Em 1942, ainda “fresco” do sucesso de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) e logo após a conclusão das filmagens de The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942), Orson Welles aceitou uma comissão da RKO (segundo algumas fontes, uma decisão com mais motivações políticas do que artísticas) para realizar, na América do Sul, um filme que destacasse positivamente a região. Mesclando a ficção e o documentário, Welles concebeu, assim, It’s All True: um tríptico composto por segmentos originalmente intitulados de “My Friend Bonito”, “Carnaval” e “Jangadeiros”, e que ficou inacabado.
A história da sua rodagem – uma genuína “série de infelizes eventos” – foi reportada no documentário, de Bill Krohn e Richard Wilson, It’s All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles (1993). Graças a este título, uma franja considerável de espectadores contemporâneos pode admirar o trabalho desenvolvido por Welles na América do Sul e, particularmente, o resultado do contacto do cineasta com a comunidade piscatória de Fortaleza para “Jangadeiros”; definitivamente, pela sua composição formal (que contou, aliás, com o trabalho de câmara de Joseph Biroc) e face ao que sobreviveu até aos nossos dias, o segmento com maior potencial criativo do filme.
Cinema e sobrenatural, dois pólos que sempre encontraram particular atracção no grande ecrã. Mas com Orson Welles, essa dicotomia ecoava aparentemente no mundo real, alcançava veracidade e plausibilidade sem limites.
Assim, revela-se impossível falar de It’s All True sem referir as diversas atribulações – logísticas, financeiras e, até, de cariz “sobrenatural” – que recaíram sobre Orson Welles para a sua produção. Durante as rodagens no Brasil, e devido à reestruturação administrativa da RKO em 1942, Welles não só ficou sem o direito ao final cut de The Magnificent Ambersons, como viu ser-lhe cortado o financiamento para concluir o seu “projecto brasileiro”. Circunstâncias que, de forma duradoira, pareceram determinar toda a carreira de Orson Welles a partir daquele momento.
Orson Welles, Cursed in Brazil – eis um potencial título para uma biografia do realizador. Na verdade, e por diversas ocasiões, Welles falou dos irremediáveis efeitos da rodagem de It’s All True para o seu percurso artístico. O facto de as imagens filmadas estarem distantes do postal turístico do Brasil que tanto a RKO, como o próprio ditador Getúlio Vargas, esperariam, não ajudou à causa de Welles; muito depressa, o rótulo de autor imprevisível ficaria colado ao seu nome.
Consequentemente, Orson Welles perdeu também o controlo sobre a própria película do filme, muita dela em Technicolor que não chegou a ser revelada, a qual acabaria por ficar armazenada nos cofres da RKO durante décadas ou, como num incidente nos finais dos anos 60 que causa particular arrepio, literalmente atirada para o fundo do Oceano Pacífico, de forma a evitar possíveis acções em tribunal por parte de intervenientes captados, em 1942, pela objectiva de Welles.
Não obstante essas várias circunstâncias, o mais fascinante em torno de It’s All True — e que, para o cinéfilo mais crente, poderá constituir original tema de estudo — reside na convicção, alimentada por Orson Welles, de que as atribulações, projectos incompletos e várias desconfianças que sentiu até ao fim da sua vida, se deveram à maldição que lhe foi lançada por não ter levado o filme a bom porto. Em 1955, para o programa da BBC Orson Welles’ Sketch Book, o cineasta era peremptório — num registo com tanto de sincero como de teatro à la Guerra dos Mundos radiofónica — ao falar da maldição que um feiticeiro vudu, ofendido pela notícia de que It’s All True não iria ser terminado, lhe terá lançado: “And I came back to the office, and found that the [voodoo] doctor had gone, having been told that the deal was completely off. And on my desk, in a script of the film, was a long, steel needle. It had been driven entirely through the script. And to the needle was attached a length of red wool. This was the mark of the voodoo”.
Cinema e sobrenatural, dois pólos que sempre encontraram particular atracção no grande ecrã. Mas com Orson Welles, essa dicotomia ecoava aparentemente no mundo real, alcançava veracidade e plausibilidade sem limites. Se não foi “maldição”, haverá outra circunstância que explique o rol de filmes inacabados e/ou perdidos — Don Quixote (1957-1969), The Heroine (1967), The Dreamers (1980-1982), o próprio The Other Side of the Wind(2018) — que grassa na obra de um dos talentos mais únicos de Hollywood?
Para todos os efeitos (e nosso deleite), sobreviveu material considerável de It’s All True, o que não só permite a progressiva apreciação crítica e académica em torno da obra de Orson Welles, como incentiva a exigência em relação aos muitos metros de película que, nos cofres de nitrato da UCLA, ainda aguardam revelação, preservação e exibição.
It’s All True será exibido no dia 12 de Fevereiro, às 21h15, no Fila K Cineclube na Escola Superior de Educação de Coimbra.