When we moved to Victoria it was the first time I’d been in a video store. I loved going in but my parents wouldn’t let me watch the R-rated movies. So I’d just read the back of the box and imagine what it was like. It was at that point I really fell in love with the idea of the imagined movie – a movie that only exists in my head.
Panos Cosmatos
Quem tem seguido estes textos sabe que tenho procurado explorar ligações alternativas – ou antes, sobretudo pessoais – de fazer chocar os filmes entre si. Não se trata de uma obsessão pela destruição das ligações já existentes que agrupam a história do cinema em segmentos, temas, relações mais formais ou culturais, mas sim contribuir para alargar o espectro da montagem. Em certo sentido, são também isso os ensaios audiovisuais em voga. Mais do que provar ligações já pensadas, contribuir para desenterrar latências, animar não ditos, descolonizar (bem sei, a palavra é forte) uma dada forma de procurar a rima ou o contraste. Para tal, este mês, gostaria de abordar uma outra relação entre o cinema e a arquitectura. Não a da atenção distraída, nem a da monumentalidade plástica, mas sim aquela que provém dos raccords de cal e estuque, da procura do fora de campo a partir dos filmes que vemos projectarem-se diante de nós nas paredes que são o enquadramento dos nossos quartos, salas, lojas.
Em adolescente, ou já depois disso, lembro-me dos filmes que nunca vi. Passava largos minutos, em cada visita aos saudosos videoclubes a mirar as capas das cassetes. Alguns ainda não tinha idade para ver, outros mudavam constantemente de fila e iam-me escapando, outros eram como se fossem já os filmes completos e depois disso nada. Recordo alguns exemplos: a cara partida ao meio de John Lithgow em Raising Cain (Em Nome de Caim, 1992) de Brian de Palma; os dentinhos malandros de um espírito, que só mais tarde soube que era de um vampiro, pairando sobre uma casa, em Fright Night (A Noite do Espanto, 1985) de Tom Holland; aquelas letras vermelhonas a dizer Pacino e Sean Penn sobre uma figura de pistola e cabedal numa escuridão azulada de Carlito’s Way (Perseguido Pelo Passado, 1993) também de Palma; o olhar virgem e imaculado de um menino chamado Di Caprio, em This Boy’s Life (A Vida Deste Rapaz, 1993) um filme que me tocou muito quando o vi.
Havia muitos. E o curioso é que hoje, os filmes que nunca vi permanecem nesse halo luminoso de curiosidade com base nestas imagens afixadas no meu passado. E, muitos dos que acabei por ver apagaram-se, entretanto, da memória. Mas os posters permaneceram e a eles associado um sentimento ou sensação: medo, choro, alegria, surpresa. Ainda hoje penso como havia imagens que escondiam filmes maravilhosos que eu não pensava poderem existir. Como aquelas prateleiras eram infinitas, bibliotecas de babel, encerrando infinitas formas de vida, caminhos sinuosos, jogos com a vida. Nunca mais tive a mesma sensação de “casa”, de acolhimento com a minha cinefilia. Mesmo com o cinema em sala, as Cinematecas, agora o digital, a cinefilia soa-me mais a terreno descampado, a céu aberto. Como um campo de cultivo, sob o qual sobrevoam as imagens, que vão depositando coisas nesse terreno. Fertilizando-o, mas também queimando-o, intoxicando-o, irreversivelmente.
Queria voltar às casas e as imagens afixadas. Desta feita, nas paredes. Durante mais de um ano vivi num quarto com o poster de Attack of the 50 Foot Woman (A Mulher de 15 Metros, 1958) na parede por trás da minha cama. Por vezes chegava tarde, cansado, ensonado, e deslizava para debaixo do cobertor, protegido por esta mulher gigante, de tanga amazónica, que segurava um carro como se fosse um brinquedo. Unhas afiadas, olhar absorto, numa espécie de êxtase destrutivo, com senhores lá em baixo junto à estrada como formiguinhas a espreitar-lhe por entre as pernas. Não era só protecção. O poster, até pelas cortes fortes, o amarelo, o vermelho das letras, tinha essa carga sexual. Durante anos nunca vi o filme. E sempre tudo aquilo me fazia lembrar uma versão feminina do Godzilla ou King Kong, e que se conjungava, claro, com um discurso de afirmação do poder feminino. Uma grande sedução, uma grande destruição, um grande pontapé nos tomates.
Há uns dias resolvi desfazer o mito e ver o breve filme de serie B, assinado por Nathan Juran, conhecido sobretudo pela direcção de arte em filmes como How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941), pelo qual ganhou um óscar, ou Harvey (1950) de Henry Coster. Não há como esconder uma certa decepção, até certo ponto natural. O poster parece, de facto, ser melhor do que o filme. De baixo orçamento, os efeitos especiais procuram, através de sobreposições, mates e próteses de borracha, fazer o possível. Há um esboço da trama gótica da mulher enlouquecida, algo que já havia estado mais na moda nos anos 40. A mulher que se agigantará por efeitos da radiação é a mulher traída, e a mulher que o marido e amante querem fazer passar por alcoólica e demente. E apesar de um certo fascínio que ainda permanece nos momentos em que a actriz Allison Hayes caminha pela cidade, meio transparente, luminosa, tudo o resto se imbeciliza. Desde a bola gigante como nave especial, o extraterrestre de fato medieval, a obsessão daqueles pelo diamante da senhora, as manápulas, ora peludas, ou aparadinhas, dos seres gigantes que vamos vendo fragmentozinhos, mesmo zinhos.
Um dos elementos interessantes é verificar a diferença entre o cinema da parede e o do ecrã. Attack of the 50 Foot Woman, na sua premissa, e o seu poster mostra-o bem, surgem como símbolo imponente da emancipação feminina. Contudo, a “prova” que o próprio filme nos dá fica bastante aquém. Trata-se antes de uma mulher que está disposta a matar e a morrer por amor (o final é trágico) e onde se podem ouvir frases de um polícia que diz: “No, I can’t shoot a lady”. E quer a mulher rica, quer a mulher pobre, se mantêm praticamente todo o tempo submissas ao seu “macho-alfa”. Não pretendo claro, criticar os códigos culturais da época (ou pelo menos isso levava-nos por outro caminho), mas sobretudo salientar que a discrepância entre os filmes e as imagens dos filmes, por vezes, são letais. E que acontece com frequência que os raccords com as nossas expectativas estejam menos nas obras e mais naquilo que rodeia a nossa mitologia em torno da obra. Pois se eu vos disser que o quarto e o poster pertenciam à minha irmã (que não chega ao metro e sessenta) mas que ela é a “original” 50 Foot Woman do meu filme?
Bem mais recentemente dei por mim a ver um outro filme por causa de uma parede e de um poster nela. Em primeiro plano, envergando uma bela pistola, o bad ass Sam Elliot, esse actor de voz cavernosa, barba por fazer e jeans apertados, ícone de tough guy dos anos 80. Em segundo plano, envergando um belo par de óculos, o advogado, outrora polícia de metal, Peter Weller. Lá mais ao fundo, mas não menos importante, Antonio Fargas, actor importante em vários filmes blaxploitation, aqui como traficante de óculos escuros e a contar dinheiro de luvas brancas nas traseiras de uma espelunca nova iorquina. Não estava, mas devia estar também Richard Brooks, o aqui “falso culpado” que, em 2/3 cenas, arrepia com seu estilo cantado, over de top, condoído. É vê-lo, por exemplo, em To Sleep with Anger (1990) de Charles Burnett para perceber o seu talento.
Apresentados que estão os “comediantes”, passo ao filme. Blue Jean Cop ou Shakedown (Dupla de Fogo, 1988) é realizado por James Glickenhaus , um desses realizadores ditos menores dos anos 80 e 90, especializado em filmes de acção, de baixo orçamento, straight to video. Hoje em dia os seus filmes, como os de outros invisíveis (George P. Cosmatos, Lettich, Sam Firstenberg, Joseph Zito, etc) continuam a dar muito prazer a pessoas sem medo de perder tempo, a bebedores profissionais de cerveja ou simplesmente a amantes do cinema. Como o filme de 1958, de Nathan, Shakedown também é um filme da margem e também é um filme cuja maior virtude está na possibilidade de destruição. Se em The Attack é preciso esperar pelos 10 minutos finais para ver Allison Hayes a arrancar a tabuleta de um hotel e a destroçar o bar onde está o amante, já o filme de Glickenhaus vai polvilhando o seu enredo – em torno de um advogado oficioso que se junta a um polícia para tentar provar a inocência de um traficante de droga face a uma acusação de homicídio, no meio de um esquema de corrupção policial – com a destruição de candeeiros de rua, semáforos e carruagens de montanhas russas.
O filme, como era de esperar, está pejado de one liners (“go ahead, white bread, make my day”/ “hey baby, I’m white and I can’t fight”), histórias do arco da velha (Elliot perdeu o amor da sua vida quando mandou a bola ao cãozinho dela, e este caiu de um prédio de 13 andares), e pormenores destilando ironia: Weller a fazer um batido de pequeno almoço ao som de “Purple Haze” de Jimi Hendrix com a mulher a dizer-lhe para baixar o heavy metal; ou, num bordel, o quarto esponjoso e badalhoco que dá pelo nome de honeymoon sweet. Tudo é, de facto, demasiado bem disposto e badalhoco para não ficarmos de alma cheia e, uma vez mais, estarmos no território do homem versus corrupção e do pobre que, com possibilidade de se tornar rico, decide ficar junto dos pequenos criminosos e dos polícias de ganga.
O poster, voltando a ele, não revelava muito. Mas sobretudo era uma porta para uma época que eu deixara entreaberta. Vi-o num par de planos de um filme que gostei muito, a curta Poder Fantasma (2019) de Afonso Mota. Aparentemente, seria um ovni de acção, na parede de um quarto, num espaço e filme tão serenos, de um Verão dolente, mas criativo. Mas as aparências enganam e os raccords de estuque e cal não enganam. Não é por acaso que, quer no filme de Mota, quer no de Glickenhaus, é a presença e importância fantasma do som aquilo que se tornará decisivo para resolver as agonias da narrativa. Um som que se procurará e que tenderá a fugir da vista e do ouvido. Uma prova de inocência da realidade.