Exemplo de uma arte interpretativa cheia de fúria e generosidade, Kirk Douglas deixou-nos este ano, permanecendo atrás de si um rol interminável de memoráveis papéis que interpretou sobretudo nos anos 40, 50 e 60 do século passado. Ele foi um dos príncipes da Hollywood clássica, porque dele emanava uma energia irresoluta e imparável capaz de manter à tona a boa velha narrativa heróica ou melodramática. As escolhas não foram fáceis, sendo da inteira responsabilidade – e têm o cunho pessoal – dos nossos walshianos, em que se destacam os nossos mais recentes reforços: Daniela Rôla e Nuno Gonçalves.

Uma carta, três mulheres casadas. Uma quarta mulher, Addie Ross (solteira, claro está), abandona a cidade, deixando uma carta às três casadas. Nela afirma ter levado consigo uma pequena recordação, um dos maridos. Mas qual? É este o ponto de partida de A Letter to Three Wives (Carta a Três Mulheres, 1949). Da personagem interpretada por Kirk Douglas, rapidamente ficaremos a saber que é um professor de língua inglesa chamado George Phipps, apaixonado pela sua profissão e casado com a sua namorada de sempre, vivendo eles naquela zona da rua principal que poderá prometer ascensão social futura (se a ambição da mulher continuar a dar frutos). Num filme de deliciosas inversões de papéis, aquele que seria o típico engatatão é transformado numa mulher bela, sofisticada, bem-sucedida (assim nos é dito), que todos os homens idolatram e que corteja todos os elegíveis e casados como se estes fossem donas de casa desesperadas. Nunca lhe conhecemos o rosto, apenas a voz, o que leva a que possamos realmente acreditar que ela, Addie Ross, consegue ser, para cada homem, a personificação do seu ideal feminino, seja ele classe, cultura ou desenvoltura social. Kirk Douglas, despindo-se da persona de durão de queixo angular e dentes rangentes, encarna o homem que se sente desamado pela sua mulher Rita, absorvida pelo seu trabalho e alheada da vida familiar, forçada a rebaixar-se e lamber as botas a patrões execráveis. Não será, certamente, a vertente mais óbvia de Kirk Douglas, esta vertente algo househusband, mas este não é exemplo único. Em Strangers When We Meet (Um Estranho na Minha Vida, 1960), um esquivo Walter Matthau invejava-lhe mesmo a liberdade de trabalhar em casa, porque lhe dava uma proximidade privilegiada das vizinhas solitárias.
George é cortejado por Addie com uma gravação rara de Brahms e uma citação de Shakespeare, que ele recebe enternecidamente – “if music be the food of love, play on”. Ao contrário de Rita, Addie não se havia esquecido do aniversário de George. Tratando-se de um filme assinado por Joseph L. Mankiewicz, estamos, naturalmente, em território em que a palavra é rainha (o seu império é tal, que até os objectos falam). Por isso, não deve ser motivo de espanto que o lado mais tough guy de Kirk Douglas ressurja justamente quando George é chamado em defesa da língua inglesa e da literatura. Toda a sua aura badass está nessa intransigência, nesse empertigamento, nessa recusa de aceitar o triunfo dos brutos – “those kind”. Ao contrário de Addie Ross, que é forçada a bater em retirada admitindo a derrota – “heigh ho, goodnight, everybody!”. A despedida dela, como a nossa, é plena de resignação e melancolia.
Daniela Rôla

Pintor, boxeur, cowboy, coronel, escravo, produtor de cinema, jornalista, detective, trompetista… A lista podia continuar, mas detenho-me no trompetista. Kirk Douglas foi tudo isto e mais alguma coisa no grande ecrã, quase sempre imprimindo nos seus personagens um estatuto de singularidade: não existe nenhum Van Gogh [Lust For Life (A Vida Apaixonada de Van Gogh, 1956)] mais apaixonado e angustiado que o dele, nenhum jornalista [Ace in the Hole (O Grande Carnaval, 1951)]mais febril, nenhum produtor de cinema [The Bad and the Beautiful (Cativos do Mal, 1952)] mais obsessivo, nenhum trompetista “branco” mais condizente com o seu instrumento musical. Foi em Young Man With a Horn (Duas Mulheres, Dois Destinos, 1950), de Michael Curtiz, que o vimos assim, um homem cuja garra performativa se projecta no modo como manuseia a trompete. Este filme que se inspira na história do trompetista de jazz Bix Beiderbecke – a partir de um romance de Dorothy Baker – é um título raramente evocado quando se fala da carreira de Douglas e, em particular, dos seus gloriosos anos 50. Não porque seja “menor”. Pelo contrário, figura quase como uma pérola-noir-musical-escondida, retendo um dos primeiros testemunhos da vibração e fúria contidas na pele do imigrante judeu filho do trapeiro. A seu lado, uma doce Doris Day e uma amarga Lauren Bacall, representam as duas escolhas amorosas que lhe trocam as voltas à sinfonia da vida.
Dado curioso: foi Harry James quem tocou as músicas, gravadas, que ouvimos no filme. Pergunta: em algum momento separamos o jeito do “músico” Kirk Douglas do som que (virtualmente) vem do instrumento que ele está a tocar? Nunca. Douglas era o homem do rigor. Se é para sentir algo, sente-se. É como estar no olho de um furacão interior. E nesse retrato impetuoso do artista, ele desejava encontrar-se o mais próximo possível da verdade do seu personagem. Como conta na autobiografia The Ragman’s Son, “Bix era como Larry Bird – o único branco com ritmo – e devia ter ido para o Harlem, tocar com os negros. Argumentei com Curtiz sobre isso, e perdi.” Não foi ao Harlem, é certo, mas não lhe escapou esse sentido de ritmo, coisa natural num actor sem medo de ser veemente diante da timidez da câmara. O seu excesso era o justo. Dizer que era um dos grandes é ainda mais justo.
Inês N. Lourenço

As “noites americanas” destes westerns expressionistas são densas tal como, indiferente à hora, o céu é negro, tão negro quanto a roupa de Kirk Douglas, ou os cavalos, ou a espiral que puxa – sem retirar o filme da sua linearidade classicamente walshiana – a narrativa do presente para o passado “massacrado” pelo fantasma da morte do pai. O herói, um marshall que se decide sempre pela obediência à lei – nem sempre em Walsh é assim, como sabemos -, sente-se responsável pela morte do próprio pai. Ao se aperceber disso, a personagem de Walter Brennan, acusada do homicídio do filho de um grande fazendeiro, procura de imediato mexer e remexer nessa ferida, ocupando o vazio traumático que congela ou desorienta o marshall na sua acção. Essa acção é, na realidade, uma missão encarada com a determinação e o zelo de quem professa uma religião – uma crença – chamada “lei” ou mais concretamente de quem tem de levar do ponto A ao ponto B o velho malvado encarnado por Brennan, para que este tenha o julgamento que merece.
Kirk Douglas terá de lidar com inúmeras hesitações ao longo do percurso, nomeadamente da parte de um dos seus colegas que não tem a mesma visão irredutível sobre a verdade e justeza inquestionável da Lei. Em certa medida, Walsh não elimina mas contraria a posição anti-sistémica que os seus heróis costumam assumir: Kirk resiste a ela, estoicamente, fazendo da luta contra a desobediência uma forma de estar na vida – uma moral, onde assentarão as bases do Estado moderno. Along the Great Divide (A Caminho da Forca, 1951), antecipando em muito o que foram alguns dos melhores westerns dos anos 50, de Budd Boetticher e Anthony Mann, é um drama construído sobre uma travessia no deserto, onde fantasmas do passado (o “complexo de Édipo” de Kirk), as miragens do presente (que a paisagem oferece em forma de ratoeira mortífera) e as convicções do futuro (um Estado de Direito nascido sobre as cinzas do faroeste mais selvagem) se projectam em simultâneo, sob a sombra espessa da dúvida ou da incerteza. A relação que Kirk vai estabelecer com a lindíssima Virginia Mayo é mais um brilhante “jogo de massacres” walshiano que, enquanto subplot, vem lançar sobre todo este percurso físico e interior a dose de erotismo e tensão sexual que tanto nos exalta os sentidos.
Luís Mendonça

Kirk Douglas, gigante da era clássica de Hollywood, interpreta na versão de John Sturges de Gunfight at the O.K. Corral (Duelo de Fogo, 1957) o lendário e extravagante “fora-da-lei” do velho oeste, Doc Holliday. Douglas era obviamente senhor de uma postura e fisicalidade que se prestava a um charme e estilo que tão bem lhe reconhecemos. Homem de personalidade vincada, às vezes até amarga e arrogante, faz assentar o seu humor refinado que nem uma luva neste personagem por si só debilitado (um alcoólico que sofre de tuberculose). É tão desalinhado quanto canalha, que ficamos sem outro remédio que não o do puro deslumbramento.
Parece evidente que Kirk acabou por, de uma forma ou outra, pontuar a sua carreira com um rol de personagens bigger than life. Preenchia-lhes as medidas porque Kirk Douglas não se limitava a habitar uma vida, mas a emprestar-lhes traços que apontavam outros caminhos, diferentes passados. E se há lugar onde o caminho de Kirk foi às direitas, foi o do Cinema. Há um momento em Gunfight at the O.K. Corral que Doc Holliday, vencido pelas consequências do vício, ao saber do duelo que vai acontecer naquela manhã entre o seu amigo Wyatt Earp e o clã dos Clanton, precipita-se a sair da cama. Kate (Jo Van Fleet) suplica-lhe para que fique no quarto. Doc não hesita: “If I’m going to die, at least let me die with the only friend I’ve ever had.” Este era Doc Holliday. Este era também Kirk Douglas, para o Cinema e para a vida.
Nuno Gonçalves

Kirk Douglas terá elegido Lonely Are the Brave (Fuga Sem Rumo, 1962), de David Miller, como o seu filme preferido onde também foi produtor e esteve na base do lançamento do projecto. Com alguma sintonização acabei também por seguir a vontade do actor e escolhê-lo pelo lastro não tanto espectacular, mas não menos curioso e com efeito de contágio que o filme acaba por deixar. Pequeno e singular western, ou neo-western, género em queda que caminha para novas paisagens, consegue apanhar-nos pelo eco duma irredutível vontade de evasão, encarnada na errância sempre sedutora da rebeldia. Daí possuir uma força interna qualquer que possivelmente se alimenta duma circunscrição temática: a fuga à modernidade. Alimenta-se ainda da presença do super cowboy indomável, Jack Burns, a colar-se ao carácter e à pele de Kirk que se entrega com o corpo, com o seu cavalo Whisky, o seu espírito rebelde e põe a alma nisto tudo como uma máquina de solidão à solta.
Lonley… é adaptado da obra The Brave Cowboy, de Edward Abbey. O argumentista foi Dalton Trumbo com quem Douglas tinha já proximidade sendo escolhido para o argumento de Spartacus. É um filme inscrito na paisagem do Novo México, com algumas personagens certeiras com relevantes papéis e fantásticas interacções. Jerry Bondi (Gena Rowlands) é a mulher que vê partir o seu herói, enquadrado por uma melancólica força expressiva e também romântica e, igualmente, desenquadrado, a brandir a sua filosofia feroz de liberdade e solidão: “Sou um solitário até à medula, um solitário é um doente que vive unicamente para si próprio…” Uma cena incrível de luta com o actor e personagem sem braço, Bill Raisch, o Lopato, é ainda outro momento no filme que tem a garra dum corpo-a-corpo entre dois inadaptados. Temos também Walter Matthau como xerife que organiza a perseguição do cowboy e estabelece cumplicidade com o foragido. Tendo um ciclo à partida esquemático, talvez errático, o filme parece fugir-nos, mas acaba sempre por voltar, muito pela ideia temática e pelos anacronismos presentes que lhe acrescentam matéria e interesse: autoestradas e cavalos, asfalto e natureza pura, crueza e romantismo, a dita modernidade versus uma figura imaginária do western clássico – enquadramentos bem desenhados com mão sensível (é verdade) alinham algumas ambivalências que tornam o filme curioso com um rico campo reflexivo. Tudo isto é servido por um bonito black and white e como alvo temos a imparável presença de Kirk (parece que houve problemas na rodagem entre actor e realizador e diz-se que pode ter sido Kirk quem terminou o filme). Kirk impõe-se na sua fisicalidade tão colada a si, tão marcadamente impressiva (um peculiar rosto anguloso e bem talhado, o olhar azul-céu faiscante, a re-falada covinha no queixo e um corpo bem sustentado), atravessando a paisagem do filme e fazendo-nos esquecer os detalhes narrativos mais frágeis. Ergue-se um homem, um herói trágico, que espelha o actor, carregado de idealismo, de aventura, condenado à sua liberdade de escolha: a profícua liberdade (o cliché mais perseguido e elevado). Brave Kirk, ficam todos os soberbos heróis que nos deste e fica também este bravo solitário cowboy eterno.
Carlota Gonçalves