Eu sinto enormemente e vejo monstruosamente.
I.L. Caragiale


Tudo começa com o jogo: as cartas – freneticamente dispostas em camadas de sobreposição – levam-nos a uma vitória de grandioso valor mas de pequeno impacto. O fim do jogo encaminha-nos até ao foco de luz que contornava, que sombreava os jogadores. Só alguns podem – e conseguem – sair.

Tudo começa neste final de princípio: a (rápida) quebra da fantasia, a (flagrante) denúncia do artifício da ficção. Um caminho que se inicia para o centro da acção, para o foco da nossa atenção, que se auto-denuncia – desde logo – enquanto algo do imaginário, algo do fictício, mas também – e acima de tudo – algo da produção, do trabalho sobre o real.
Assim, (tudo e) nada começa até à entrada no quarto de Didina, acompanhada – fora dos lençóis mas em cima da cama – pelo barbeiro Nae. A chegada de Pampon, o seu amante em 1º grau, leva à interrupção do acto seco, activo (de prazer) que observámos durante meros segundos e despoleta a intriga. Uma intriga carregada de cor, de fisicalidade, de movimento, de emoção.
Num breve fôlego se explica: Pampon venceu um jogo de cartas, o que ditou – como todos sabemos – que teria sorte no jogo e azar no amor; foi para casa de Didina, que expulsou Nae para que Pampon não soubesse que ela tinha outros amantes; Pampon decidiu não “acordar” Didina – que fingia estar a dormir-, e acabou por encontrar uma carta que denunciava uma relação amorosa com “Bibi”, tal como uma nota de um barbeiro; Pampon, dominado pela raiva da traição denunciada, vai à procura de Bibi no barbeiro, encontrando Mitza, outra amante de Nae e Iordache, assistente de Nae; Pampon não sabe quem é Bibi, quem é Iordache, quem é Mitza; Mitza suspeita que Nae a está a trair e está num estado de total desespero e Iordache tenta acalmar os ânimos – o tal desespero, de um lado e a tal raiva, de outro; Mitza é, na verdade, a amante de Cracanel, que entra no barbeiro à sua procura, e Pampon – por indicação de Iordache -, pensa que Cracanel é o “Bibi” – o tal homem com quem suspeita que a sua amante esteve; Pampon segue Cracanel até uma sauna e tenta afogá-lo, enquanto Cracanel lhe tenta dizer que não é quem Pampon procura; Nae chega – imponente – ao seu local de trabalho, sendo avisado por Ioardache que tanto Mitza como Pampon estão à sua procura; um homem procura uma cura para a sua dor de dentes e Ioardache arranca-lhe não só o dente que está a causar a dor, mas também outro “dente inocente”; Mitza, Pampon, Ioardache, Nae, Cracanel, o homem com menos dois dentes – e até Didina – vão à celebração de Carnaval da terra, onde todos se procuram; Mitza, Pampon, Ioardache, Nae, Cracanel, o homem com menos dois dentes – e até Didina – encontram-se. Mas a história não acaba aqui.
Num breve fôlego, nada se explica – mas tudo se sabe: neste enredo de leves teias soltas, tudo parece ser um novelo de simulação. Um carnaval de constante estimulação de excessos visuais e sonoros, corporais e emocionais. Tudo parece infrutífero: tudo parece – e é – uma ilusão.

O artifício recai sobre a estratégia de simulação da história: a narrativa – intrincada – pode, talvez, afugentar os olhos, os sentidos, a reflexão. O real está escondido: o êxtase da loucura camufla o sentido linear daquilo que observamos, ouvimos, lemos e sentimos. Em breves momentos somos encaminhados para a subtileza da crítica
– em que homens despidos de roupas, de aspecto quase grotesco, declamam as suas denúncias contra o sistema. Esses momentos de abordagem directa das entrelinhas parecem ser lances perdidos num abismo de confusão, álcool e confettis.

Mas, no final do espectáculo, da dança, da música, da violência, do amor, da morte, esses momentos tornam-se cartas fundamentais para a construção – e vitória – do grande jogo. A denúncia do artifício não foi – nem é – somente um toque estilístico de quebra de quarta parede: é uma introdução para uma nota de realização de que a linha central, o foco de atenção é, na verdade, aquilo que nos distrai da verdade. A ficção é o veículo que nos afasta, então, à partida, da realidade, sendo ao mesmo tempo aquilo que permite, no entanto, no final, que essa mesma realidade esteja sequer presente.


Tudo começa com o olhar sobre os protótipos de representação, sobre o potencial de congregação de características e definição dos indivíduos além-personagem. A quase overdose sensorial é causada pelo exagero do ser – mas a definição passa – como sempre – pela observação dos detalhes da totalidade. Aqui conseguimos encontrar a camada por detrás das máscaras. Aqui conseguimos sentir a desilusão, a ausência de esperança. O drama camufla o drama, o indivíduo camufla o colectivo, a comédia da ficção camufla o drama da realidade.
De ce trag clopotele, Mitică? (Carnival Scenes, 1981) de Lucian Pintilie foi uma trip em ácidos novelescos, um grito político silenciado, um carnaval adiado: um retrato de uma nação perdida na sua procura pela determinação de uma identidade singular. Um olhar sobre a falência de um sistema de disfarce, destinado à fatalidade.