Jia Zhangke pertence a uma rara estirpe de cineastas capaz de modelar o tempo com a precisão de um relojoeiro. O ritmo é fruto de um equilíbrio difícil onde o tempo simultaneamente age enquanto agente invisível ou a galope de um gigante. O porquê desta disparidade entre fluxos na acção prende-se com os objectos dos quais o cinema de Jia Zhangke vive e faz viver. O tempo do sistema económico chinês é substancialmente diferente do tempo ancestral dos homens e por essa razão, esta disparidade entre tempos encontra-se habitualmente em tensão no ecrã.
Desde a sua primeira longa-metragem, Xiao Wu (Pickpocket, 1997), que podemos detectar no cinema de Zhangke uma vontade de documentar duas Chinas, aquela que rapidamente se transforma e se ocidentaliza e a outra que desaparece e que no entanto resiste. Os próprios objectos nos quais as transformações se operam são diferentes, porque para Jia Zhangke é no território que a China muda e é nas pessoas que esta embate. Talvez por isso o plano mais pungente de todo o cinema do realizador, e que atravessa a sua obra, seja o momento onde diversos rostos nos olham frontalmente. Desde a cena final de Pickpocket ou de Tian zhu ding (China – Um Toque de Pecado, 2013), até ao início deste mais recente filme, é a humanidade que em silêncio nos interroga e nos interpela sobre o nosso próprio caminho. A própria utilização deste dispositivo na narrativa é determinante, porque adquire um sentido diferente consoante a sua posição. A crítica duríssima em Um Toque de Pecado, que logo após o episódio do suicídio na fábrica, somos transportados para um teatro de marionetes e é nessa cena final que os rostos nos indagam; é substancialmente diferente desta primeira cena em Jiang hu er nü (As Cinzas Brancas Mais Puras, 2018), onde os rostos se acumulam num autocarro em marcha (do progresso).
Para quem não está familiarizado com o cinema de Zhangke, talvez As Cinzas Brancas Mais Puras seja uma das melhores sínteses de todos os seus elementos.
Outra característica fundamental no cinema de Zhangke é a oposição entre cidade e campo. Habitualmente as suas narrativas têm como centro a China rural, algo típico na trama do melodrama que coloca o artifício da cidade versus a originalidade do campo. No entanto os dois territórios não se encontram estanques e cindidos, pelo contrário, os seus personagens estão em trânsito, forçados a êxodos que ligam lugares e revelam a acção uniformizadora do capitalismo chinês. As vilas típicas que desaparecem em poucos meses para dar lugar a aglomerados de betão moderno, aldeias despovoadas graças ao encerramento de uma exploração ou fábrica, a penetração da cultura ocidental quer nas indumentárias, quer pelo hit musical, são tudo indícios recorrentes no cinema do realizador.
Outro elemento chave é a presença da actriz Zhao Tao, que desde Zhantai (Plataforma, 2000) é o rosto do cinema de Jia Zhangke. Com ela dançamos ao som de “Go West” dos Pet Shop Boys em Shan he gu ren (Quando as Montanhas se Afastam, 2015) ou de “Y.M.C.A.” dos Village People em As Cinzas Brancas Mais Puras, porque o uso de uma canção popular ocidental é crucial à acção na medida em que determina o tempo da narrativa e consequentemente nos alerta para a inevitabilidade da transformação em curso. Em San xia hao ren (Still Life – Natureza Morta, 2006) ou Er shi si cheng ji (24 City, 2008) é com ela a que assistimos ao desaparecimento da cidade de Fengjie ou da fábrica de Chengdu e à impossibilidade de regressar ao lugar do qual partimos. Desde Plataforma a Ren xiao yao (Unknown Pleasures, 2002) que com Zhao Tao as aspirações de juventude dão lugar às desilusões da vida adulta, outro aspecto essencial no cinema Jia Zhangke.
Para quem não está familiarizado com o cinema de Zhangke, talvez As Cinzas Brancas Mais Puras seja uma das melhores sínteses de todos os seus elementos. O encerramento da mina naquela localidade que provoca uma migração em massa dos trabalhadores; o pai de Zhao Tao que luta contra a corrupção e que simboliza a resistência contra o progresso; a figura de Zhao Tao que quer pela sua indumentária, quer pelo seu carácter, se manifesta contra a ocidentalização dos costumes, mas que inconscientemente dança ao som do “Y.M.C.A.”; a presença da máfia que conspurca a índole pura do campo e os seus negócios que alertam para o futuro dos ramos – é o ramo imobiliário que discutem – onde as transformações se vão operar; o fim das ilusões de juventude e a dura realidade da vida adulta, tão visível na história de amor entre os dois personagens principais ou mesmo a questão da tecnologia que da presença do telemóvel termina na omnipresença da câmara de vigilância.