A notícia do recente falecimento de Nobuhiko Obayashi, aos 82 anos de idade e vítima de doença prolongada, deixou evidente o quão pouco o mundo ocidental conhece da sua obra e visão artística e, no momento em que se recorda a sua filmografia, salientou o vazio que o seu desaparecimento representa para os cânones do cinema experimental do século XX.
Obayashi, enquanto jovem, chegou a cogitar uma carreira na medicina – um desejo nutrido pelo próprio pai, praticante de clínica geral e que foi alistado para os campos de batalha, no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial. Mas se perdemos um médico, certo é que ganhamos um singular cineasta.
É no seu formalismo que Hausu mais se distingue. O delírio visual da fotografia só é contrabalançado pelo tom slapstick das suas sequências mais intensas.
Desde muito cedo, Nobuhiko Obayashi começou a experimentar as mecânicas das imagens em movimento com câmaras de 8mm e 16mm, assinando uma série de curtas-metragens (sobre estes trabalhos, falarei mais adiante) que, em retrospectiva, já salientavam muitos dos temas que exploraria ao longo de quase 60 anos.
Recordar Nobuhiko Obayashi é, obrigatoriamente, mencionar Hausu (House, 1977), a sua primeira longa-metragem de ficção, que lhe daria grande reconhecimento após a sua primeira edição em DVD, pela Criterion, nos inícios da década passada (aliás, chegou a ser exibido, em 2010, no MOTELx). Comédia de horror e fantasia, cuja narrativa segue o fatal e imprevisível destino de um grupo de jovens raparigas numa casa assombrada, é no seu formalismo que Hausu mais se distingue. O delírio visual do seu trabalho de fotografia só é contrabalançado pelo tom quase slapstick de algumas das suas sequências mais intensas, onde o terror se assume atmosférico, surreal e inegavelmente deleitoso. Com todas as qualidades de um filme de culto por excelência, tornou-se na obra mais aclamada de Obayashi.
Estas características formatariam, nas décadas seguintes, a sua filmografia: a fantasia teenage em Nerawareta gakuen (The Aimed School, 1981), a ficção-científica romântica de Toki o kakeru shôjo (The Little Girl Who Conquered Time, 1983), os assombros do show business em Ijin-tachi to no natsu (The Discarnates, 1988), o filme biográfico revelador de horror quotidiano em Sada: Gesaku – Abe Sada no shôgai (Sada, 1998) e a predilecção por Onomichi, a sua cidade natal, como pano de fundo para a maioria das suas histórias.
Todavia, a apreensão dos temas visuais que motivariam Nobuhiko Obayashi estavam imediatamente presentes nos seus primeiros filmes enquanto jovem realizador. Do conjunto de curtas-metragens experimentais que assinou, nos primeiros anos da década de 1960 – e antes de se dedicar à concepção de anúncios televisivos, alguns deles protagonizados por Catherine Deneuve ou Kirk Douglas –, três títulos surpreendem pelo modo como antecipam o seu percurso cinematográfico.
E no naka no shôjo (The Girl in the Picture, 1960) e Mokuyôbi (Thursday, 1961), duas curtas absolutamente inspiradas nos mecanismos do cinema mudo, convertem cenários idílicos, na raia da narrativa romântica adolescente, em sucintos contos com lições sobre o amor melancólico, a gravidez indesejada e os imprevistos da vida ao ar livre.
Mas, neste período, a curta-metragem que mais se destaca (e a minha preferida, devo confessar) é Complex (1964). Sem aparente narrativa linear, mesclando a imobilidade da imagem fotográfica com “trucagens” assentes na persistência da visão e colorizações dos fotogramas, o filme é um curioso exercício de estilo que, no entanto, encontra diversas correlações com muita da ficção que Obayashi viria a explanar. Inclusivamente, quem se dedicar a uma double bill de Complex e Hausu, poderá observar, esteticamente falando, o modo como os dois títulos se tocam.
Activo até aos seus últimos dias, não obstante o tumor de que padeceu, Nobuhiko Obayashi apresentou a sua derradeira obra, o drama anti-bélico Labyrinth of Cinema (2019) – a acreditar por quem o viu, é filme imbuído de profundo sentimento elegíaco –, na mais recente edição do Festival Internacional de Tóquio. Nesse certame, numa das entrevistas que concedeu, Obayashi terá definido, melhor do que ninguém, os valores que guiaram a sua própria carreira: “o cinema é uma expressão de liberdade”.