1974. Dois anos volvidos desde o Incidente Asama-Sansô que refreava para sempre as paixões extremistas da juventude de 60. Por cá faziam-se revoluções, colocavam-se cravos à lapela, cantava-se muito; no Japão um manto escuro de indiferença pairava sobre as esperanças e os excessos imaturos daqueles que, durante década e meia, tinham torcido o nariz ao mundo adulto. Nas salas escuras onde esses estudantes iam procurar asilo mental de uma realidade que sempre os esmagara, projectavam nos heróis dos fantasiosos ninkyo eiga (filmes de honra e galhardia) a justiça social que tanto apregoavam nas ruas e nas universidades. Um golpe letal de katana do herói Ken Takakura a um qualquer chefe yakuza, suíno e avarento como um capitalista de suspensórios, parecia reflectir nos olhos ansiosos dos espectadores flores vermelhas de esperança militante. “Vai, Ken! Mata-os todos. Ensina-nos a matar”. A ira não é, nem nunca foi, um pecado mortal no Japão. É, por excelência, o modo como se resolvem os bloqueios existenciais e as inaptidões dos indivíduos face ao mundo. Portanto, não é de estranhar que uma certa arrumação e controlo, uma certa higiene, impere sempre na maior e mais surpreendente acção caótica. Um grupo de terroristas do Exército Vermelho sequestrando civis indefesos numa cabana nas montanhas é assim tão diferente de um jovem e alucinado kamikaze prestes a chocar com o avião numa embarcação americana? Por mais de três décadas, o Japão via-se obrigado a sorver e, depois, rejeitar imagens da mais indesculpável radicalidade. Do vil nacionalismo imperial ao imberbe esquerdismo da contra-cultura. “Que faremos nós com esta espada?” “Para onde vai a violência quando a violência acaba?” E voltamos a 1974, ano de viragem do cinema japonês, o ano dos sobreviventes dos destroços.
A indústria cinematográfica nipónica, que vinha desde os anos 60 assistindo a um decréscimo significativo de público, procurou renovar-se segundo a lógica do Barão de Münchhausen (para sair do lamaçal, puxe-se pelos próprios cabelos) ou de João Pinto (quando se está a beira do abismo, só nos resta dar um passo em frente). Quer isto dizer que, para rivalizar com a crescente popularidade da televisão, os estúdios de cinema optaram por oferecer aquilo que, em casa, os japoneses ainda não conseguiam ter acesso. Sangue e sexo ao longo da década de 60 foi o cinemascope dos anos anteriores. Ambas são tentativas de “alargar”, temática no primeiro caso e visualmente no segundo, uma produção que se queria distanciar da oferta televisiva, mais caseira e quadrada (nos dois sentidos do termo). Claro que as vanguardas vindas de um recém-nascido cinema independente não deixaram de causar os seus estragos nas fórmulas dos estúdios. O radicalismo político, o arrojo estético, os experimentalismos formais contagiavam os obreiros e incitavam à rebeldia. Apesar dos mártires em ocasiões passadas (isto é, a geração da nûberu bâgu em sentido estrito e lato), esse tipo de comportamento, dobrados os anos 60, encontrava agora alguma aceitação pela máquina industrial. A Nikkatsu, estúdio que em 1967 despedira Seijun Suzuki pela incompreensibilidade das suas películas, dedicava-se em 1971 à produção exclusiva de uma nova linha de filmes eróticos apelidados roman porno (“pornografia de romance”), termo inspirado no francês para perfumar a vulgaridade de concupiscências várias. Era a forma do estúdio se apropriar da linguagem do pinku eiga feito, a maior parte das vezes, de maneira independente ao longo dos anos 60 e com surpreendentes resultados de bilheteira dado o baixo orçamento de cada projecto. Até 1988, altura em que o video killed the roman porno e em que o onanismo já se fazia frente ao pequeno ecrã, a Nikkatsu continuou ininterruptamente a lançar nas suas salas dezenas (chegando à casa das centenas) destas produções por ano. A quase indistinção entre artistas subversivos e pornógrafos manhosos e assalariados é, pois, digna da confusão de uma década em que o cinema paradoxalmente se virava para os nichos em busca de uma nova popularidade apenas para quase falir de novo. É também o exemplo feito de uma era tatuada com o trauma das utopias falhadas. E, sabemos que, no crepúsculo do desespero, o corpo (penetrado ou decepado) é um dos únicos confortos do voyeur. Eram os anos 70 entrando de rompante.
Uma figura específica concentra todos estes paradoxos, suspensa entre eras como um anjo destruidor. O que pensar de um cineasta que só começou a filmar aos 40 anos, em 1968, quando o cinema se interligava às questões da actualidade; quando, por exemplo, a Art Theatre Guild iniciava a sua primeira verdadeira produção com Kôshikei (Morte por Enforcamento, 1968) de Nagisa Ôshima, e outros tantos, endiabrados, libertavam os olhos dos tripés, esperando fundir-se com o calor das ruas? O que pensar, portanto, desse silêncio prolongado, dessa mocidade ignota e do alheamento artístico de Tatsumi Kumashiro quando se enclausurava num strip-club mal iluminado, tristemente perseguindo – através dos planos demorados de uma câmara clínica, sombria, sem assobios e piscares de olho – as curvas da novata Hatsue Tonooka, interpretando uma dançarina introduzida num mundo de exploração masculina em que lhe prometem ser rainha?
Este é um cinema que afirma que, no que à matéria erótica diz respeito, as divagações embriagadas do Senhor Fernando da tasca são tão válidas como as páginas esculpidas por Jun’ichirô Tanizaki ou pelo Marquês de Sade.
Kaburitsuki jinsei (A Thirsty Life, 1968), a despeito dos toques imamurianos (em grande parte graças ao mesmo director de fotografia, Shinsaku Himeda) deixa já antever o cinema roman porno vindouro de Kumashiro na Nikkatsu. Uma tentativa de fazer fina antropologia com os “ofícios mais antigos do mundo”, revelar o carácter (no sentido duplo de índole e aparência ficcional) daquelas que ganham a vida descobrindo os seios, mexendo as ancas para velhos sebosos e desdentados, cuspindo bolas de pingue-pongue de orifícios inusitados, ou trocando o corpo por um maço de tabaco. E fora dos quartos de love-hotels pomposos com camas redondas e giratórias, e fora dos palcos a cheirar a humidade, suor, com purpurinas a dourar a imundice do chão pastoso, não parece haver mais nada interessante para se filmar. Os exteriores de, por exemplo, Ichijô Sayuri: nureta yokujô (Sayuri Ichijô: Wet Lust, 1972) pretendem-se caóticos, desorientados por uma câmara de flâneur que precisa de direcções apenas para saber onde se vai perder. As ruas são anexos labirínticos que dão a quartos com camas ou salões onde decorrem espectáculos brejeiros de striptease. As cidades, sendo túneis a céu aberto no intervalo das camas, fazem que o real se encontre por debaixo dos lençóis, entre gemidos e canções folclóricas que escaparam ao registo dos manuais etnológicos. E que místicos e profundos são esses cânticos que sempre nos assaltam em Kumashiro! Este é um cinema que afirma que, no que à matéria erótica diz respeito, as divagações embriagadas do Senhor Fernando da tasca são tão válidas como as páginas esculpidas por Jun’ichirô Tanizaki ou pelo Marquês de Sade – a Justine do último seria livremente adaptada no delirante Onna jigoku: Mori wa nureta (Woods Are Wet, 1973) e, mais tarde, A Chave do primeiro seria transposto no homónimo Kagi (The Key, 1974). Portanto, o que fazer da geração revolucionária que queria, por contraste, expandir o domínio das ruas para os quartos? Que queria abolir todos os resquícios de egoísmo subjacentes ao esquema existencial da propriedade privada? Pois bem, deixemos os cães ladrarem que a caravana niilista de Kumashiro vai passar.
Não existem promessas de felicidade, nem sequer sonhos frustrados (ou molhados), nos jovens capturados pela objectiva de Kumashiro. Habitualmente nos seus roman porno eles encontram-se enrascados, fugindo de qualquer ameaça, encrenca, ou somente de eles próprios. E praticam o coito. Muito. Em Nureta kuchibiru (Wet Lips, 1972), primeiro road-movie desencantado, a fuga dos personagens e o seu crime nada tem que ver com a contestação da autoridade ou o questionamento mais auto-crítico e reflexivo de muitos pinks de Kôji Wakamatsu – veja-se, por exemplo, Kyôsô jôshi-kô (Running in Madness, Dying in Love, 1969) entre outros. Um certo mau génio, uma certa sacanice e uma falta de ideais caracteriza estes forasteiros que se exprimem como ginastas cujo silêncio é poesia. No entanto, essas presenças declaradamente físicas também não deixam grande espaço para as alcunharmos de “rebeldes sem causa” – como encontraríamos no ciclo de filmes taiyozoku no final dos anos 50 de Kô Nakahira a Kon Ichikawa ou até mesmo nas produções da Shôchiku nûberu bâgu de Nagisa Ôshima a Masahiro Shinoda – pois têm uma dimensão patética que os impede de se fazerem à pose. Há aqui mais para temer do que para admirar, a despeito de toda a absurdidade. Koibito-tachi wa nureta (Lovers Are Wet, 1973) é paradigmático neste ponto. O seu protagonista, um jovem transportador de películas de um cinema erótico da província, move-se e fornica como um animal faminto. Adivinhar as suas intenções revela-se tão infrutífero como pescar com as mãos. Acompanhado de uma guitarra e gaita de beiços, os versos que vão sendo desprendidos em cantigas improvisadas são tão devastadoramente aleatórios como a sua conduta moral e sexual. O encontro com outro casal despoleta mais uma errância sem fim à vista, uma ménage à trois nas praias desertas ecoando o som hipnótico das gaivotas (som obsessivo para Kumashiro). A atmosfera não é de excitação ou celebração dionisíaca, mas de um inexplicável e vazio ennui, o que contraria todas as leis do cinema erótico. Estes são corpos que se satisfazem mais na corporalidade do que na sexualidade. São corpos perdidos que se encavalitam, que gatinham e saltam ao eixo (outras obsessões do cineasta como veremos mais tarde), que desaparecem com a mesma facilidade que nos assaltam. Não há nestes jovens nada de romântico, nada de desejável nem nas ocasiões mais libertinas em que um qualquer espectador se poderia projectar com uma mão no bolso. São sobreviventes dos destroços, quedando-se mudos e respirando em cima uns dos outros, aos rodopios, até o destino se encarregar de os esfaquear. O erotismo, sendo a arte do fascínio dos corpos, só se pode transcender aqui se for declinante tal e qual o sol posto.
Mas chegado a 1974, o ano mais prolífico para Kumashiro (somente nesse período realizou seis películas), uma nova oferta de trabalho surgia. A Tôhô pedia-lhe que adaptasse o best-seller do escritor Tatsuzô Ishikawa para o grande ecrã, oportunidade para fugir dos constrangimentos de formato que o cineasta se vinha entretendo a desmantelar na Nikkatsu – não mencionámos a questão da (auto)censura jocosa e provocatória exercida nos seus roman porno e sobre a qual escrevemos noutra ocasião. Baseado em factos verídicos, Seishun no satetsu, originalmente publicado em 1971 e traduzido literalmente por “O Falhanço da Juventude”, narrava o crime de um estudante de direito, Kenichiro Eto, que assassinava a sua amante e pupila Tomiko por ter a expectativa de se casar com uma outra rapariga, de famílias abastadas e filha do tio que o sustentava. O drama de disparidades sociais, reminiscente de An American Tragedy de Theodore Dreiser escrito nos anos 20 e adaptado ao cinema várias vezes, punha em evidência os motivos que levavam o jovem a cometer um acto de tamanha repugnância: um ardente desejo de se integrar numa sociedade de costumes frígidos onde nem os casamentos são genuínos, as mentiras imperam e apenas a escalada na hierarquia social é sinónimo de sucesso pessoal. Ishikawa parecia tecer um comentário sobre a influência invisível dessa atmosfera perniciosa na mente de um deslumbrado estudante universitário com sonhos de se aburguesar. No limite, ele seria responsável apenas por metade do seu assassínio, sendo que a parte restante poderia muito bem ser implicitamente imputada aos costumes desvirtuados do Japão pós milagre económico, um país enamorado por noções de lucro fácil e à deriva moralmente. O tema parecia convir a Kumashiro, ele que tinha pintado uma imagem tão inaceitável da juventude nos dois anos anteriores, porém pouco ou nada lhe pareciam interessar os contornos mais demarcadamente socialistas do romance, a começar pela acepção que a riqueza corrompe em absoluto ou que, a título de exemplo, ao milieu social pudesse corresponder, por si só, a atribuição de uma identidade. Optou, como sempre, por filmar sem quase recorrer a juízos causais, paredes meias entre o sorriso de um poeta decadente tresandando a álcool e o encolher de ombros de um filósofo cuja casa é um barril. Responsável pela escrita do argumento, Kazuhiko Hasegawa, figura mais tarde associada ao cinema da rebeldia juvenil, subscrevia integralmente a visão do mestre. Seishun no satetsu (Bitterness of Youth, 1974), caracterizado pelas misteriosas coreografias dos seus actores, uma câmara longínqua quase desajeitada, uma montagem desorientadora e uma falta deliberada de acuidade psicológica ou comentário social, representa muito mais o rigor mortis de uma era do que a tentativa de ilibar, condenar ou analisar quem quer ou o que quer que seja. Quem não perdoou esta visão de sobrevivente dos destroços foi o próprio Ishikawa que, conta-se, saiu irado a meio da estreia por não se conseguir minimamente rever, a si e à obra, no filme.
Aludimos já ao facto da poética kumashiriana se jogar no minucioso detalhe dos gestos dos seus personagens em idiossincráticas coreografias corpóreas (relembre-se o artigo A New View of Porn: The Films of Tatsumi Kumashiro de William Johnson no qual se descrevia esta imagem de marca empregando o termo “ginásticas de Kumashiro”), mas o que ainda não ficou explícito é que é precisamente esta fisicalidade que distorce, uma e outra vez, as intenções mais especulativas da fonte literária. Há um carácter quase chaplinesco no modo como os corpos são enquadrados e desestabilizam levemente os planos com os seus movimentos mudos, demorados e persistentes.
Seishun no satetsu, caracterizado pelas misteriosas coreografias dos seus actores, uma câmara longínqua quase desajeitada, uma montagem desorientadora e uma falta deliberada de acuidade psicológica ou comentário social, representa muito mais o rigor mortis de uma era do que a tentativa de ilibar, condenar ou analisar quem quer ou o que quer que seja.
O primeiro plano de Seishun no satetsu apresenta-nos logo um Eto pantomimeiro que, após apagar um cigarro contra a parede, desliza de patins e ergue, com dificuldade, duas cadeiras de praia num balcão abandonado que não terá qualquer relevância diegética no futuro. Os esforços do rapaz, a sua trapalhice natural em se equilibrar e executar várias tarefas em simultâneo não poderiam causar mais estranheza se a intenção era apresentar um criminoso. Pelo contrário, neste plano-sequência há uma empatia imediata pela fragilidade quixotesca deste corpo em esforço. Corte abrupto. Eto, agora vestido com o equipamento de râguebi, treina uma placagem frontal com um colega de equipa. Outro corte. O colega torna-se numa placa metal de um corrimão e Eto vai agora deliberadamente contra o objecto inanimado. De seguida, faz o mesmo à porta de casa de um amigo, apresentando-se e pedindo para entrar. Estas placagens recreativas, que continuarão ainda no plano seguinte quando o tal amigo lhe abre a porta e revela que acabou de perder a virgindade com uma pessoa especial, cimentam ainda mais decisivamente a imagem de um protagonista preso na sua surdina. Eto só é capaz de chocar com o mundo se esse choque for simulado, se corresponder a um treino, a um affair irresponsável ou a uma brincadeira entre comparsas – ainda no último plano mencionado, são as virilhas dos dois amigos que chocam repetidamente uma contra a outra numa espécie de mecanismo de substituição do prazer carnal quando a notícia da perda de virgindade é contada. É assim que Kumashiro, apenas em quatro minutos, lança as bases da sua metodologia, porque tudo isto é muito mais revelador da sua estilística do que um mero processo de construção de personagem. Filmar corpos que só se têm a si como meios de expressão, mas que paradoxalmente estão encurralados por si mesmos, não conseguindo levar a sua via até às últimas consequências. Todo o processo subsequente corresponde a um pseudo-desbloqueamento melancólico quase forçado pelas circunstâncias e que não equivale nunca a uma libertação real, como veremos a seguir. Só assumindo estas condições (com estas palavras ou com outras quaisquer), é que podemos comover-nos com esta dimensão intrincada do gesto em todo o universo kumashiriano.
Portanto, à semelhança da abertura de Seishun no satetsu e dos outros arquétipos da juventude em filmes anteriores do realizador, tudo aqui é perpassado por um enrascanço com potencial batético, o que contrabalança o negrume trágico de toda a proposta. O roqueiro Kenichi Hagiwara, que interpreta Eto, tem a proeza de corporizar as fragilidades (físicas) de um sacana. A sua postura e mímica corporal adivinham sempre uma cringe face constante que Kumashiro raras vezes filma em grande plano. Uma existência levemente pesada (ou será pesadamente leve?) que trauteia “Matsushima”, uma velha canção de pescadores, como mantra de uma vida despreocupada, apesar das preocupações todas eventualmente lhe virem bater à porta e começarem a sobrecarregar-lhe a cachimónia. São elas os fantasmas do passado activista estudantil que ele caracteriza agora como entediante; a preferência por uma entrega afectiva que se limita ao calor dos lençóis, susceptível de gerar vidas indesejadas (como aliás acontece); e as promessas feitas à filha do tio cujo cumprimento sabe-se desde o princípio, ser pouco provável. Estamos já longe, muito longe, do estereótipo do anti-herói quando nos lembramos do pathos retorcido do plano dos patins e na inapetência física e disposicional para o multi-tasking. Eto, sempre com o rosto entalado, não consegue dar conta de nenhum recado. Como poderia ele querer mudar o mundo se nem sabe propriamente quem amar? De simulação em simulação, de amante em amante, de vazio em vazio, o real encarregar-se-á de o fazer curvar, ou melhor dizendo, gatinhar. E é este momento de desbloqueio que corresponde ao clímax na estrutura narrativa do romance de Ishikawa, quando a acumulação de embrulhadas se decide vingar do seu procrastinador, habituado a empurrar as desilusões com a barriga. Em Kumashiro, porém, não é o assassinato de Tomiko que realmente importa, mas a sua preparação ritualística naquele que é, sem dúvida, um dos mais poderosos momentos de todo o cinema japonês e que a ninguém poderá deixar indiferente. Falamos, certamente, da sequência na neve, local onde Eto e a sua pupila consumiram primeiramente a relação que agora ele quer terminar, para sempre.
É necessário, desde já, resgatarmos plenamente o sentido, atrás mencionado, das “ginásticas de Kumashiro” para esta sequência que depende exclusivamente dos corpos dos seus actores. Um périplo desolado pela montanha mostra os dois amantes vagueando um atrás do outro, cabisbaixos e prestes a fazer as últimas despedidas. Talvez porque a melancolia a dois não dura tanto como a de um, entrelaçam-se agora as mãos na expectativa de algum conforto e segue-se a caminho de nenhures. Ela pergunta: “Para onde vamos?” Ele queda-se mudo, fitando nada. Sem aviso prévio, Tomiko salta para as costas de Eto e nessa dependência física parece assumir-se uma ligação quase paternal de quem quer terminar a relação para com quem quer permanecer nela. Carregando Tomiko às costas como uma criança, Eto cansa-se e ela volta a ficar com os pés na neve. Tomiko curva-se e convida-o a subir para as costas dela. Eto automaticamente debruça-se, aceitando o papel pertencente antes a Tomiko. A relação de poder, anteriormente de subordinação, passa agora a equilibrar-se num esforço de coordenação, nem que seja por breves instantes. O amor de ambos é mútuo, mas também a sua vontade de morrer. Para Eto, esta é mais uma simulação, um desejo passageiro, só que para Tomiko não. O casal vai repetindo obsessivamente as mútuas cavalitas, a despeito das diferentes resistências, específicas a ambos os sexos – é no esforço dos corpos, como vimos, que reside toda a catarse no cinema de Kumashiro. No final, Eto já gatinha como um servo, rendido a uma Tomiko que o cavalga. Os dois acabam deitados, numa intimidade a céu aberto. Abraçam-se como dois cadáveres apaixonados. Deslizam na neve. Despem-se e celebram com a carne a famigerada “aprovação da vida na própria morte” ecoada por Georges Bataille no seu tratado sobre erotismo. Irrompe a música extática de Takayuki Inoue com sinos e coros angelicais, reforçando o sentimento de uma união que transcende espaço e tempo. Só resta a Tomiko o desejo de morrer juntamente com Eto e a Eto o desconforto de ter de assumir uma nova responsabilidade, um novo encargo – não é por acaso que o plano dos patins é retomado depois de feito o amor e de ambos terem finalmente conhecido a despersonalização. O jovem universitário não consegue morrer. Incapaz de se entregar a qualquer coisa de definitivo, ele não consegue fazer nada.
Estas são as implicações mais profundas do crime de Eto: a fuga da possibilidade de um heroísmo trágico assegurado pelos sonhos de união na morte da doce Tomiko. O seu niilismo passivo supera, mesmo que inadvertidamente, o mais literário fatalismo: afinal, esses seres dormentes dos anos 70 já não precisam do pulsátil dramatismo de Shakespeare ou Monzaemon Chikamatsu. Agora que o nosso olho já se encontra treinado para absorver toda a complexidade dos corpos kumashirianos, note-se como, a partir daqui, se comportará Eto. Caminhará com segurança pela última vez enquanto leva o cadáver gélido de Tomiko às cavalitas (na relação agora unilateral de um corpo vivo para com um morto) e, depois, lhe rouba um último beijo – por excelência, a simulação da eternidade do amor que ele não conseguiu acompanhar. As três sequências seguintes de “regresso à realidade” são clinicamente construídas: Eto visita o bebé recém-nascido do amigo das primeiras cenas, Eto casa-se com a filha do tio e, finalmente, Eto brinca com a sua nova noiva. Em todas, ele começa ou acaba tombado no chão, de gatas derrotado pelo mundo. Primeiro, aos gritos (de angústia dissimulada) com um bebé (o bebé projectado de Tomiko) em cima das costas, depois rastejando bêbado por entre as pernas dos convidados no dia do seu próprio casamento, e, por fim, enrascado com o déjà vécu do peso de uma (nova) amante às suas cavalitas. É precisamente com o freeze-frame do olhar desconsolado de Eto que Seishun no satetsu termina, novamente com o personagem desmaiado no chão após a placagem metafórica de um detective que o incrimina. Perto do solo, perto da tumba e do inferno, afectado severamente pela gravidade, Eto jamais se conseguirá levantar. O seu corpo desbloqueou-se para se bloquear de novo, desta vez para sempre. Nesse congelamento abismal, encerra-se o espírito de um tempo de incerteza, impotência e destroços. Escreveu uma vez Nagisa Ôshima que a pergunta de como se morre nos anos 70 escondia uma mais decisiva, a de como se consegue viver nos anos 70. Tatsumi Kumashiro, recorrendo só à poesia silenciosa dos gestos alheios, apontava para a resposta. Uma resposta desagradável mas certeira.