Isto não acontece comigo em todos os filmes de Hong Sang-soo. Penso que me acontece somente naqueles em que o tempo é matéria eminentemente plástica, como se Woody Allen tivesse em mãos a tarefa de adaptar ao grande ecrã um daqueles argumentos hiper codificados de Christopher Nolan. Nesses títulos, amiúde vem-me à cabeça aquela “personagem que devia ter ficado na paragem de autocarro”, interpretada por Richard Linklater no filme que realizou nos anos 90 e que marcou toda uma geração indie, Slacker (1990). O rapaz disserta sobre realidades paralelas, sonhos (sem citar Jung) e “gatos de Schrödinger” (sem citar o físico austríaco). Mas o que ele diz sempre me assombrou, desde que descobri pela primeira vez este filme durante a minha já longínqua adolescência: será que esta pessoa que sou eu e que apanhou este táxi não deixou de ser aquela pessoa, que também sou eu, que podia ter decidido apanhar antes um autocarro? Será que o facto de ter decidido não apanhar o autocarro eliminou, de facto, o fluxo de tempo aberto pela possibilidade de efectivamente o apanhar? Será que a decisão e a não-decisão correm como realidades paralelas que acabam por criar interferências uma na outra?

Logo no título (em português, dá pelo nome O Dia em que ele Chega), este filme de Hong Sang-soo encerra um rol de possíveis jogos what if. A questão é: quererá o cineasta jogá-los [nem sempre os joga de facto com este brilhantismo, basta pensarmos no algo tosco, mas mesmo assim curioso, La caméra de Claire (2017) e compará-lo ao fenomenal Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Sítio Certo, História Errada, 2015)]? Portanto, se “ele chega” – já estamos a ver faíscas a saírem da imaginação electrizante daquele Linklater dos anos 90 -, significa que essa personagem pode, como planeado, encontrar o seu amigo ou, pelo caminho, acabar por se cruzar com outras pessoas. E, com esse desvio, uma “ferida” no tempo é aberta – mesmo que ele “só saiba que não vai por ali”, esse “ali” existe, qual realidade separada, a partir do momento em que ele o pensou como caminho a percorrer, logo, terá de suportar tanto as dores associadas ao rumo que decidiu dar tal como ao rumo que decidiu não dar à sua vida. Ando aqui aos círculos, pensando em voz alta – ou em “escrita alta” -, para dizer que Hong põe em evidência, de maneira extraordinariamente exaltante e lúdica, o seguinte: em cada acção, em cada gesto ou palavra a mais que dizemos, encetamos um rumo na nossa vida. Mas não tem de haver nada de irredutível ou claustrofóbico nisto, já que a acção, o gesto ou a palavra que não espoletámos também assombra a nossa vida, como essa possibilidade deixada em aberto que um “eu”, algures no cosmos ou numa dimensão oculta do “mundo mundano”, não deixou de aceder.
A ideia de nuance ou variação é-me suscitada mais à frente no filme de Hong, remetendo-me menos para Linklater do que para Alain Resnais. O Dia em que ele Chega é uma espécie de “beber/não beber” do realizador sul-coreano. E o espaço – apetece antes dizer “o palco”, face à habitual estaticidade da câmara de Hong, isto é, à curiosa imobilidade da sua quarta parede – em que se exercitam estes jogos quânticos é o bar. Chama-se “Novela” – nome já de si assaz sugestivo, dado o novelo narrativo que se desenrola nesta paragem, entre copos, risadas, conversa da treta, flirts desajeitados. Este bar fez-me lembrar o que dizia o “Czar do noir” Eddie Muller a propósito do papel desempenhado pelos dinners ou cafés nos filmes negros americanos do pós-guerra – tais como Fallen Angel (Anjo ou Demónio?, 1945) e The Killers (Assassinos, 1946). Para Muller, esses décors são como um limbo, locais colocados “entre parêntesis” na diegese, onde a personagem ou personagens param para beber um copo, obter uma informação ou outra. Mas fundamentalmente são pontos de encontro aos quais as personagens “regressam” insistentemente. E esta ideia de regresso – com o seu quê de psicanalítica – faz destes lugares em certa medida paradigmáticos do (sub)género. Ora, em O Dia em que ele Chega, Hong faz-nos regressar vezes sem conta ao tal bar “Novela”, que só pode ser mesmo, mesmo acolhedor, tal a reincindência da acção naquele palco.
No cinema de Hong, fica claro que mesmo a realidade mundana esconde segredos profundos, mais ou menos insondáveis.
Ali acontecem coisas estranhas. Não: ali não acontecem coisas assim tão estranhas. Na realidade, nada de especial acontece, sem ser o efeito da repetição dos mesmos gestos e das mesmas acções e dos mesmos copos e das mesmas risadas. Não, também não é isso: é mais o que é diferente que assombra cada “regresso” ao “Novela”. O protagonista – mais um alter ego de Hong que é, pois está claro, realizador de profissão – não consegue resolver uma paixão antiga e vai ser naquele lugar que se depara com uma possibilidade de “saída” (cura para a dor de corno que nunca mais passa). É que a dona do “Novela”, personagem que parece chegar sempre atrasada, é uma sósia quase perfeita da “ex” do nosso herói. No entanto, se insisto em falar do lugar/palco “Novela”, na realidade, de facto à maneira de um Resnais, deveria falar mais aqui dos múltiplos tempos ou – para usar um termo mais musical – dos diferentes mas muito parecidos andamentos que no “Novela” são suscitados pela imaginação de Hong. Uma imaginação com o seu quê de perversa, já que o cineasta não se coíbe de pôr as suas personagens em situações embaraçosas, como um cientista louco que faz experiências behavioristas com ratos de laboratório.
Há um momento burlesco muito significativo, que, de novo, me faz regressar a Linklater e à sua perambulação filosófica em Slacker. Debaixo da noite gélida, o nosso herói (um enternecedoramente patético Yoo Joon-sang, cara inesquecível da trupe de Hong) acompanha a símile da ex-namorada, que fora apressadamente buscar comida para abastecer o seu bar. A dado momento, ele diz: “Desculpa aquilo de há bocado”. “Aquilo o quê?”, responde ela perplexa. Face à perplexidade, ele ataca-a com um beijo, que é correspondido – e assim, ufa, o equívoco temporal provoca o possível acender de uma relação. O que se pode retirar desta situação é que o jogo temporal de Hong está a produzir pequenos curtos-circuitos nas suas (pobres) persongens; que talvez nem sempre a decisão que não tomámos fica, efectivamente, morta e enterrada no reino das coisas que não aconteceram. E que, portanto, nos implica. O mais engraçado aqui é que a não-decisão mete-se – onde não é chamada? – nas acções das personagens ao ponto de espoletar um comportamento que apenas confirma o que, por supuesto, não terá acontecido naquele fio temporal, mas que aconteceu, tal como presenciámos, noutro fio desenrolado antes pelo filme de Hong. O que não aconteceu tornou-se em sensação de déjà vu que influi na decisão/precipitação romântica do protagonista, acabando este por efectivamente roubar um beijo à sua “nova ‘ex'”.
No cinema de Hong, fica claro que mesmo a realidade mundana esconde segredos profundos, mais ou menos insondáveis. Claro que os segredos maiores que mais espoletam toda a série de “(un)fortunate events” são o combustível que nos torna seres gregários: a amizade e o amor. São eles que nos juntam à mesa para nos rirmos enquanto dizemos disparates, contamos histórias mais ou menos inventadas que já ouvimos mil vezes e, em suma, expomo-nos ao ridículo. E isto tudo é saudável, porque, afinal de contas, o que raio são essas coisas, a Verdade e a Vida?
Book chon bang hyang (O Dia em que ele Chega, 2011) está disponível na plataforma Filmin. Descubra outros filmes da filmografia de Hong Sang-soo na mesma plataforma, aqui.