Az én XX. századom (O Meu Século XX, 1989) de Ildikó Enyedi
Um século (re)conhecido numericamente pela dualidade, que parte da nomenclatura que – neste caso, subjectivamente – nos remete para fundamentos de determinação sexual. A conjunção de dois elementos que se espelham, frutos de uma numeração do acaso (pré-)determinado pelas linhas da temporalidade (pré-)definidas para a criação de uma base de lógica sustentável. Dos espelhos, da tela, a reflexão sobre o par: os seres que observamos, homónimos na sua génese mas distintos de nome, lançam-nos numa viagem pelas linhas de igualdade, pelas linhas de oposição.
A verdade está nos interstícios da divisão binária.
Num campo onde a luz surge, pela primeira vez, sentimos, o contraste com a penumbra. Numa imagem em que o aparato eléctrico surpreende a multidão, temos o avanço da tecnologia sobre as práticas da tradição. Num filme desenhado a duas cores, focado em duas mulheres, temos um destino dividido em dois lugares de pertença do arquétipo: a feminista anarquista e a cortesã do deleite. Da união à separação; do longínquo ao próximo. Duas metades (in)separáveis cujo caminho se cruza num comboio de partida do Ocidente para o Oriente. Mas as continuidades da linha da vida nem sempre determinam o (re)encontro ambicionado – por quem vive mas também por quem observa.
O prazer reserva-se à contínua elevação e perda da expectativa.
Num regime de expansão, de distinção de polaridades (sempre presentes), um elemento exterior – o indivíduo que, sem estar em relação, perde por absoluto o seu significado – cria o distúrbio nas continuidades: o amor lança o tremor, o desejo lança a quebra do pudor. A incapacidade de distinção das singularidades denuncia, no entanto, a abstração movida pelo falo. A repulsão por este elemento é, no entanto, iniciada com o confronto com as ideias prevalecentes – e determinantes – de uma sociedade movida para – e por – um dos pólos, com a força da tentativa de anulação da possibilidade da existência – racional – de um regime de igualdade.
“A mulher” não “é um nada”: é um tudo.
Num olhar sobre a brutalidade do acto que revoga a possibilidade da plena existência de igualdade na diferença, o (tão desejado) confronto, a (tão desejada) quebra da ilusão parte de um cruzamento da reflexão da imagem com o corpo. A sua identidade (res)surge numa multiplicidade de imagens, de diferentes ângulos, sobre a mesma luz. Encaminha-nos, num breve passo, para o cruzamento na continuidade divergente.
A identidade está nos interstícios da divisão binária.
Neste círculo de acção – um contraste com o delineamento pela rectidão das dualidades espaciais do plano -, somos colocados, por fim, na posição de observação de mais uma estupefacção pelo avanço: a possibilidade de comunicação com diversos pontos do globo. O progresso é visível mas olha, em retorno, para o elemento do passado. A chave recai, assim, sobre os elementos que surgem da ligação do potencial dos arquétipos, da conectividade que ocorre na fluidez não-linear.
O século que habitamos sucede o anterior (a lógica temporal assim o impõe). As lições da história – do olhar (ainda) não-hegemónico – dão-nos pistas para a construção sobre a destruição de certas ilusões de progresso. Resta-nos navegar neste mar de possibilidades, que nos move em diferentes direcções, deixando-nos levar por uma maré de contemplação e reflexão sobre os erros e sobre as vitórias do passado, mergulhando no maravilhoso potencial do encontro consciente com o humano – longe da imposição de (pré-)determinações, mais perto de si.