Há o sucesso mediático, associado a múltiplas premiações, e há o já notório sucesso de público, que nos deve encher de esperança na capacidade do cinema português em produzir produtos que enchem as salas tão precisadas de espectadores. Mas depois há o cinema: como inserir Listen (2020) de Ana Rocha de Sousa no “espaço” do cinema? Dois walshianos, Carlos Natálio e Luís Mendonça, viram o filme e agora, fazendo ouvidos moucos ao fenómeno mediático e popular, olham para ele em conjunto, trocando mensagens em que partilham o mesmo tom crítico (implacável a espaços), mas também a consciência de se tratar de um primeiro filme, e que a criação de imagens e sons é uma arte muito complicada de gerir, intelectual e emocionalmente.
Allô, allô,
Ouve lá: ontem, antes de entrar na sessão do tão propalado Listen de Ana Rocha de Sousa, mandei uma mensagem ao Ricardo [Vieira Lisboa], dizendo-lhe que ia ver o dito filme e para saber se por acaso ele já o tinha visto. Respondeu-me: “Não, mas o Carlos sim e odiou.” Fui ver o filme embalado pela primeira verdadeira “bad vibe” que me fizeram chegar a propósito deste filme – falou-se tanto de assuntos à volta dele (os prémios, a emoção da realizadora, os ataques ao “meio” elitista do cinema, o discurso efectivamente lúcido da realizadora, etc.), que porventura o pessoal se esqueceu de falar do filme propriamente dito – será que muitos o viram, olharam, de facto, para ele?
Não sei que influência teve essa tua impressão, que me foi dada em segunda mão a segundos da sessão, mas acabei por sentir uma intensa frustração ao longo do visionamento: uma desarticulação formal, logo no découpage, que me afastou do drama pintado em tons excessivamente/acriticamente colados à receita realista inglesa (Ken Loach à cabeça). O único olhar que fui descortinando, por entre as doses cavalares de choro e “docudrama instantâneo”, foi o olhar muito verde de uma realizadora que não domina princípios básicos. Raramente os contra-campos acertam no timing justo – aquele em que pedimos que as palavras desemboquem num rosto, por exemplo. Se o découpage é um caos, o ritmo de montagem é atravancado.
Parece que lhe falta essa “intuição trabalhada” que torna uma montagem coesa ou os efeitos da técnica transparentes.
Pronto, este foi o meu primeiro grande impedimento de entrar no filme: a falta de mão em princípios básicos de expressão cinematográfica, entendendo o cinema enquanto tradição crítica e estilística. Será que esta realizadora viu suficiente cinema? Parece que lhe falta essa “intuição trabalhada” que torna uma montagem coesa ou os efeitos da técnica transparentes – incluo, neste particular, a direcção de actores ou a falta dela. Portanto, e recapitulando, saí desiludido, mas não revoltado com o filme ou tão-pouco “odiando-o”. Simplesmente, acho que é uma primeira obra verde.
Ao mesmo tempo, se me perguntarem se o tema do filme é urgente, responderia sem hesitar que sim: é e tem tudo para dar origem a um grande filme. Pus-me a tentar imaginar como seria esse grande filme e se seria um Ken Loach desta vida a realizá-lo – e como faria diferente de Ana Rocha de Sousa.
Escrevo-te para perceber os modos da tua rejeição – até porque sabemos como podemos divergir intensamente partilhando, ao mesmo tempo, o veredicto final sobre certa obra.
Até já!
Abraço desinfectado,
Luís Mendonça
Olá Luigi,
Que pena que tenhas tido essa informação e mesmo antes de entrar na sala. Incrível como uma frase pode fazer desabar uma obra. E, às vezes, até frases inocentes. Listen, como quem diz OUÇAM! – numa espécie de política das atrações – muito mais do que o dilema da jovem menina surda que, estando mais desenvolvido, nos faria OUVIR com muito mais intensidade através da sua real e dramática falta de audição. Não posso dizer que “odiei” o filme, pois não me julgo capaz de odiar uma obra. Sei bem o trabalho que dá fazer cinema, sei ainda melhor como, quando estamos no frenesim da criação, tudo nos parece grandioso. Somos D.W. Griffith a fazer o “maior filme já alguma vez feito”, cegos e surdos dos efeitos colaterais.
As personagens são caricaturas sociais que servem para ilustrar uma comprovada situação real de injustiça.
Acho que é um daqueles casos em que o filme procura encaixar na política e não o contrário. Assim sendo, as personagens são caricaturas sociais que servem para ilustrar uma comprovada situação real de injustiça. O filme corre para chegar às cenas e espaços de confronto – as lágrimas, os gritos, a revolta – para nos mobilizar para uma causa. Mas não estávamos já nesta causa, antes de existir o filme? Assim sendo, o que mudou? No mundo, em nós? Listen é um produto típico dos nossos tempos. A responsabilidade social e política como a primeira e única camisola do artista, em função de uma coerência ética. E, vamos a ver, concordo com ela. Não devemos ser “umas bestas no cinema” e uns “anjos activistas na vida real”. Não acredito nessa separação. Agora, o que acredito é na tentativa de preservação de uma linguagem cinematográfica que não seja apenas plasticina para persuadir mentalidades. O que acredito é que há vida política para além da telenovela e da exploração da lágrima, do grito e da tristeza dos injustiçados.
Listen é um filme pouco livre e, mais grave ainda, pouco original. Listen é um produto típico dos nossos tempos, repito. Tempos em que os filmes são bandeiras e só na escuridão dos nossos quartos, em SMS, em conversas de amigos, fora dos olhares da sociedade “corajosa e transformadora”, podemos perguntar-nos: “Mas isto é um bom filme? E se sim, porquê? E se não, porquê?” Eu dou-te a minha razão principal pela qual não gosto de Listen: não consigo acreditar naquelas personagens, em nenhuma delas – das mártires, às vilãs, aos funcionários do mal – e isso é uma inépcia da escrita. E não vale a pena falar de realismo social britânico: quem não ficava enfeitiçado com aqueles mundos e aquelas pessoas de luz e sombra?
Enfim, se tiver que escolher entre o que gostei menos, prefiro apesar de tudo o gesto criador, que não acredito ser hipócrita, da Ana Rocha de Sousa, do que a reacção social ao filme. Pois nessa reação, a maioria das vezes, o cinema, as suas linguagens, convenções, técnicas, são uma nota de rodapé de um ímpeto, de uma fúria transformadora do mundo. E eu gostava de sentir-me livre quando me sento numa sala de cinema. É para isso que pago bilhete.
Abraços politizados,
Carlos Natálio
Allô allô,
O Miguel Forlin, do Estadão, citava há pouco tempo uma passagem de uma entrevista a Adrian Martin [crítico de cinema entrevistado aqui] que considerei luminosa, por abordar essa relação, sempre problemática, entre a mensagem dos filmes e o cinema dos filmes. Passo a (re)citá-la: “Pessoalmente, não gosto dessa tendência de supervalorizar um filme por causa de suas ‘boas intenções’ ou justeza política. Tais filmes — se eles não são nada mais do que a sua orientação política ou mensagem — serão rapidamente esquecidos. Para mim, um exemplo é o norte-americano ‘Corra!’ [Get Out (Foge, 2017)], filme de ‘horror político’ dirigido pelo Jordan Peele: na década de 1970, nos anos de George Romero, John Carpenter ou Larry Cohen, ele teria sido visto como muito rotineiro, comum, até medíocre. A centelha de um filme está na relação dialética, na interação dinâmica entre seu conteúdo e forma. Quando essa centelha não está lá e temos apenas conteúdo, não temos muito“.
Foi aqui – nesse sublinhado que fiz a itálico – que encontrei a minha própria descrença na história de Listen: como dizes, o ponto de partida era mais do que conhecido, foi objecto de múltiplas reportagens e só pôde ter merecido a nossa empatia e indignação. A Ana Rocha de Sousa cabia a tarefa de instituir essa relação dinâmica entre conteúdo e forma: como é que um filme sobre um dado assunto, de natureza política, devém, na sua forma, uma obra propriamente política. É aqui que senti essa falta de sentido crítico: a forma é um mero recipiente para os “five cents” de uma indignação enlatada, que nos é gritada aos ouvidos. A realizadora nem procura propriamente marcar uma posição, tal o grau absurdo de maniqueísmo (próprio, quanto muito, do jornalismo sensacionalista). Lembro-me, a propósito disto tudo, como Marco Martins transformou o sofrimento de dois pais à procura da sua filha num drama quase expressionista que transformou Lisboa numa cidade soturna, deprimida, labiríntica, em que a chuva não parava de cair e por onde ressoava – como ferida que teima em não fechar – cada nota da música de Sassetti.
Coisa que este Listen devia perceber: em Alice (2005), o drama humano vai buscar toda a sua força aos silêncios… É a eles que Ana Rocha de Sousa devia prestar mais atenção. Voltando ao meu exercício sugerido, “E se este tema fosse tratado por um realizador realista britânico”, diria que fundamentalmente seria isto que ele faria, isto é, saberia como respeitar os silêncios face a um drama que é como a pescada, “antes de o ser já o era”.
Listen grita a sua mensagem, mas esquece-se de responder acertadamente às questões do cinema.
Em Listen, tudo é gritante na destruição de qualquer discurso formal e, por arrasto, de qualquer verdadeira tomada de posição crítica sobre o seu assunto de indiscutível relevância social e humana – nem o drama dos pais é matéria que interesse verdadeiramente à câmara, porque, como dizes, nada se descola no “debitanço” de gritos e plásticas indignações. Sobre esta ideia de “gritar” verdades feitas e apressadamente tratadas, lembro-me de um cartoon da New Yorker passado no típico décor de um concurso televisivo de perguntas e respostas, ao género de um Quem Quer Ser Milionário?. Vemos o apresentador a dizer qualquer coisa como: “Este senhor errou na resposta, mas é o vencedor porque gritou mais alto”. Listen grita a sua mensagem, mas esquece-se de responder acertadamente às questões do cinema. Não produz dialéctica alguma, é plano como a sua retórica social/política.
Vês isto? Parece que o teu ódio “mal reportado” se converteu numa espécie de revolta minha – real desconforto – em relação a este objecto. Mas… agora indo para “fora de campo”, e falando do que envolve este mesmo objecto, diria que essa revolta resulta também da minha decepção, porque acho que Ana Rocha de Sousa podia – e quiçá ainda pode – representar uma mudança interessante, bem-vinda até certo ponto, no milieu do cinema nacional. Sei que as suas vitórias em Veneza deixaram muita gente do meio com “dores de cotovelo”. No entanto, isto é tudo muito lindo, mas – aqui vem o grande “mas” tantas vezes esquecido nos últimos anos em que o cinema virou fenómeno mediático, encomenda para festival ver… Mas, dizia, há que ver os filmes e vê-los sem perdermos o nosso sentido crítico. E sem desbaratarmos a nossa política do gosto – o gosto importa, não escrevias isso há pouco tempo no teu Facebook?
Até já,
Luís Mendonça
Hello again,
OUVE ISTO! ESTÁS A OUVIR? ESTÁS A OUVIR? OK, ENTÃO CÁ VAI: é que.
Era uma piadinha, quiçá de mau gosto, mas que me fez lembrar esse cartoon que mencionas. Mas sabes que isso do falar mais alto é a “verdade” da pós-verdade. Basta ver o debitanço de mentiras – que já nem sequer nos damos ao trabalho de assinalar, tal a sua frequência – de Donald Trump, agora em momento de campanha ainda mais. Uma mentira contada com muita força, muito alto, pode ser uma verdade aos ouvidos de quem quer mais ser tratado como cliente – que quer ouvir o que o conforta, “the customer is always right” – e menos como um interlocutor que toma decisões por si próprio baseado em critérios de procura de verdade e razoabilidade. Com as devidas distâncias, esse é um dos problemas do cinema comercial mal feito: é o produto para esse consumidor, consumidor esse que vê na lógica da incerteza, do trabalho sobre o som e a imagem, um obstáculo, algo difícil, que faz pensar e, sobretudo, que pode fazer pensar o contrário do que queremos pensar.
Se um realizador não sabe o que fazer com as imagens e com os sons, o que é que está a fazer nesta profissão? Nesse sentido, gostaria de ver filmes mais VEJAM e menos filmes OUÇAM.
Enfim, não estou a falar do Listen, pois acho que, apesar de tudo – e pensando em cinema -, deve ser tratado como aquilo que é: uma primeira longa. Mas é verdade aquilo que dizes: na história do cinema, as formas inanes que veiculam conteúdos importantes são levadas pela espuma dos dias. Por isso é que ainda hoje falamos da A Linha Geral (1929) do Eisenstein e toda a gente já se esqueceu aqueles documentários manhosos ou xaropadas de propaganda na altura da Segunda Guerra Mundial. Acho que cada vez mais falamos de filmes importantes e menos de bons filmes, com toda a subjectividade que isso implica. Mas ainda pior, parece-me: pois o bom filme devém, a pouco e pouco, apenas o filme importante. A consciência crítica sobreviverá quando já não tivermos noção desta distinção?
Bem lembrado o Alice, mas também – se vamos falar de cinema de autor comercial – importa pensar no abismo que existe entre a linguagem do filme da Ana e a cor, as personagens, a música, a representação e a montagem de um outro filme politicamente importante que é simultaneamente um bom filme. Falo, claro, de O Fim do Mundo (2019) de Basil da Cunha. Para mim um filme do “meio” é isto: ambiciona ser visto por muita gente, público que não comunica necessariamente de forma muito complexa com a linguagem cinematográfica, mas para atingir esse propósito de maior visibilidade não abdica de trabalhar ambiciosamente a sua matéria-prima: os sons e as imagens. Se um realizador não sabe o que fazer com as imagens e com os sons, o que é que está a fazer nesta profissão? Nesse sentido, gostaria de ver filmes mais VEJAM e menos filmes OUÇAM (mesmo que isso implique, por vezes, alguma dose de exibicionismo).
Abraço!
Carlos Natálio
Olá,
Ouço-te bem, sim. Por isso, também quero ressalvar o seguinte: não queria ir tão longe e dizer que Listen é “fake cinema” – usei o cartoon para ilustrar um problema essencialmente estético, mas de implicações políticas, claro. Também sinto que nada disto é propositado. O filme é, como salientas e eu reforço, uma longa de estreia. Também deve ser encarado como tal, percebendo-se que esta é uma realizadora em formação, que apresenta debilidades óbvias mas – e agora cinjo-me àquilo que tenho lido nas entrevistas à realizadora – manifestando a vontade de trazer outra aragem ao cinema português, o que – penso estarmos de acordo – é bastante louvável. Também queria dizer: acredito que seja especialmente difícil para um(a) realizador(a) fazer cinema em português ou para o mercado nacional, sem propriamente fazer parte do “clube”, digamos assim.
O filme é, como salientas e eu reforço, uma longa de estreia. Também deve ser encarado como tal.
Também é verdade: nos antípodas de Listen está o exemplo de que falas, O Fim do Mundo, de Basil da Cunha, uma obra que nasce do entendimento profundo das vivências e inquietações de uma comunidade. É um filme todo ele “desenhado”, com grande dedicação e – neste caso sim – savoir faire, para produzir, antes de mais, uma forte ideia de comunidade, uma empatia por um mundo longe do nosso. Mas não há a procura desesperada pelo efeito – pelo grito – desse OUÇAM. Basil da Cunha tem mundo, tem cinema lá dentro, e conhece a lição neo-realista: o cinema deve mostrar, não demonstrar. Listen é demonstração 24 frames por segundo.
Abraço,
Luís Mendonça
Bom dia,
Os cineastas mostram e os críticos demonstram (o seu ponto de vista). Essa dinâmica parece-me mais justa, sendo que também existe a muito lamentável crítica sensacionalista em que a provocação por vezes nada mais é do que um OUÇAM!
Mas não me sentia de bem com a minha consciência se não elencasse – e com isto termino – mais dois ou três pontos que me levam a não gostar de Listen.
1) Em conversa com o Ricardo [Vieira Lisboa], ele dizia uma coisa que até tinha passado por cima, mas ele tem razão: não se usa uma personagem com uma deficiência para demonstrar um ponto: é preciso ter mais carinho por ela, subtileza de escrita para lhe dar mais dignidade e autonomia dramática.
2) A cena em que a mãe deixa os filhos junto ao lixo: parece que, de repente, num filme de propósito realista, o universo deixou de ter pessoas e aquele lugar era apenas um décor conveniente, um beco-estúdio.
Esperemos que a Ana Rocha de Sousa continue a filmar, mais e melhor, e de preferência sem este barulho mediático à volta.
3) A ânsia de chegar ao conflito entre pais e agentes da segurança social por vezes destrói a verosimilhança: creio que é logo na primeira vez em que a personagem da Lúcia Moniz discute com o homem da segurança social por causa do uso dos gestos; tudo parece escalar convenientemente para o drama, passando por cima de uma mais do que provável conversa inicial para resolver a questão.
4) Apesar da Lúcia Moniz ser uma boa actriz – e o “momento capriano” do filme tem alguma força – pede-se demasiado poder emotivo às personagens, resultando em momentos de overacting claro.
5) A escola, como o beco, revelam esse lado descuidado com tudo o que rodeia o nó principal do argumento; parecem postiços, como num sketch apressado.
Mas gosto do fim abrupto, os créditos a correr sobre a porta de saída. Pela primeira vez sinto que se assume criativamente a ideia de economia de meios. Isso sim, já me parece ser do realismo britânico.
Enfim, palavras são palavras e filmes são filmes. Esperemos que a Ana Rocha de Sousa continue a filmar, mais e melhor, e de preferência sem este barulho mediático à volta. Só terá a ganhar com isso.
Até breve,
Carlos Natálio