Paris. Anoitecer. Uma mulher em casa empacota os seus pertences. Irá deixar o apartamento para compartilhar uma nova casa com um homem (namorado? noivo? que importa?) a partir do dia seguinte. No ritual das arrumações, sente o veludo de uma saia a roçar-lhe na coxa, o fluxo da água do banho a escorrer-lhe pelo cabelo, os últimos raios de Sol a baterem-lhe no rosto. O brilho do dia dá lugar à resplandecência dos candeeiros parisienses. Hora de partida. Dentro do carro, ouve na rádio um apelo para que os condutores dêem boleia a desconhecidos: há greve de transportes e o combate ao frio incompassível faz-se com este simples acto solidário. A generosidade e um estranho impulso (esse estranho impulso) levá-la-ão a acolher um estranho no veículo. Aos poucos, a simpatia cordial de um gesto transforma-se no desejo voluptuoso entre dois seres. Alugam um quarto, fazem amor, jantam fora, dormem juntos. Levanta-se uma nova manhã. Ela parte, ele fica. Eis o resumo de Vendredi soir (2002), o mais belo filme de Claire Denis.

Como pode um argumento tão escasso, tão fino, tão minimalista dar origem a um filme tão bonito? Por esse mistério de imagens chamado cinema. Diálogos, cenas de exposição ou psicologia, o que é que tudo isso importa quando há olhares, gestos e movimentos? O silêncio pode falar montanhas, é o que cinema de Denis nos conta. Por isso, o laconismo e a introversão atípicos das figuras que a cineasta filma vêem-se sempre transcendidos por uma série de planos fechados e de detalhe, organizados por uma montagem de cadência musical que atravessa o espectador com a mesma força de uma orquestra, o ritmo dentro e entre as imagens a originar uma coreografia emocional pela apresentação de membros, rostos, olhos, roupas e cabelos de forma sensualizada, num jogo imagético harmonioso inebriado pela topografia da pele, seja parcialmente coberta ou totalmente despida. Claire Denis é uma compositora de sinfonias visuais de corpos, fazendo de cada metro de celulóide uma pauta musical onde os planos são notas a serem tocadas pelos instrumentos em que se tornam as matérias somáticas dos seus actores.
Falar das relações humanas com pouco ou nenhum recurso das palavras, não é isto prova o suficiente da grande cineasta que Denis é?
Num espaço de tempo de apenas algumas horas, a realizadora filma no seu singular impressionismo as texturas, odores e sabores de uma noite romântica na cidade da luz, registada numa découpage do íntimo com as várias partes do corpo humano (e as suas reacções) isoladas em enquadramentos individuais, como se possuíssem vontade própria e partissem à procura do ambiente que as rodeia para saciarem um sequioso desejo de proximidade e toque. Denis sabe como poucos, muito poucos, usar as potencialidades do meio onde trabalha para apresentar a vida interior das suas personagens pelo seu exterior, o que está esconso pelo que está exposto, o invisível pelo visível. E é na alquimia minuciosa da montagem, onde estes enquadramentos se combinam para criarem uma energia inexplicável que individualmente não acarretam, que obtemos o mais fiel retrato de uma personagem com as suas pulsões, sensações e sentimentos. Falar das relações humanas com pouco ou nenhum recurso das palavras, não é isto prova o suficiente da grande cineasta que Denis é?
Se a descrição da estética de Denis com o que é um filme sobre uma one-night stand cria a expectativa de um erotismo explícito, desengane-se o leitor. O sexo, aqui, é de um pudor bressoniano. Pode ser ele a tocar nos pés dela, ou então ela a acariciar o peito dele. No máximo, os corpos fugidios a misturarem-se até se tornarem massa de pele inextricável e indiscernível. Mas este pouco que é mostrado surge compensado pelo vigor que a sinédoque visual acarreta. Como é que alguém poderia filmar a experiência subjectiva do sexo a não ser desta maneira? Expor as figuras despidas na sua inteireza seria desonesto e voyeurista, a quebra do elo de subjectividade mental e perceptual que o filme estabelece persistentemente com a sua protagonista. Mas ao filmar os detalhes, Denis dá-nos o retrato mais intrínseco do prazer dos sentidos, coloca-nos dentro daqueles lençóis estuosos ao sublimar visualmente a perceptividade sensorial dos seres que neles se afagam e acariciam.
Haverá cineasta actual que mais dê atenção à textura que Denis? Não creio. À pele humana opor-se-ão as superfícies humedecidas dos automóveis ou o fumo de um cigarro a sair da janela, detalhes de veículos e objetos quotidianos que na sensibilidade com que a câmara as regista ganham um novo impacto estético. E apesar de ser um filme tão preso ao físico, ao concreto, à realidade palpável, não deixam de pontuar certos momentos mágicos, como a letra de um automóvel que saltita ao som de uma canção pop, os ingredientes de uma pizza que se reorganizam numa cara sorridente, ou um abat-jour que voa de regresso para um candeeiro. Não bastam os sentidos, Denis quer-nos mostrar o mundo também pela imaginação da sua protagonista.
Magia, referi. É o termo que ocorre ao ver a Paris nocturna deste modo, com a directora de fotografia Agnès Godard a captar as cores, as gotas de chuva, os néons que tão depressa vão como chegam, numa atmosfera de beleza volátil, efémera e mística (as sobreimpressões não sugerem outra coisa que não essa volubilidade enigmática do tempo e os encontros passageiros que oculta) embalada por um ritmo hipnótico que faz de Vendredi Soir também uma doce carta de amor a uma cidade com os seus amantes, recantos e segredos. Por isto e por mais, aqueles que associam Denis a um cinema elíptico e frio, encontrarão aqui, justamente, o seu trabalho mais linear e caloroso, portador de uma afeição inegável pelas personagens que alicerça uma elegante ode ao desejo feminino e às simples alegrias da vida, escrita de forma sensual, desprendida e genuinamente cinematográfica.
Falta referir o final, pequeno acto de libertação física e espiritual que nos remete para os melhores filmes da realizadora (onde Vendrei Soir merece figurar). Lembram-se daquela dança eufórica (neste ou noutro mundo?) com que Denis Lavant terminava Beau Travail (1999) e a catarse que dela advinha? Aqui, algo semelhante ocorre com aquele sorriso furtivo que Valérie Lamercier solta para a audiência, enquanto ela corre ao ralenti com a aurora a desvelar as ruas parisienses. Simultaneamente jubiloso, melancólico e enternecedor, é um momento apoteótico de pura poesia de câmara, onde não é pouco provável que o espectador dê por si a murmurar: “como é belo o cinema.”