Cruising designa a procura de sexo gratuito, consensual e anónimo, praticado entre homens em espaços públicos: parques, matas, praias e parques de estacionamento. Mas, cruising é também um deambular de carro, a baixa velocidade, a designação das rondas policiais. Na abertura de Cruising (A Caça, 1980), dois polícias fazem a ronda, enquanto no passeio há uma veloz circulação de aglomerados de homens de cabedal: a conversa entre os dois polícias anuncia uma cidade (New York) prestes a explodir, as sombras dos homens, como máculas, surgem como contra-campo de uma nostalgia, de uma infância em que aqueles dois homens jogavam futebol naquela mesma rua. A conversa explicita dois homens incapazes de viver fora do trabalho, um dos temas que percorre muita da obra de Friedkin, com dinâmicas familiares problemáticas, e a cena termina com os polícias a obterem favores sexuais de duas travestis. As tonalidades azuis, das fachadas e dos carros, fazem o raccord com as roupas e as luzes dos mesmos tons numa cave, onde homens de cabedal e outros seminus, se entregam à dança, com os jogos de luz e de escala de planos interessados no calor, no suor, no detalhe e na potência dos corpos. O “engate” entre dois homens enfatiza o poder dos corpos, para após o sexo, o primeiro assassinato – à facada, como uma continuação da penetração, em forma de punição – assumir as fragilidades do corpo: enquanto a faca se afunda, o assassino verbaliza: “tu obrigaste-me a fazer isto”. Está apresentado o assassino em série, um monstro social tal como foi contextualizado na conversa entre Friedkin e Lang, que integramos na caçada anterior.
Em To Live and Die in L.A. (Viver e Morrer em Los Angeles, 1985) há grandes carros que atravessam a cidade como cavalos, uma permanente presença de estradas e linhas de comboio, um western na cidade, a céu aberto, que opõe dois homens, Peterson e Dafoe, em que apenas o lado da lei os distingue, não os métodos nem a insanidade das acções: um policia marginal, que conduz no sentido inverso, que testa a tensão de um cabo ao saltar de uma ponte quando o personagem nos é apresentado; Dafoe determina ligações entre o crime e o submundo da arte e, como se fosse um nazi de Lang, entrega-se a uma vontade de destruir, de incendiar o mundo, que ele antecipa simbolicamente, queimando cada quadro que pinta. Dois idiossincráticos, incapazes de estabelecer relações, de amizade e de intimidade, fora do trabalho (o detective dorme com a informadora): apenas Peterson possui as habilitações para caçar Dafoe, como dois irmãos desavindos que se irão autodestruir, mas que deixarão restos de chamas, substitutos para iniciar um novo ciclo de corrupção.
Rampage (1987) recebeu o curioso titulo português “O Dedo da Justiça”, num filme que vive dessa dualidade, da chacina, da fúria dos eventos perpetrados por um dos demónios sociais de Friedkin, e da forma como o estado e a justiça lidam com ele, entre os que procuram condená-lo à morte, impondo uma leitura política ao processo, e os que tentam entendê-lo, enjaulá-lo para o dissecar, para encontrar a essência do mal. Com um guião que recorreu a eventos reais ocorridos no dia de natal de 1986, o plot inicia-se com Reece (Alex McArthur) na compra de uma arma, que recebe como um presente, após o preenchimento de um simples formulário. Reece percorre calmamente uma zona residencial de um subúrbio da Califórnia e escolhe uma casa ao acaso, para depois liquidar uma família, num misto de serenidade e frieza, com a árvore de natal em fundo. Friedkin corta os planos da matança com imagens de uma cerimónia cristã, que termina com a comunhão, sendo que só depois saberemos que as mulheres foram retalhadas, que Reece lhes retirou os órgãos vitais (isto não é mostrado, em mais um ensinamento de Lang). É o sangue das vitimas que Reece precisa, que constitui a sua cura: abundam os planos do demónio a banhar-se em sangue, numa clara equivalência à iconografia redentora do sangue de Cristo. Friedkin define um triângulo na construção do ninho de onde saiu Reece: o meio familiar, com um pai ausente e uma mãe desequilibrada, interpretada por Grace Zabriskie, que dois anos depois será a mãe de Laura Palmer em Twin Peaks; a violência como quotidiano de uma nação, assente numa tradição que permitiu conquistar e ocupar um território vasto, com a dispersão e o uso de armas como um direito inalienável; e, finalmente, a religiosidade, que se liga com o anterior, na aliança do estado com Deus (a presença da Bíblia na tomada de posse do Presidente dos EUA subsiste), que Friedkin cruza com uma religiosidade demoníaca, a presença de símbolos nazis surgem misturados na cave com iconografia cristã e entranhas humanas em frascos.
Só com o auxílio das câmaras, do valor e da exactidão dos registos de imagens e de sons, é possível perseguir a verdade.
A segunda metade de Rampage ocupa-se do julgamento de Reece, com Friedkin a parecer interessado em inclinar o filme a favor da posição do estado, atribuindo o protagonismo ao procurador que pretendia condenar à morte Reece, impedindo que fosse declarado inimputável (por insanidade) e talvez seja esta uma das razões do insucesso crítico e de público do filme, pois grande parte das vezes Hollywood alinha pela ala progressista, pela imposição da garantia dos direitos dos réus, nomeadamente quando está em cima da mesa a pena de morte. Um dos argumentos usado no julgamento volta a lembrar-nos a conversa de Friedkin com Lang, quando uma das testemunhas é colocada perante uma interrogação: os nazis seriam considerados loucos (ou seja, inimputáveis) ao abrigo das leis da Califórnia, pelos actos de sadismo que cometeram contra os judeus, ou a organização e intencionalidade de tais actos (a exemplo do que a testemunha pretendeu equiparar à chacina de Reece) demonstram capacidade de distinguir entre o bem e o mal e, por isso, uma assunção de culpa de acordo com a lei. Do outro lado, a defesa expressa uma das obsessões de Friedkin, a de analisar os demónios, no recurso à infalibilidade da máquina, para lhes estudar cientificamente os cérebros e descobrir uma vacina para o mal.
Friedkin avisou-nos, numa entrevista aquando da estreia de Rules of Engagement (Compromisso de Honra, 2000), que em certos contextos “há uma linha ténue entre um herói e um homicida”. Mais um par de homens, Tommy Lee Jones e Samuel L. Jackson, que no prelúdio do filme estão dentro do caldeirão do Vietname (1968) e têm de lidar com um massacre de duas unidades de tropas americanas, com a memória de Jones a assinalar o seu salvamento por Jackson, com recurso a um episódio de peculiar persuasão, de tortura psicológica, de um oficial das tropas adversárias. Quase 30 anos depois, Jackson lidera um grupo de fuzileiros encarregues de evacuar a embaixada do Iémen, cercada por uma orla de snipers e por uma multidão em fúria. Com três dos seus homens abatidos, Jackson ordena que os soldados disparem sobre a multidão, de onde resultam mais de 80 mortos, onde se incluem mulheres e crianças, que estariam supostamente desarmados. Será Jones (na reserva, agora advogado) quem defenderá Jackson, numa reflexão sobre situações-fronteira delimitadas por regras particulares [que Friedkin estenderá ao filme seguinte, Hunted (O Batedor , 2003)], exames ao humano, que exigem comportamentos de excepção em eventos incompreensíveis e de inexequível escrutínio através das arquitecturas jurídicas: só com o auxílio das câmaras (a crença reiterada na máquina), do valor e da exactidão dos registos de imagens e de sons, é possível perseguir a verdade.
O passeiro vagaroso pela obra de Friedkin continuará no próximo artigo, num mundo exclusivo de homens, de disputas e cumplicidades entre irmãos de sangue, instrutores e aprendizes, caçadores e presas, com um pé nostálgico nas ruínas da nova Hollywood.