The idea that we are (…) voyeurs is indeed disturbing. But then again human has always been disturbing. (…) We are still afraid of violence and blood and death, but we are more afraid of the unknown.
Vivian C. Sobchack, “The Violent Dance: A Personal Memoir of Death in the Movies” in Screening Violence 1 (2001)
Questões surgem, ideias circulam num ritmo incessante e um texto nasce: um momento de tradução da busca infindável por um entendimento de algo que todos – ou alguns – procuram encerrar no capítulo dos limites da moralidade e realidade fílmica.
O despertar de um desejo de concluir um discurso que tem sido alvo de análise – e consequente transmutação – conceptual desde o início dos tempos (do cinema).
Dau. Natasha (2020) é o ponto de partida. Mas tudo começa no prefácio da história deste filme. Alvo de mistério – e consequentes rumores – durante cerca de uma década, o projecto Dau é provavelmente um dos empreendimentos fílmicos mais ambiciosos da história do cinema, concebido e (parcialmente) concretizado por Ilya Khrzhanovsky. O objectivo inicial consistia na criação de uma obra cinematográfica dedicada ao físico Lev Landau. (Re)construiu-se o Instituto em que tal físico investigou e trabalhou durante a União Soviética e (pelo bem do cinema?) foram recrutados figurantes para habitar esta réplica, este espaço de (re)configuração soviética. Um (novo) mundo surgiu e a câmara seguiu os passos que foram dados por todos aqueles que não passavam de peões invisíveis de um jogo cujas regras inicialmente definidas foram brutalmente subvertidas e reconfiguradas. Quatro anos passaram e centenas de indivíduos transformaram aquele que seria um filme biográfico num conjunto de materiais (centenas de horas de filmagem, mais de uma dezena de filmes e séries) sobre o que implica ser humano num ambiente guiado pelo extremismo induzido num micro-plano social (fictício?). Não falamos de uma constante observação dos desenvolvimentos sociais (mais ou menos sociologicamente interessantes, chocantes, decepcionantes): a câmara entrava e saía de acordo com a vontade de quem conceptualizava, de quem idealizava, de quem imaginava, do topo do trono do controlo.

Foi estabelecido, assim, um método de criação, de captura do real de um universo paralelo ficcional. Uma comunidade foi criada no isolamento (fora raras excepções de pontuais aparições de ditas ‘celebridades’ neste reino imaginário) e a distopia potenciada. A visão de um auto-determinado “espírito livre” contemporâneo, financiado por meios ainda hoje desconhecidos (após devolver o financiamento inicialmente providenciado pelo Estado russo para criação deste projecto), cujas ambições de exploração visual do seu reino não cessavam (talvez numa tentativa sem fim de chegar ao ponto da disfunção total, da subversão total dos modelos sociais vigentes).

Após anos de filmagem, após anos de vivências neste imaginário totalitário contemporâneo, passaram-se igualmente anos de tratamento e produção dos materiais recolhidos. Mãos, mentes, corpos, intelectos trabalharam, questionaram, editaram, moldaram criaram algo sobre o bruto – e sobre a brutalidade – daquilo que restava de uma experiência cada vez mais distante – mas, ainda assim, todos os dias presente.

Neste momento, deverá ser anunciado – ou denunciado – o contacto pessoal com este processo: um toque superficial (mas de intensidade extrema) com mais uma camada, mais um universo criado (mas, neste caso, fora das paredes do Instituto e dentro das paredes escurecidas de um edifício perdido no centro londrino).
Não podem ser partilhados detalhes ou elementos específicos da interacção com este projecto (a visão de alguém que contactou de perto com as dinâmicas não só de um indivíduo, mas de uma segunda comunidade criada em torno deste), mas poderá ser dito que o totalitarismo não se perdeu (nem nunca se perde): ganhou outra dimensão. O potencial do génio, misturado com a loucura da impunidade resultaram numa exploração intensiva das possíveis estratégias de apresentação de registos (autenticamente) fictícios (e documentais). A performatividade entrou em jogo: um labirinto preenchido e habitado por corpos que deambulavam por escadas, por salas, por corredores de um núcleo de investigação do comportamento humano, dos limites do indivíduo, da interacção em comunidade, de questionamento e disfunção das regras pelas quais (quase) todos nos regemos.
Criaram-se vontades, expectativas, ambições. Testaram-se – e testaram-se, testaram-se, testaram-se – modelos, possibilidades. Criaram-se certezas. Mas a premissa que as originou era, de si e por princípio, falaciosa. A tentativa de quebra da dupla camada de paralelismos para com o mundo (dito) real não atingiu – nem poderia atingir – o pressuposto. O totalitarismo não se perdeu (nem se perde) mas a retaliação da descida ao comum mundano é o seu limite. A inclusão de dito potencial foi congestionada, foi questionada, foi impossibilitada a diversos níveis. Criaram-se obstáculos, frustrações, impossibilidades.
Do magnânimo ao possível: de um trio de centros europeus, para uma cidade. Paris foi o primeiro passo para a queda da cortina e para um primeiro vislumbre deste trabalho que, de tão impossível, de tão fora do núcleo noticioso, parecia imaginário, irreal. Aproximaram-se os universos e foi criada uma aproximação entre nós e eles, entre ele e eu.
Do magnânimo ao possível: de uma cidade, para um festival. O material tão mexido, tão (re)mexido ganha, mais uma vez, uma nova dimensão, um novo formato. É estabelecido, mais uma vez, um contacto com o mundano. Aí, vemos Natasha. Aí recolhemos resquícios de Dau. Aí surge Dau. Natasha.

Neste momento, deverá ser partilhado – ou fugazmente indicado – o contacto pessoal com este filme: um toque superficial (mas de intensidade extrema) com duas horas e vinte minutos de um cinema que vai um pouco além da convenção, imenso na normatividade de formato. O nosso posicionamento enquanto público de uma obra que se poderá encaixar dentro dos padrões do denominado “cinema de extremos” (encaixado, em parte, numa categoria de tortura psicológica pornográfica de tensão entre o limite de representação da condição, da vontade, do desejo e do comportamento humano) é posto em consideração, e em causa. O que queremos obter desta experiência cinematográfica? O que queremos ver neste episódio de um processo que, à partida, é moralmente questionável? O que é que nos prende nesta cadeira vermelha, à frente desta tela, neste estado de comunidade temporária que é formado dentro da sala de cinema (onde, mesmo assim, reina a individualidade do modelo de interpretação e visionamento)? Vontades, expectativas e ambições à parte, aquilo que observamos é de uma singularidade inquietante. O limite entre realidade e ficção coloca-nos numa posição de questionamento constante do regime através do qual deveremos reger a (des)codificação daquilo que foi registado e que nos é, assim, apresentado. Do reino de Dau, pouco vemos. Dos objectivos iniciais de produção, pouco observamos. Mas aquilo que realmente conseguimos obter é, ainda assim, carregado de (des)humanidade – sabendo, à partida, que o pior não esteve – nem está – aqui.

Natasha é um elemento de um universo que ultrapassa esta sala, esta comunidade, este cinema. Natasha é uma mulher que, como qualquer um de nós, tem dúvidas, receios, ansiedades, mas também desejos, vontades. Uma personagem que nos mostra a ambiguidade – e imprevisibilidade – das nossas decisões, das nossas acções. Do impossível, temos possibilidades; da violência, temos o amor; da frustração, temos o sexo. Tudo visível perante uma câmara que, sem medos (e, talvez, pudor), regista o alcance da sua desumanidade.

Muito se escreveu, se pensou, se disse sobre este filme, sobre esta criação que procura ir para além do “bem e do mal”. Momentos de violência, de crueza absoluta na representação deste universo paralelo distópico levantam o véu sobre aquilo que está realmente em causa. Um teste à moralidade da sociedade debordiana, do espectador (não-)passivo, mas também do criador sem limites, da representação não-filtrada (mas trabalhada, trabalhada, trabalhada). A crítica tornou-se, assim (e inevitavelmente), polarizada. A beleza e o horror são combinados e destacados num visionamento em que carregamos uma culpa eterna pelo deslumbre, pelo êxtase. O totalitarismo não se perdeu (nem se perde): reina nesta sala e aprisiona-nos num estado de dualidades polarizadas constante.

Onde começa o sadismo e termina a cinefilia? Onde começa a ganância visual, a exploração abusiva dos indivíduos e termina a representação da realidade, da naturalidade dos instintos e comportamentos humanos? Quem dita as regras do jogo? Onde começa e termina o ciclo de poder?
As respostas são múltiplas e dependem, inevitavelmente, de cada um – e de todos nós. Mas o discurso foi reacendido – e o valor da obra, o potencial da arte reside (também) aí.
Questões prevalecem, ideias circulam num ritmo incessante e um texto (não) termina.
