Era a rodagem de Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994) de Abbas Kiarostami, onde trabalhava como assistente um então imberbe Jafar Panahi. O seu primeiro desafio era reparar, rapidamente, uma casa parcialmente destruída por um sismo para um plano. Fê-lo em tempo recorde. Kiarostami, com a confiança conquistada pela prova da dedicação do futuro realizador, convidou-o, certo dia das filmagens, a ir com ele numa curta viagem de carro. Antes de começarem, o mentor (é assim que Panahi designa o cineasta veterano em entrevistas) deu ao aluno um lenço para as mãos, pedindo-lhe para com ele cobrir os olhos. Fizeram-se à estrada. Quando pararam, o primeiro ajudou o segundo a sair do carro. Destapou-lhe a vista e, diante deles, surgiu a majestosa paisagem que constitui o plano final do filme que faziam. A um Panahi maravilhado, disse Kiarostami: “É a minha visão. É como vejo este lugar.” A experiência, escreveu Panahi muito mais tarde, ensinou-lhe a importância de um realizador ter uma “visão” e de como precisa de desenvolvê-la. Ficariam amigos depois da rodagem e voltariam a colaborar profissionalmente mais tarde, com Kiarostami a escrever os argumentos de dois filmes de Panahi: Badkonake sefid (The White Balloon, 1995) e Talaye sorkh (Sangue e Ouro, 2003).
Se rokh (Três Rostos, 2018), mais do que ser o quarto filme clandestino feito na conhecida proibição governamental de 20 anos de Panahi em estar envolvido na actividade cinematográfica, é o seu primeiro desde a morte de Kiarostami, em 2016. É talvez por isso que nos pareça, para além de mais um intrépido manifesto de humanismo da parte do cineasta, uma belíssima homenagem ao seu mentor pela invocação indirecta de vários dos seus traços e filmes. Neste road movie feminista, politicamente alegórico e com a sua dose de humor, a actriz consagrada Behnaz Jafari parte com o próprio Panahi para um lugar remoto do Irão, com a finalidade de averiguar o estado de uma rapariga local que, aparentemente, se suicidou depois da família não lhe permitir seguir uma carreira na representação.
Lembram-nos Kiarostami aqueles planos no interior do automóvel, as paisagens onde a figura humana se perde, os enquadramentos planimétricos com as personagens diante de casas, e principalmente a invocação de várias temáticas e aspectos narrativos atribuídos ao falecido realizador: o suicídio [que, discutido numa longa viagem sobre quatro rodas, remete inevitavelmente para Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1997)]; uma viagem ao Irão rural por personagens urbanas, dando origem a vários momentos de retórica com habitantes locais – uma idosa deitada numa cova, o dono de um touro ferido no meio da estrada, um homem que quer o prepúcio do filho enterrado – sobre as tradições, regras, costumes e superstições da comunidade que visitam [Bad ma ra khahad bord (O Vento Levar-nos-á, 1999)]; a intersecção entre ficção e realidade, arte e vida, com os actores a interpretarem-se a si próprios [Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990)]; até a própria intriga de um cineasta em busca de uma personagem desaparecida era já a premissa para o segundo filme da trilogia Koker, Zendegi va digar hich (E a vida continua, 1992). E, como em Kiarostami, a estrada de Se rokh é um mundo à procura de ser compreendido por trás do volante, uma vereda sinuosa onde diálogos filosóficos são acompanhados pelo som dos pneus que desbravam a terra batida.
Como em Kiarostami, a estrada de Três Rostos é um mundo à procura de ser compreendido por trás do volante, uma vereda sinuosa onde diálogos filosóficos são acompanhados pelo som dos pneus que desbravam a terra batida.
Ponhamos Kiarostami de lado para falar de Panahi. Em In film nist (Isto Não é Um Filme, 2011), o realizador filmava-se a falar de um argumento que nunca chegou a entrar em fase de produção, onde uma rapariga que tinha sido admitida numa faculdade no campo das artes estava interdita pela família de prosseguir a sua carreira académica, levando-a a considerar a possibilidade de suicídio como única escapatória. Questionamo-nos até que ponto esse argumento é retomado em Se rokh, dado que a rapariga que aparentemente se suicidou fê-lo após a família impedi-la de se inscrever no conservatório, colocando-a numa situação igual de impotência, sendo o ponto de partida para um dos temas centrais da obra do cineasta: a opressão sofrida pela mulher no Irão atávico, patriarcal e reaccionário, como no claustrofóbico Dayereh (O Círculo, 2000) ou no rejubilante Offside (Offside – Fora-de-Jogo, 2006).
É sob este tipo de restrições conservadoras da sociedade iraniana a que surgem associados os 3 rostos do título, distanciados geracionalmente, unidos pela ambição ou concretização de uma carreira na representação: o da adolescente suicida, ainda em fase de aprendizagem; o de Jafari, que está no auge do seu percurso profissional; e o último (oculto do filme inteiro, vendo-se apenas a personagem em silhueta ou ao longe), o de uma actriz anterior à revolução que se retirou para aquela região, agora reformada e a viver em isolamento. Vale a pena recuperar o que Panahi disse numa entrevista sobre as 4 mulheres de Dayereh: “Tentei implicar que as quatro eram na realidade a mesma (…), num curto período de tempo, ficámos aptos a cobrir um longo período da vida de uma mulher, através da representação de quatro mulheres diferentes em distintas fases da vida.” É então perfeitamente assumível que Panahi esteja aqui a abordar uma estrutura semelhante, onde os 3 rostos são na realidade o mesmo em diferentes etapas cronológicas, questionando até que ponto uma geração não poderá antecipar o destino da sua sucedânea, passado, presente e futuro de uma mesma identidade feminina a passar pelos processos de repressão, idolatração e ostracização, num país paradoxal onde a figura da actriz é simultaneamente objecto de menosprezo e reverência.
Apesar de todos os embargos e limitações, é impressionante como Panahi não deixa de ter uma mise en scène inspirada. Por exemplo, aquela extraordinária panorâmica de 360º perto do começo que, no seu jogo de escalas, luzes e movimentos, vai seguindo Jafari a deambular por aquele terreno que lhe é estranho, deixando palpável o seu estado de incerteza, confusão e ansiedade, ao mesmo tempo que salienta, desde o início, o elemento feminino como o central para o filme inteiro. Igualmente interessante é o recurso ao plano subjectivo do passageiro a olhar pelo pára-brisas no decorrer da viagem, um enquadramento instável que nos recorda do ponto-de-vista do estrangeiro, do “estranho” num território que vai paulatinamente descobrindo.
Tal como acontecia em Taxi (Táxi de Jafar Panahi, 2015), é justamente pelo pára-brisas que veremos o final, aqui um desfecho sereno que, na sua aparente simplicidade, acarreta um significado simbólico e impacto emocional ao nível dos grandes mestres. Que bonita que é esta maneira de se despedir das personagens ao vê-las a caminharem para o longe, sabe-se lá para onde, sabe-se lá porquê, até desaparecerem de vista. É a emancipação a ser conquistada pela reunião de duas mulheres de gerações diferentes? Uma caminhada lenta em nome da liberdade, rumo a um futuro promissor fora das fronteiras daquela região repressiva? Talvez seja tudo isto ou coisa nenhuma, tal é a ambiguidade do melhor cinema iraniano, a permitir as interpretações que cada um quiser. Quanto a nós, preferimos ver algo tão simples quanto isto: Panahi a dizer um último adeus a alguém que o marcou profundamente, dado pela imagem de uma aluna a correr para a sua mentora, e juntas a fazerem-se à estrada, com nada que as leve a não ser o vento.