Quando nos deparamos com a quarta longa-metragem de Céline Sciamma, Portrait de la jeune fille en feu (Retrato da Rapariga em Chamas, 2019), somos como que convidados para um mundo onde os homens não têm lugar. Um mundo onde os homens não figuram, não têm palavra. Num certo sentido, é nos servido um breve fôlego de utopia. O discurso fílmico de Sciamma diz respeito ao feminino. Aponta para a vida delas, de Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel). É a partir destes rostos que Sciamma fala. Fala enquanto artista que retrata na tela uma lembrança possível que quer guardar para sempre. Não é de posse que fala, mas antes, da pintura (da imagem se preferirmos) como o único requisito para o compromisso de uma relação, de entrega, mas acima de tudo, para perceber e perscrutar o outro com atenção. É na atenção para o detalhe que surgem os primeiros sintomas de paixão.
Sciamma abre o filme alinhada à tela, pontuando o pano branco de breves pinceladas. Ouvimos Marianne (Noémie Merlant), fora de campo, a dar instruções de desenho às suas jovens alunas. É Marianne quem se presta a figurar como modelo para a turma. A sua expressão muda quando se apercebe que uma das alunas descobriu um dos seu quadros que há muito não via e pensava escondido. Vemos uma misteriosa figura feminina no centro do quadro, em campo aberto, cujo vestido com que se apresenta alimenta uma chama na sua cauda. Curiosas com a enigmática pintura, perguntam-lhe pelo título: “Portrait de la jeune fille en feu”.
Somos conduzidos até Marianne, anos antes, a caminho de uma casa senhorial, numa ilha isolada da Bretanha. É uma encomenda que a leva àquele lugar: pintar o retrato de casamento de Héloïse, uma jovem que acabara de sair do convento. Héloïse resiste ao seu destino, recusando-se a posar. Mostra sem receios a fúria que lhe consome a alma por se saber entregue a um casamento inevitável. Marianne é incumbida pela matriarca de pintar o retrato de Héloïse em segredo. É-lhe pedido que se apresente como dama de companhia, de forma a conseguir aproximar-se da jovem, sem levantar suspeitas e olhá-la.
E é do olhar e no olhar (régard, régard moi) que se encontra o núcleo de Portrait de la jeune fille en feu. Não é um olhar lascivo que objectifica, mas antes um que vai ao encontro de dois corpos que partilham experiências. É da partilha que nasce o primeiro contrato entre Héloïse e Marianne – após uma tentativa falhada de Marianne em pintar o retrato, Héloïse predispõem-se a posar para Marianne, pedindo-lhe apenas que a olhe como quem quer saber. O contrato serve ambas as partes: há um interesse declarado entre quem pinta e quem é retratado, e vice-versa. A curiosidade de Héloïse e Marianne é estimulada pela capacidade criativa de ambas.
Se antes Marianne estudava secretamente cada gesto, cada movimento, cada centímetro de Héloïse de forma a conseguir fixar, às escondidas, uma imagem – neste sentido Sciamma é até bastante irónica ao fazer uso de um certo voyeurismo básico, um falso male gaze, a lembrar o filme de Hitchcock, Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), em que ‘Scottie’, a personagem de James Stewart, segue Madeleine (Kim Novak) – agora cada segundo de atenção que deposita nas mãos, no rosto, nos lábios, no cabelo que cai atrás da orelha é um convite aos traços da personalidade de Héloïse. Aliás, Héloïse devolve-lhe o gesto mostrando-se capaz da mesma atenção. Criam-se as bases para amar, é o inicio de un amour fou.
É através dos silêncios, das expressões subtis, do toque e dos olhares que se cruzam livremente, que Sciamma consegue tirar partido das emoções e do prazer do corpo, que é também o do cinema.
Engane-se caro leitor, se pensa ir ao encontro do século XVIII, pois estamos perante uma criação em estaleiro (ainda que dentro de uma fantasia de época): são dois corpos contemporâneos, são mulheres do agora. Veja-se a cena em que Marianne e Héloïse assumem a cozinha, enquanto Sophie (Luàna Bajrami), a empregada da família, está sentada a praticar do seu bordado. Juntas rompem com a estrutura de classes, desfrutam noite dentro do mito de Orfeu e Eurídice. Veja-se como bebem, fumam e jogam juntas. Como se descobrem e florescem, em metamorfose. Há uma harmonia, um sentido de igualdade (em Héloïse isso está desde logo em evidência quando comenta com Marianne sobre o estilo de vida que tinha no convento, da liberdade).
É muito clara a forma como Sciamma, em Portrait de la jeune fille en feu, valoriza uma horizontalidade no trabalho com as suas colaboradoras. Vemos isso na narrativa: Marianne é a artista e Héloïse a retratada, mas Sciamma inverte o assunto. Héloïse mistura as tintas, coloca o espelho contra o seu próprio corpo para que Marianne pinte o seu auto-retrato. Sciamma anula a ideia classicista de musa, libertando o olhar. Apega-se à ideia de uma memória viva, que não cede ao dramatismo desmedido de um romance destinado ao fracasso, condenado pela sociedade, mas em vez, escolhe o caminho do poeta – o mesmo que Orfeu perante a impossibilidade última de salvar Euridice, olhando para trás para fixar o seu rosto uma última vez. Quem sabe, tal como Héloïse propõe, se não foi Eurídice quem pediu a atenção de Orfeu? É curioso, aquando da partida de Marianne, é Héloïse quem lhe pede essa memória. Marianne revela, perto do final, que viu Héloïse pela última vez num concerto de Vivaldi. Héloïse não a vê, não lhe devolve o olhar. Marianne é nos devolvida como a voeyurista, que tal como nós espectadores, no início, procurávamos ver sem sermos vistos. Acabamos sozinhos com um retrato desolador, vivo, do rosto de Héloïse. Chora ao som de “As Quatros Estações”. É o rosto de alguém que amou e foi amada.
Portrait de la jeune fille en feu é a reprodução de uma imagem até ao infinito. É através dos silêncios, das expressões subtis (Adèle e Noémie são duas atrizes em estado de graça), do toque e dos olhares que se cruzam livremente, que Sciamma consegue tirar partido das emoções e do prazer do corpo, que é também o do cinema.