Quando Cavalo Dinheiro (2014) teve a sua estreia mundial no Festival de Cinema de Locarno, perguntaram a Pedro Costa sobre o momento mais comovedor desse filme, onde a então estreante Vitalina Varela recebia uma carta das mãos trémulas de Ventura, lia-a e, antes de sair por uma porta a iluminar-lhe o rosto até ali taciturno, soltava pela primeira vez um breve mas intenso sorriso. Foi-lhe questionado, “O que está na carta?”. Costa, à semelhança da sua heroína, sorriu e respondeu, “É uma carta muito bonita de quatro páginas. Estará noutro filme.” Esse filme não é Vitalina Varela (2019), e é pena. Só agora temos noção da sua importância monumental. Porque o que quer que tenha provocado um sorriso a uma mulher tão marcada pelo luto e encoberta numa noite só sua tem o poder de mover montanhas.
Lançamos a questão sobre até que ponto não há uma cronologia trocada entre este filme e o anterior de Costa, com aquele sorriso a marcar o término da jornada bressoniana de aceitação de Vitalina, iniciada aqui com determinação naquele plano fechado (bressonianíssimo, por sinal) dos seus pés, aquando da sua chegada ao aeroporto. Jornada. Caminho. Vitalina pode ter ficado para trás quando o marido partiu do lar, e pode-lhe ser pedido por várias personagens que retorne para a terra-natal (a começar por aquele trágico coro de empregadas de limpeza que a recebe à saída do avião, num sinal de advertência do futuro infausto e indigno que Portugal lhe reserva), mas não é isso que a impede de prosseguir estoicamente o seu percurso (ela ignora o aviso das compatriotas e apenas caminha), de provar ser a figura mais resiliente, audaz e determinada alguma vez filmada pelo cineasta. Como naquele plano geral fordiano em que luta num telhado contra o vento, diante de um céu enublado, cinzento e não atravessado por um raio de luz que seja. É a imagem que resume o filme inteiro e a visão que o cineasta tem sobre a sua actriz.
Mas o que parece ser o gesto mais bonito de Costa é a forma como recupera ou revisita vários elementos dos seus filmes das Fontainhas. Dos cubos Knorr de No Quarto de Vanda (2000) ao tema elegíaco de Kúrtag nos créditos de No Quarto… e Juventude em Marcha (2006), passando (mesmo não fazendo parte do conjunto de obras filmadas no bairro demolido, é o sítio onde tudo começou) por Cabo Verde, a Casa de Lava (1994), donde Costa saiu como carteiro para levar missivas e encomendas aos familiares das pessoas com que havia filmado. Costa pede a Vitalina para a sua história integrar no mesmo mundo da de Vanda ou Ventura, convidando-a a fazer parte de uma outra família, que a ajude a superar a que perdeu na vida real e a impeça de ceder ao abismo negro e solitário da viuvez, por via do cinema. É justamente no que se pressente nos vários encontros que a personagem vai tendo, na formação de novos laços familiares, naquela compartilha de dor, angústias e experiências de vida (aqui, particularmente com o padre de Ventura a atravessar uma crise de fé, cuja perda espiritual de alguma maneira se entrelaça com a perda do marido de Vitalina) que reside o cerne humanista do cinema do realizador português.
Uma experiência visualmente arrebatadora nos seus jogos pictóricos de luz e sombra, na sua noite escuríssima onde mortos e vivos parecem coexistir, na imponência vertical dos edifícios desgastados onde os seus heróis habitam.
Talvez por isso, por esse respeito enorme à personagem, ao seu sofrimento, e ao seu semblante augusto a soltar monólogos acusadores nunca respondidos, Vitalina Varela se revele como o filme de Costa mais preocupado com a tangibilidade e linearidade narrativa, menos ambicioso na exploração de uma estrutura desafiante e original do que Juventude em Marcha ou Cavalo Dinheiro, já não acarretando (ou, pelo menos, não de forma tão acentuada) a mescla passado/presente, realidade/imaginação, que se vinha a tornar uma das marcas enigmáticas da sua obra. Daí que se sinta, também, pela primeira vez em Costa, que o seu novo filme não tenha qualquer interesse em ser um passo em frente aonde o anterior lhe tinha deixado, com toda a sua dimensão labiríntica, ambiguidade estrutural e audácia imaginativa.
Excepto num sentido: na força visual. O sentido de composição, o rigor dos enquadramentos, a austeridade da mise en scène, tudo isto está cada vez mais depurado em Costa (inefável fotografia de Leonardo Simões), fazendo do seu cinema uma experiência cada vez mais visualmente arrebatadora nos seus jogos pictóricos de luz e sombra, na sua noite escuríssima onde mortos e vivos parecem coexistir, na imponência vertical dos edifícios desgastados onde os seus heróis habitam, na habilidade em fazer da textura dos rostos, das mãos, das roupas e dos cabelos das personagens matéria-prima para um épico magoado de enorme intimidade, e nessa inacreditável capacidade de filmar os olhos… os olhos sofredores dos renegados de Costa que cada vez mais brotam resistência com a mesma intensidade com que a lava sai de um vulcão.
Bastaria isto tudo para referir o inevitável, de que se poderá falar de Vitalina Varela como o filme de Costa mais esperançoso. Mas queremos fazer um último acrescento, o facto de, depois de tanto tempo dentro da casa da protagonista a cair aos poucos, vermos uma outra naquela pequena coda, filmada em Cabo Verde, a ser construída. Talvez seja a recordação de um passado saudoso ou a imagem de um sonho ainda não destruído. Seja o que for, se não for ele, acreditamos que fosse algo tão belo e sereno como esse cenário o que estava escrito na carta que ressuscitou o sorriso jazido de Vitalina.