro, porque é uma forma de educação, não vou fazer dinheiro com isto”.
No caso do Judenrein, as imagens não são de vítimas, são de crimes que desconhecemos. São diferentes, apesar de tudo. Elas são usadas? Serão, mas eu não as acuso directamente de nada.
Preside também nesse filme o “olhar de detective” do fotógrafo.
Sim, o que me faz fazer o filme também é [na imagem de arquivo] aquela mulher que esconde a cara atrás da mala. Quando faz isso, ela está a assumir que se sente culpada de alguma coisa. Pode ser só ser culpada de ser tímida e de não querer ser culpada. Há um escondimento muito nítido ali. E, claro, uso as imagens para uma coisa para a qual elas não foram feitas. Mas, neste caso, não fico muito preocupado com a ética, porque as imagens aqui já são o que são. Não há nomes, não há uma referência directa, há uma referência a uma terra. Naquela terra, passou-se alguma coisa. Não foram aquelas pessoas, porque, como digo, o filme foi feito provavelmente nos anos 1980 e falo de coisas que se passaram em 1945-46.
Estamos a falar de ecos.
Estamos a falar de ecos, de antecessores. De uma coisa eu tenho a certeza: aquelas pessoas são proprietárias de coisas que nunca foram devolvidas aos seus donos, porque eles foram assassinados. E esse problema continua.
Judenrein fala sobre uma grande, ensurdecedora, falta: a da população de judeus numa localidade polaca. O que não encontrou nas imagens de arquivo que adquiriu no Ebay é o assunto deste filme. Diz no filme, perto do fim: “Os arquivos contêm não o que nos lembramos, mas o que nos esquecemos ou esquecemos parcialmente ou lembramos defeituosamente. É por isso que precisamos de arquivos, para registar a memória, para clarificar a memória, para extrair memória de artefactos como estas imagens.” Esta é uma função clássica do fotógrafo ou cineasta: tornar visível o invisível, dar expressão a um qualquer campo cego da nossa memória. Não será esta uma missão cada vez mais arriscada, na era da velocidade, da vaidade e das realidades alternativas?
Sim, o problema é o fluxo de imagens, que cada vez é maior. Mas a verdade é que o fluxo é das imagens que são vistas, não das que não são vistas. O problema é continuar a haver imagens que são filmadas contra todas as probabilidades de não serem vistas e depois serem, de facto, guardadas e arquivadas para serem vistas mais tarde. Mas também é verdade que o poder da imagem se vai desvanecendo. O poder da imagem já não é o que era. Se a imagem não serve já de prova de qualquer coisa, porque é que ela nos interessa?
Nós vivemos agora um momento em que as pessoas ainda acreditam nas imagens, o que acho estranho, porque a imagem já provou ser muito falsa. É uma coisa que está no nosso ADN, pelas gerações para trás, porque quando a fotografia foi inventada foi utilizada como prova, como identificação. Nós estamos habituados a chegar ali à fronteira, puxar do nosso passaporte, o senhor olha para a fotografia, olha para a nossa cara, e dá-se um momento de reconhecimento. Ele reconhece-nos e nós reconhecemos nele a autoridade de nos reconhecer. Aproximamo-nos agora, tudo indica, de uma fase em que a identificação será feita através de outros métodos, em que já não há fotografia; através do digital ou através das medidas (biometrias e essas coisas). Também já deixámos de ter álbuns de fotografia que mostram como eram os nossos avós – com o digital tudo isso desvanece. A ideia da fotografia ou da imagem filmada como prova vai desaparecer.
Restam também muitas imagens falsas na Internet, como as que os nazis fizeram em Terezín, mas feitas pelo homem comum, num exercício de vaidade, numa lógica particular, publicadas no Facebook, Instagram, etc.
Sim. O Lászlo Moholy-Nagy escreveu um dia que, no futuro, todos seremos analfabetos, porque não sabemos ler as imagens. Esse tempo chegou hoje, porque nós não sabemos ler as imagens. E não nos esforçamos por ler as imagens. Circula na Internet uma fotografia do fuzilamento do Lorca. E ninguém se pergunta: como é que há esta fotografia? Aquilo é a imagem de um filme. Obviamente que não havia lá fotógrafos e o Lorca não se parece com o homem que está lá. Da mesma forma, os fascistas da falange que o matou não queriam ter provas de que ele foi fuzilado. Ninguém questiona e as pessoas vão repetindo esta imagem, nos Facebooks, etc. Este é apenas um exemplo de um grande problema que nós temos em relação às imagens.
Disse a David Campany: “Não tenho interesse algum na imagem única, mas na sequência ou fluxo de imagens, numa espécie de prosa cinemática”. Para si, o que é que distancia e aproxima o cinema da fotografia?
Para mim, cinema é fotografia. E a fotografia é um fragmento do cinema. O que diferencia é o que acho mais importante. O cinema tem o seu próprio tempo e a sua própria cronologia. Sou eu como realizador que dito a sequência das imagens. Num livro de fotografia, eu faço isso, mas ninguém garante que isso vai ser obedecido. A cronologia e a hoje teórica obrigação – teórica porque temos os computadores, os Ipads… – de ver em sala, num sítio escuro que exige uma disponibilidade, uma concentração, da parte do espectador, é diferente da fotografia, que vai aparecendo assim [Blaufuks faz o gesto como quem diz: “de todo o lado, num estalar de dedos”]. E depois há o som, que faz toda a diferença.
O que gosto de encontrar no cinema são exemplos daquilo que imagino que pratico que é uma ideia de fotografia expandida. O que não posso contar em fotografia, passa a ser algo que eu tenho de contar com outro meio, ou um livro com uma série de fotografias, possivelmente ou não acompanhada por texto, ou um objecto cinematográfico, mas que, na realidade, para mim não passa de uma fotografia. Uma fotografia esticada, como uma pintura pode ser uma escultura, uma escultura pode ser uma pintura. Há artistas que trabalham com objectos filmográficos que eu não teria qualquer dúvida em colocá-los no campo da fotografia.
Esse é verdadeiramente o domínio do “fotográfico”.
Há diferentes tipos de livros de fotografia. Antigamente, os livros de fotografia eram compilações das melhores fotografias de um fotógrafo. Depois, ou paralelamente, passaram a ser fotografias de um fotógrafo sobre um mesmo tema: Lisboa, Cidade Triste e Alegre, fotografias de dois fotógrafos [Manuel Costa Martins e Victor Palla] sobre um mesmo tema que é a cidade de Lisboa. Depois, temos, finalmente, livros que são obras por si, em que as fotografias nem sequer fazem muito sentido fora daquele livro. Este meu último livro [1 + 1 = 1, edição Pierre von Kleist] é isso: uma fotografia expandida. São várias fotografias, mas elas estão ali e não me interessa tirar uma fotografia dali e mostrá-la. Há um pôr-do-sol, mas ele tem ali uma função. Se eu tirar e colocar na parede, é bonito, mas não mais que isso. O livro de fotografia é uma obra em si, fechada.
Por exemplo, no seu trabalho Flores para Walt mostra fotografia e vídeo. Por um lado, fotografias de objectos congelados (flores, relógios, fotografias). Por outro lado, uma vídeo-instalação em que mostra o processo de descongelamento. O Daniel escreve: “Fotografo objectos congelados e gravo em vídeo o processo de descongelamento”. Roland Barthes tinha mesmo razão quando dizia que a fotografia é o isto-foi, arte da captura, e o cinema um isto-é, arte da duração, sempre no presente?
Isso fascina-me. O Barthes escreveu claramente sobre isso: “a fotografia é morte”. Nós olhamos para uma fotografia e sentimos que o tempo passou; descobrimos que uma pessoa envelheceu, vemos uma pessoa que já morreu, etc. e etc. Eu hoje vou ao cinema ver um filme que vi há trinta anos, Sommaren med Monika (Mónica e o Desejo, 1953), e a Mónica que há trinta anos desejei continua lá desejável. E quem envelheceu fui eu. Não foi o objecto. Sou eu que estou mais velho. O cinema não envelhece como a fotografia. Porque será? Porque é que não olho para a Mónica/Harriet Andersson como uma actriz que deve estar nos seus 80?
O cinema é a vida captada muito mais do que a fotografia. Não penso em decadência quando olho para o cinema. Quando olho para uma fotografia acho que nós todos, mais ou menos conscientemente, temos noção do perdido, do que perdemos. Acho fascinante uma pessoa conseguir situar-se nessa esquina, entre o cinema e a fotografia, que eu acho que é a poesia.
Mas o cinema e a fotografia não são apenas instrumentos, também são fontes para si. Tem vários trabalhos de apropriação cinemática até através da fotografia, como Endless End, colecção de stills de The Ends extraídos de uma panóplia de filmes. Mas, por exemplo, em Under Strange Skies (Sob Céus Estranhos, 2002) recorre ao seu próprio arquivo pessoal, em que se incluem fotos da sua família. A questão da apropriação leva-nos a várias questões de índole ético. Impõe a si mesmo limites para o processo de apropriação?
Há os direitos de autor [risos]. Para lá de legalmente, até acho que chegámos a um ponto na sociedade em que não precisamos de novas imagens para dizermos o que queremos dizer. A não ser que queiramos falar, de facto, do presente. Se quisermos falar de uma coisa intemporal, que é a poesia, se calhar nem precisamos de filmar nada. Podemos pedir de empréstimo, porque o arquivo já é imenso. Agora, há imagens que são mais convidativas que outras. Por exemplo, no Sob Céus Estranhos, a única coisa que eu tinha pensado filmar desde o início do filme era uma panorâmica de 360º do cemitério judaico em Lisboa. Já estava preparado para fazer isso – já tinha a câmara e tudo. Recebi nessa altura um Super 8, que o meu primo do Canadá enviou, que o avô dele tinha feito quando tinha estado cá em 1968. E estava lá já isso! Foi o que utilizei. A imagem que tinha na minha cabeça já ali estava. Claro: estava ali de uma forma mais charmosa, por ser Super 8, por ter a coisa da película, do tempo… Uma coisa que o vídeo não tem, não é? Essa é outra das grandes problemáticas hoje em dia. Essa coisa da matéria, da pele. Pele, película.
Há um lado de arqueólogo nesta coisa, mas também penso que nós vivemos um tempo de fascínio e às tantas comecei a recusar um pouco… – por essas antigas tecnologias, porque vivemos o início do digital. Não há nada mais aberrante do que os simulacros de daguerreótipos e técnicas ancestrais que vemos nos Instagrams e Facebooks. Há um fascínio com isso, com o “erro do digital”, mas o digital não tem erro! O erro tem de ser induzido. Não é erro. O digital ainda por cima é um nome erróneo, porque parece mão e não é – a película, que vem da palavra pele, é que é. Ao perdermos isso, perdemos algo que é irrecuperável. Mas também é verdade que a fotografia não tem assim tantos anos. Se olharmos para a história dos álbuns de família, estamos a falar de cinco gerações talvez. Não é muito na história da humanidade.
Trabalhos como Toda a Memória do Mundo e, já com imagens suas, o seu mais recente livro 1 + 1 = 1 atestam o que o Daniel desarquiva e transforma em colecção, constelações de imagens dispostas em mosaico que lembram tanto o Atlas das Imagens de Aby Warburg quanto o Google Images. Em Archive, descreve a imagem como um labirinto. É de labirintos de labirintos que estes seus trabalhos são feitos?
Sim, sem dúvida. É parte do interesse de ver como as imagens funcionam quando as juntamos. É óbvio que é uma técnica do cinema. Como disse Kulechov, as imagens funcionam completamente diferentes consoante a sua disposição. A fotografia é exactamente isso. Já tinha experimentado isso no Collected Short Stories, que eram duas imagens mais uma que era o título, que também podia puxar para outro lado. Nas constelações [Toda a Memória do Mundo] e no 1 + 1 = 1, que na verdade é uma imagem mais uma imagem que continua a ser uma imagem – aquelas duas páginas são vistas como uma única imagem –, o que me interessa é ver como é que as coisas se enquadram quando são vistas em conjunto. É uma coisa que é contra o cinema, que normalmente é uma imagem, salvo em trabalhos mais experimentais como os últimos de Chris Marker ou o último Godard, que tem imagens dentro de imagens dentro de imagens. O cinema na sua génese é “imagem atrás de imagem” e na fotografia é assim também.
Agora interessam-me as camadas ou as imagens serem paralelas; interessa-me que várias imagens sejam vistas ao mesmo tempo, criando uma leitura completamente diferente do que se forem vistas individualmente. No fundo, é como palavras. Posso dizer uma palavra e ela ser forte. Posso dizer duas e elas encontram-se ou desencontram-se, e depois faço uma frase, que é um conjunto de palavras. No entanto, o universo das palavras é tão grande que nós podemos estar aqui numa conversa de várias horas e a nossa construção de frases ser completamente diferente, sem repetirmos uma única frase. No fundo, a fotografia é isso: uma construção de alfabetos, como dizia, mas se eu juntar uma, duas, três, quatro, cinco fotografias estou a construir um produto, uma frase ou uma pauta completamente diferente do que podia fazer com imagens uma atrás da outra.
Sei que privilegia a forma livro – tem dezenas de livros publicados. Quando inicia um novo livro, costuma olhar para trás, arqueologizar-se, isto é, escavar sobre o trabalho acumulado à procura de novas ideias?
Não… às vezes devia [risos]. Raramente olho para trás. Sei que eles existem, tenho-os na cabeça. Mas não vou lá propriamente pesquisar. Mas sei quais são as ligações entre eles. De certa forma, o livro é uma coisa muito pensada, mas na sua génese é muito instintiva: “este trabalho só deve ser explicado através de um livro”. Eu olho para um corpus e digo: “isto numa exposição era muito engraçado, mas, na realidade, isto precisa de estar numa estante, ser fechado”.
Pensa muito na recepção do seu trabalho?
Não, isso seria um pouco inibidor. Agora, quero que o meu trabalho seja uma plataforma de pensamento? Quero. Que o pensamento não é estanque? Não é. Acredito que haja outras formas de o ver. Quando alguém mais novo mostra interesse pelo meu trabalho, isso para mim é muito gratificante. Uma coisa é eu conseguir que pessoas da minha idade estejam interessadas. Se consigo descer umas gerações, para mim é gratificante.
É importante tornar acessível o seu trabalho, seja num museu, numa sala de cinema, numa biblioteca ou no online?
Sim, absolutamente. O trabalho é comunicação. Se não é comunicação, não interessa. Um dos lados perversos do mundo da arte é que a própria tecnologia fotográfica, que é uma técnica de reprodução, tenha de ser restringida na tiragem para atingir um preço que permita pagar a renda de casa. Mas para mim isso é uma perversão. Para mim, toda a gente devia poder ter uma fotografia minha pendurada lá em casa. Nem toda a gente quereria, como é óbvio [risos]. Quando comecei com os livros, também foi porque tive a perfeita noção de que os livros são uma coisa muito democrática. São relativamente baratas em relação à obra de arte. Depois, há bibliotecas. E depois podem ser passados de mão em mão. Uma fotografia não pode, no nosso conceito de fotografia actual.
A fotografia tem um tamanho. Uma fotografia, para mim, não é uma reprodução de uma fotografia. Temos sempre esse problema, não é? Porque posso dar-te um postal da Mona Lisa, e toda a gente sabe que é uma reprodução da Mona Lisa, mas dou-te um postal com uma fotografia, e as pessoas dizem “isto é a fotografia”, que não é. Agora, um livro é um livro. Claro, há sempre compromissos, sejam económicos, sejam práticos. Não gosto nada de livros pouco práticos. Há objectos de artistas em que se tem de abrir muitas páginas. Tento que os livros sejam maleáveis. É como a moldura: se está ali a olhar para a moldura, não está a olhar para a fotografia. Se está a ali a olhar para saber como o livro foi feito, não está a olhar para o conteúdo. Eu tento que seja uma coisa muito directa. Sei lá: quando vemos um filme, também não estamos a pensar no projector do filme. Se estamos é porque está alguma coisa errada ou com o filme ou com a sala.
O Daniel viaja não só entre meios expressivos ou suportes expositivos. Muito literalmente, também viaja pelo espaço. O seu trabalho fotográfico testemunha precisamente este wanderlust. O que é que descobre nos quatro cantos do mundo que não encontra entre as quatro paredes do seu quarto?
Não tenho feito muitas viagens nos últimos anos. Por várias razões, uma das quais porque acho que o turismo está a dar cabo deste mundo.
Mas a condição de exílio não é uma espécie de turismo permanente?
Sim e não, porque um viajante não é um turista. Mas cada vez é mais difícil ser viajante. Eu quando viajo posso ter uma alma ou um pensamento de viajante, mas acabo por ser um turista. Também tenho tido relutância em participar nisso, que não teria há vinte anos – não era sequer uma questão. A viagem, à partida, para outros cantos do mundo faz-nos descobrir a nós próprios. O Fernando Pessoa tinha aquela frase: “porque é que vou viajar, se se for à Muralha da China só me vou encontrar a mim próprio?” É verdade.
Mas precisa de lá ir para se encontrar…
Pois… Por outro lado, encontra-se o outro, que é a outra civilização, outra cultura, outra pessoa que nós não conseguimos de facto encontrar… Isto agora tem que ver com os anos que passaram. Já não somos tão permeáveis a isso, porque felizmente, por um lado, temos bastantes imigrantes, infelizmente, por outro, temos refugiados à porta. Já não é como há vinte anos, em que para encontrar uma pessoa de outro país era preciso sair. Mas esse encontro com o outro, essa disponibilidade para o outro só acontece em viagem. Entendemos que as outras pessoas têm uma cultura própria, nada inferior à nossa. Acho que era o Agostinho da Silva que dizia que viajar devia ser uma obrigação imposta aos jovens, porque, de facto, só isso nos permite compreender os outros. Senão, vivemos fechados, para dentro…
Portanto, a viagem sempre teve esse lado de descoberta. Uma vez disse ou escrevi que não sabia se viajava para fotografar ou se fotografava para viajar. Não é por acaso que a indústria do turismo e a indústria da fotografia são paralelas. A existência de fotografias das pirâmides do Egipto fez com que as pessoas tivessem vontade de lá ir – talvez não tivessem se não tivessem visto uma imagem. Eu precisava de razões para fotografar e essas são mais fáceis se todos os dias estiver a ver coisas desconhecidas. Também acho que essa necessidade foi diminuindo. Pego muito menos na máquina fotográfica, salvo para fotografar a minha janela, o que faço todos os dias. Quando pego na máquina fotográfica, sei exactamente o que quero. Naquela altura, pegava mais na máquina fotográfica e sabia muito menos o que queria.
Também houve uma fase em que não me sentia em casa. Até que ponto é que isto estará ligado ao exílio? Estará.
Uma inquietude?
A inquietude de estar num país que não sentia como meu. Até muito tarde não o senti como meu. Daí uma necessidade maior de sair.
Era importante usar a fotografia para resolver isso?
Sim, sim. A questão também que tem que ver com isso e com a janela – que está muito presente no meu trabalho – é o lado diarístico. O lado de fotografar diariamente. É mais fácil fotografar diariamente se alguma coisa nos acontece diariamente. Portanto, se vemos alguma coisa diferente, ou estamos num quarto de hotel diferente quase todos os dias, esse percurso acaba por ser geográfico e não apenas mental.
À medida que foi constituindo uma obra e ganhando visibilidade público-mediática, presumo que a sua obra começou a aprisioná-lo e a condicionar a sua vida tal como essa liberdade de viajar e a espontaneidade que normalmente atribuímos ao fotógrafo. Sente isso?
Sim e também há a sensação de que a fotografia não muda o mundo, de facto. Também houve coisas que mudaram com o turismo, que são concretas. Quando um fotógrafo ia à Índia, em 1990, e depois fazia uma exposição das fotografias da Índia, a maior parte das pessoas que ia ver a exposição não tinha ido à Índia. Havia uma leitura das imagens diferente. Hoje, se for à Índia fotografar e fizer uma exposição da Índia, imagino que mais de metade das pessoas já foi à Índia e a outra metade tem uma informação muito concreta da Índia. Tenho de ter um trabalho muito mais profundo sobre a Índia que é impossível de realizar numa viagem mais ou menos curta. As pessoas também têm muito mais informação visual do que tinham. A relação com as imagens mudou completamente.
Eu posso ir a um país fotografar para mim, mas se decido mostrar o trabalho eu tenho de ter algum posicionamento minimamente consciente sobre porque é que quero mostrar, senão são apenas vistas que eu tirei lá, do outro lado do mundo. É muito bonito. É como o Instagram, que está cheio de fotografias do outro lado do mundo, mas são apenas as fachadas. O que quero ver nas fotografias é o que está dentro das fachadas. Quero ter uma leitura que eu, como turista, não poderia ter. Outra vantagem: se quisermos ter fotografias da Índia, temos fotógrafos indianos, cujo olhar é mais próximo – por vezes demasiado próximo, também é verdade…
É importante para si estar a par do trabalho dos outros fotógrafos ou realizadores?
Sim, apesar de a maior parte da fotografia que se faz, como fotografia de arte, não me interessar. Não me interessa absolutamente – o mal pode ser meu. Não é não me tocar…
Mas vai estando atento, mesmo colocando-se a contrario?
Absolutamente, absolutamente. Mas vou à Paris Photo e a maior parte das coisas é decoração. Enquanto a fotografia não era uma coisa que se vendia, era aferida apenas pela qualidade. Quando a arte se vende bem, a economia passa a aferir. Há excelentes fotógrafos que não mostram, porque não vendem e há péssimos fotógrafos que mostram, porque vendem. Nós vemos o mesmo no cinema: realizadores absolutamente desinteressantes que aparecem todos os anos nas salas, mesmo ao nível dos festivais.